Instância máxima da Cultura no RS?

Instância máxima da Cultura no RS?

Guilherme Mautone* e Edson Possamai**

Casa de Cultura Mario Quintana é uma das instituições lotadas na Secretaria de Estado da Cultura do RS

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O ano de 2013 foi um ano luminoso para a cultura do Estado. Em 30/09 foi sancionada a Lei 14.310, responsável por instituir o Sistema Estadual de Cultura RS. E cumpre lembrar a relevância desse dispositivo legal. Sua quintessência consistia (e ainda consiste, pois segue vigente) na articulação, promoção, gestão integrada e na participação popular para as políticas públicas culturais. Isso significou que, em âmbito estadual, tais políticas passariam a se desenvolver de modo articulado em diferentes instâncias nas quais a participação da comunidade gaúcha seria garantida em graus diferentes.

Neste sistema, a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) passou a operar como instância “gestora”, enquanto o Conselho Estadual de Cultura (CEC), a Conferência Estadual de Cultura, os Colegiados Setoriais (num total de 12) e a Comissão Intergestores passaram a operar, mediante funções específicas, como instâncias de “articulação, pactuação e deliberação”. Conceitos que, para além de uma estipulação abstrata, precisam ganhar concretude por meio da prática política. Embora a gestão do sistema seja uma competência da Sedac, o estabelecimento de todas as diretrizes da Política Estadual de Cultura – o “conjunto de programas, projetos e ações, que promova o desenvolvimento cultural do Estado nas dimensões cidadã, econômica e estética” – é uma competência da Conferência Estadual de Cultura. Ponto importantíssimo, pois o texto legal, consubstanciado pelos anseios legislativos representando a sociedade civil, outorgou para a Conferência a mais alta atribuição e responsabilidade pelo direcionamento das políticas culturais no RS – razão pela qual a legislação a caracteriza como a “instância máxima”.

Isso porque da Política Estadual de Cultura sairão todas as diretrizes do Plano Estadual de Cultura e dos 12 Planos Setoriais dos segmentos culturais (Artes Visuais; Dança; Música; Audiovisual; Teatro; Circo; Culturas Populares; Museus; Memória e Patrimônio; Artesanato; Diversidade Linguística; Livro Leitura e Literatura). Daí, portanto, mede-se sua importância para a cultura do RS. Contudo, “conferência” significa reunião, assembleia, convenção. O que evidencia a expectativa, oriunda do texto legal, de que neste espaço estejam as instâncias do sistema, seus representantes, delegações e agentes; além de, dado o objetivo da “participação popular”, os membros da comunidade cultural.

Mas estejam como? Apenas como convidados? Ou como organizadores ativos, com poder de assessoramento e deliberação? Malgrado a inexistência de amplo debate público e, sobretudo, de debate legislativo sobre as competências legais da Conferência, sua importância pode estar insidiosamente em vias de modificação. Como? Ora, na gestão, na prática diária, na pressa e na testagem dos limites legais de modo a conferir se são de fato bem elásticos – antes que estourem por completo.

A 6ª Conferência Estadual de Cultura vem sendo anunciada nas últimas semanas por meio das “pré-jornadas”. E a notícia causou estranheza aos segmentos culturais, ainda que reconheçam a sua relevância. Isso porque as instâncias do sistema não foram devidamente convocadas para um debate estruturado, organizado e focado na construção coletiva de pautas, temas e objetivos; tampouco para uma discussão sobre as “pré-jornadas” que, na verdade, deveriam marcar o estado de pré-conferência como metodologia ativa e integrada de trabalho ao próprio evento, preparando a comunidade cultural e garantindo sua participação.

Ainda que sejam justificadas pela Sedac como “ação do órgão gestor do Sistema Estadual de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul com a finalidade específica de desenvolver a análise e a interpretação situacional do Sistema Estadual de Cultura”, as pré-jornadas estão sendo apresentadas como antecedentes à 6ª Conferência, objetivando reunir gestores e Conselhos Municipais para discutir Sistemas Municipais, o Sistema Estadual, Conselhos, Planos e Fundo. Entretanto, debater e entender os meandros das leis e os sistemas que as instituem não deve ser algo exclusivo aos gestores e conselhos, mas algo ampliado a toda comunidade cultural gaúcha que se encontra às vésperas de uma Conferência e, portanto, precisa estar devidamente preparada com informações que a torne apta para tomar parte nas discussões que se anunciam.

Hoje é crucial não fazer ilações. Os Colegiados foram, pro forma, chamados em abril deste ano para uma reunião com a Sedac e a ideia da conferência foi anunciada apenas como algo vago e pouco objetivo. Cumprimos nossa função assessora, indicando que em ano eleitoral o evento teria sua função desviada, que era preciso organizar de modo efetivo as pautas e temas, dispor de uma comissão organizadora ampla e constituída de representantes do sistema, prever estratégias e metodologias. Justamente porque a organização e a participação da sociedade civil é que fazem a Conferência relevante, honrando-a como “instância máxima” para direcionar a Política Estadual de Cultura. Mas, diante da vagueza, é preciso argumentar com firmeza, sobretudo quando se tratam de políticas para um dos setores que mais sofreu com a pandemia e que, com seu arrefecimento, reorganiza-se. E isso, para pessoas de carne e osso, trabalhadores da cultura, tem um significado concreto e nada vago. Significa comida no prato, conta de luz paga, gás garantido e o lazer do domingo.

Como é possível, honrando a lei que instituiu as políticas culturais no Estado, organizar uma Conferência Estadual de Cultura sem garantir sua estrutura mais básica, sobretudo quando isso demanda a convocação das diferentes instâncias do sistema? Quando elas serão convocadas de modo estruturado? E quando a comunidade cultural será, de fato, convidada a participar de modo deliberativo por meio de delegações, respeitadas as competências do CEC e dos Colegiados? Uma forma eficaz de responder seria concretizando a gestão do Sistema Estadual de Cultura de modo ainda mais transparente e em respeito aos princípios legais. Ou seja, promovendo a gestão integrada da Cultura onde a participação deliberativa popular é garantida no direcionamento das políticas públicas culturais, efetivando a pactuação que o próprio sistema prevê. Mas também garantindo que sua “instância máxima” não seja, desde dentro, cupinizada por interesses alheios aos culturais.

Embora tenhamos perspectivas distintas sobre o trato da coisa pública, ainda assim sob elas repousa o terreno comum dos princípios legais, não a terra arrasada de opiniões, achismos e volições pessoais ou políticas. Como representantes da comunidade cultural, devemos responder à altura da representação que ela nos confiou, escutando seus anseios, garantindo sua voz e atuando em respeito à lei. Insistir na realização de uma Conferência Estadual de Cultura, ou de qualquer outro evento que se anuncie formalmente como seu antecessor, sem garantir sua organização, sem respeitar as instâncias previstas na lei e sem a participação da sociedade civil e suas representações, é algo que vai flagrantemente na contramão dos interesses culturais da comunidade e sua expectativa sobre a conferência como “instância máxima” da Cultura gaúcha.


*Coordenador do Colegiado Setorial de Artes Visuais, Doutor em Filosofia (Ufrgs), Editor da Revista PHILIA e Docente Convidado no Atelier Livre, Casamundi Cultura e CCMQ. 
** Coordenador do Colegiado Setorial de Dança, Mestrando em Letras e Cultura pela UCS, Especialista em Poéticas Visuais pela Feevale. Diretor de dança e teatro, Bailarino e Artista Visual.


Correio do Povo
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