Escritas negras importam

Escritas negras importam

Luciano Alabarse*

Norte-americano Brandon Taylor é o autor de 'Mundo Real'

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Nematoides, ouviu falar? Eu, nunca. Mas esses vermes repulsivos ficaram próximos de mim desde a leitura de “Mundo Real”, irresistível romance de estreia de Brandon Taylor. Cativante e certeiro, o livro flagra um final de semana na vida de Wallace e seus colegas universitários, vidas cruzadas entre carências e cinismos, personagens absurdamente críveis, a começar pelo protagonista: negro, gay e acima do peso, Wallace sente o racismo disfarçado de seus amigos, sofre, baixa a cabeça, revida, solta a língua, com humanidade feroz e realista. As relações do grupo revelam a crueldade e interesses conflitantes. Casais héteros convivem com namorados do mesmo sexo, todos disfarçando um racismo incômodo e calculista. Wallace é um patinho feio, um “sniper” no campo de batalha. 
Demorei a acreditar que era o primeiro livro do autor. Não parece. Altivas e duras, suas páginas são atravessadas por enfrentamentos e discussões de inteligência incomum. O preconceito racial vivenciado não é tese nem abstração. O racismo aparece mal camuflado, monstruosamente visível. Wallace tem dificuldade em lidar com sua vida negra no grupo predominante branco. Complexo e complexado, quer vez e voz para seguir adiante e acreditar em uma felicidade improvável. Não há piedade nem concessão a clichês contemporâneos. A realidade do livro dói. 

Livro 'Mundo Real' publicado no Brasil pela Editora Fósforo. Crédito: Fósforo / Divulgação / CP


Também negra, Eddie é a personagem principal de “Luxúria”, de Raven Leilani, igualmente um livro de estreia. Em forma e conteúdo, é um texto desesperado, cínico e quase arrogante, de tirar o fôlego. Eddie sente em sua pele negra a falta de emprego e de oportunidades. Mesmo em suas adversidades, é uma mulher descolada, rápida e calculista. No começo da história, trabalha em uma editora sem expressão, e se envolve com Eric, homem branco de meia-idade, que mantém um casamento tradicional, do qual não quer abrir mão, é pai adotivo de uma menina também negra, com passagens por diferentes casas de adoção. A narrativa oferece surpreendentes doses de um humor amargo, que mistura crueldade e solidão em fatias iguais, vidas que vão acontecendo, doloridas, a partir de suas escolhas e encruzilhadas.
Ácido e engraçado, “Luxúria” oferece páginas indigestas, difíceis de aceitar e digerir, que se impõem como farol a desvendar a hipocrisia desses dias politicamente corretos. Eddie é uma jovem mulher destrutiva e vulnerável , cujos sentimentos ácidos marcam o racismo que circunda a personagem. Ambos os personagens sofrem o racismo mal- disfarçado de uma sociedade branca e hegemônica. Mas nenhum dos dois, nem Wallace nem Eddie, são passivos ou indefesos diante de uma hierarquia social injusta, nenhum busca migalhas de compreensão histórica. Querem o que lhes cabe, nada menos. Os dois sabem se movimentar, e se movimentam, nesse tabuleiro de cartas marcadas; avançam em direção ao dia de amanhã, vivos e orgulhosos de suas batalhas. Seus medos e temores não os paralisam, não lhes vitimizam, não lhes dão salvo-conduto. Wallace e Eddie são vítimas que não aceitam tal posto, não são pobres coitados indefesos diante de um processo histórico racista. Sobreviventes, são os donos de suas decisões individuais. 
Li, na sequência, “Essa dama bate bué!”, da angolana Yara Nakahanda Monteiro. O enredo flagra uma Luanda dividida entre imensas contradições estruturais. O racismo, ali,<TB>marca a trajetória de Vitória, a protagonista criada em Portugal, de volta à cidade natal em busca da mãe revolucionária, que não conheceu. Angola é tão necessária ao livro como a própria protagonista. Uma cidade predominantemente negra, onde a influência cultural brasileira é avassaladora: das novelas da Globo às poesias de Vinicius de Moraes, nos infiltramos ali como predadores poderosos .
É um livro de importância indiscutível. O caos social, que acentua a trajetória de todos os personagens, é inexorável e os condena, sem escapatória, a serem o que são, a serem quem são. Lembra o extraordinário “Caderno de Memórias Coloniais”, de Isabela Figueiredo. Ambas as escritoras fazem questão de contextualizar a situação histórica do negro africano nos campos sociais onde atuam. Discutem a desigualdade que determina a vida de seus personagens, sempre marginalizados em relação aos espaços de poder.
Há diferenças sensíveis entre os protagonistas desses livros maravilhosos. Raven Leilani e Brandon Taylor criam personagens onde a força motriz explode, a partir de dentro, em movimentos de revolta e resistência ao “status quo” ditado pela sociedade branca. Esses mesmos movimentos parecem existir, de fora para dentro, na obra de Yara Nakahanda Monteiro e Isabela Figueiredo. Não estou dizendo que uns são melhores que outros, nem estou desconhecendo ou diminuindo a força dos quatro autores citados. Estou, sim, apontando a diferença de seus processos criativos, e aplaudindo a corajosa maestria da escrita de todos eles. Escritas negras importam!

 

* Diretor teatral e ex-secretário de Cultura de Porto Alegre e Canoas. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895