Rostos. Recortes. Sotaques. Geografias. Uma cidade é a soma e o resumo de suas diferenças, de seu patrimônio imaterial, dos símbolos que lhe conferem identidade e pertencimento. Porto Alegre não foge à regra: tem, em sua história, aqueles que lhe dão singularidade e encantamento, homens e mulheres que lhe emprestaram voz, textura e rosto próprio. O que melhor caracteriza a capital gaúcha, não tenho dúvida, são seus habitantes eméritos. Lupicínio Rodrigues, Elis Regina, Humberto Gessinger: marcas indeléveis de nossa vocação para a excelência. Regida por Escorpião, como aprendi com Caio Fernando Abreu, a capital do Rio Grande do Sul é fértil, generosa, dura, difícil e amorosa, tudo misturado. Sabemos bem.
Mas, aqui, quero falar de dois homens que, vivendo e trabalhando em Porto Alegre, são dois esteios civilizatórios da cidade: Júlio Conte e Celso Gutfriend. Homens de letras, das artes, poetas, dramaturgos, médicos e psicanalistas, os dois estão sempre presentes na cena local. Sua influência independe de novos trabalhos ou lançamentos da hora. É o “conjunto da obra” o que os deixa nesse lugar de importância indiscutível. Por isso mesmo, é um prazer saber que Júlio está envolvido com uma peça teatral escrita pelo Celso e que Celso vai lançar um livro desse texto até aqui inédito. “Sig e Rita”, a peça, flagra um encontro insólito entre Sigmund Freud e Rita Lee.
A rubrica inicial do texto é clara: uma mulher sobe as escadas do famoso consultório da rua Berggasse 19, em Viena, onde Freud atendeu seus pacientes e escreveu suas teorias basilares. Lendo essa indicação, lembrei minha única e inesquecível visita à Viena. Envolvido com a montagem de “Heldenplatz”, de Thomas Bernhard, fui até à Áustria, para mergulhar naquele universo bernhardiano obsessivo: um dia inteiro sentado em um banco à frente da Biblioteca Nacional, onde Hitler discursou ao anexar o país à Alemanha nazista. Os teatros onde o autor estreava suas obras, o hospício de Steinhoff, os cafés famosos e, no único dia livre da viagem, peguei um táxi e fui para o endereço famoso conhecer o consultório de Sigmund Freud. Lembro que achei a fachada do prédio absolutamente comum e que meu coração acelerou à medida que subia a escada do edifício. Lá dentro, dois funcionários me receberam e deram acesso imediato ao local. Não havia ninguém ali, visitante algum. Éramos eu e Freud, sem aviso prévio. Os dois funcionários sumiram, me deixaram sozinho e não resisti: afastei a cordinha que separava seu famoso divã do resto do apartamento e, sem culpa alguma, sentei e me recostei ali. Quando saí, alguma horas depois, tinha certeza que havia feito algo inesquecível: deitei no divã onde Freud atendeu a maioria de seus pacientes.
Essa lembrança impulsionou a leitura do texto inédito. Nele, Freud e Rita Lee se apresentam reciprocamente, conversam sem interdições sobre todos os assuntos que povoam nosso imaginário ocidental. Oníricos e bem-humorados, os personagens de Celso emulam e reverenciam seus originais. Temos certeza que ambos são liberdades poéticas do autor, liberdade pautada por um rigor fidedigno à vida e obra de cada um. Celso embaralha as cartas do jogo teatral e transforma a conversa entre os dois em diálogos ácidos e divertidos. Rita e Freud. Um reconhece o outro, um admira o outro, e através de sólidas referências às suas criações, o texto recria vida e obra. As ideias de Freud servem como luva para adensar os versos de Rita e as canções de Rita remetem aos conceitos freudianos fundamentais. A peça abarca o melhor de cada um, teorias e canções às quais nos acostumamos ao longo das décadas. Prosa e poesia. Ficção e realidade.
A conversa entre os dois flui ágil, divertida, referente. Alguns conceitos freudianos são colocados como se fossem simples e acessíveis a todos nós, comuns mortais. O texto de Celso reforça essa ideia. Aliás, um dos pontos altos da peça é que os dois, Rita e Freud, riem de si mesmos e tornam leves e assimiláveis esses complexos conceitos. A poesia de Rita resplandece. As teorias de Freud esclarecem a insustentável leveza do ser. Ponto para Celso.
Imagino que Júlio seja o diretor perfeito para orquestrar essa montagem, simples e erudita ao mesmo tempo. Por seus referenciais para além do teatro, é o homem certo para a empreitada. O encontro de Júlio Conte e Celso Gutfriend merece aplausos efusivos. Leiam o texto, vejam o espetáculo e depois a gente conversa.
A OBRA
- Título: “Sig e Rita, da Vila Mariana à Viena d’Áustria”
- Autor: Celso Gutfreind
- Formato: 14 x 21
- Páginas: 100
- Gênero: Teatro
- Editora: Bestiário
n Ano: 2024
n O texto teve leitura dramática em setembro de 2023, dirigida por Julio Conte, com Catharina Conte e João Petrillo na Jornada da SBPdePA.