Caderno de Sábado

Jayme Caetano Braun traduzido em ópera

‘Em Busca das Paisagens Perdidas’ tem estreia hoje e amanhã no Teatro Simões Lopes Neto, em Porto Alegre

Espetáculo "Em Busca das Paisagens Perdidas" estreia nos dias 25 e 26 de outubro, no Teatro Simões Lopes Neto
Espetáculo "Em Busca das Paisagens Perdidas" estreia nos dias 25 e 26 de outubro, no Teatro Simões Lopes Neto Foto : Vitória Proença / Divulgação / CP

Autor: Renato Mendonça*

“Paisagens de sombra e luz.

Como pude perdê-las?” JCB

Lembrar Jayme Caetano Braun (1824-1999), quando se completam pouco mais de cem anos de seu nascimento, é um acertar de contas com o passado e com o futuro. É discutir se um território é delimitado por índices materiais ou se ganha forma lastreado por memórias pessoais. É encarar o desafio de olhar para o passado e, valendo-se de uma dobra da arte, vislumbrar o futuro.

A jornada enfrenta obstáculos. De um lado, espreita a rejeição da cultura regional gaúcha, tida como comprometida com o endeusamento de algo parado no ar, no que seria a sagração de uma tradição cristalizada. De outro, se exige o elogio incondicional a “o que é nosso”, na convocação para que combatamos acriticamente a modernização que ameaça macular nossa terra mãe...

Desde quando o vacariano Vagner Cunha e o porto-alegrense Renato Mendonça começaram a se reunir em sucessivas rodadas de brainstorm (qual seria o termo gaudério para isso?) sobre o conceito da ópera, a estratégia para contornar essas barreiras foi bem definir o que seria território.

Ocorre que o apartamento de Vagner, numa rua do arborizado bairro Independência, se situa um andar acima do apartamento onde por muitos anos viveu Paixão Côrtes. Em sucessivas entrevistas para o livro “Pilares da Tradição” (2011), Renato ouviu de Paixão e de sua mulher, Marina, queixas ao que seria uma “radicalização” (expressão nossa) do movimento tradicionalista. Paixão reclamava algo assim: “Como sacramentar que o vestido da prenda deva ir até o chão? Vivendo num lugar com barro e esterco, não tem sentido a barra da saia roçar no chão”. Ou “Se eu colocasse uma coreografia para concorrer em algum festival agora, seria desclassificado. Só aceitam as coreografias que Barbosa Lessa e eu coletamos há décadas”. Paixão Côrtes e Barbosa Lessa compartilhavam uma certeza: não há um gaúcho apenas. Há o gaúcho da Campanha, da Serra, do Litoral...

Paixão Côrtes certamente era gaúcho – um modelo de gaúcho, se levarmos em conta a estátua “O Laçador”. Pois também era folclorista e agrônomo, usava as memórias infantis para projetar um futuro para a tradição regional gaúcha, tinha um pé na cidade e outro na Campanha (calçando botas? Alpercatas? Sapato de povoeiro?).

Esse é o eixo de “Em Busca das Paisagens Perdidas”: não há fronteiras entre cidade e campo, cultura superior e folclore, passado e futuro. O mapa emocional nos impõe o transitar, levados pelo ar que se projeta dos versos, das vozes e dos instrumentos musicais, entontecidos pelo revoluteio do vento, da dança, da imaginação.

Desde os primeiros encontros de discussão sobre os rumos da ópera, Vagner e Renato entendiam nós gaúchos como uma comunidade histórica, econômica e espacialmente apartada. Ao mesmo tempo, havia a decisão de fazer justiça à mulher gaúcha, a monumental Mãe da família Terra, como Erico Verissimo retratou. Isso significava atribuir-lhe de direito o papel de referência emocional, condição que, deliberada ou desavisadamente, há quem tente esvaziar atribuindo-lhe um perfil dependente e acessório. Nossa mulher gaúcha não é “somente” musa – ela se multiplica em cena nas personas Província, Natureza, Terra, China e Mãe, e não por acaso ficam por conta delas as últimas falas da ópera.

Qual seria o papel de nosso homenageado? Lembram das oposições que citamos antes? Jayme nasceu em Bossoroca mas viveu um bom tempo em Porto Alegre, era payador mas dominava a linguagem do rádio, era tradicionalista mas também brizolista declarado, expondo conflitos agrários em alguns de seus versos. Autodidata no aviamento de remédios caseiros, certamente estava em busca de sínteses que aplacassem sua busca pelas paisagens perdidas.

Jayme Caetano Braun nos é isso e é tudo: um médium a prover um momento parado no ar para que encontremos o possível gaúcho, o desamparado gaúcho, o tão belo gaúcho que resiste dentro de cada um de nós.

Outro elemento que se manifestou desde sempre foi a imagem do círculo. A figura circular é recorrente em nossa cultura: roda de mate, roda de payada, os próximos do fogo do churrasco, círculo no galpão. A obra de Simões Lopes Neto evoca revoluteios, ventos, a Mãe Natureza dançando em torno, assombrações e musas nos inspirando em espirais.

Também nos imbuímos do talento gaúcho, por gosto ou necessidade, de criar seu próprio universo: em vez da escola, a lida; em vez de igreja, o galpão; em vez da religião, a idealização de ética, sacudida por bravura e fanfarronice.

No processo de criação da ópera, sucederam-se vários roteiros, de variados graus de formalidade, etapas necessárias para o confronto espetacular da palavra com o som. Um dos momentos mais tocantes ocorreu quando procedemos a uma “leitura de mesa” de um dos primeiros roteiros, ainda sem que nada da melodia estivesse definida. Foi um mergulho na sonoridade sedutora dos versos de Jayme, na reverência solene de Caetano, na divertida gaiatice galponeira de Braun. Ele, como cada um de nós, é muitos.

A partir dessa massa crítica, Vagner recolheu versos, e as espirais prosseguiram em velocidade ainda maior. Depois juntou-se Carlota Albuquerque, que aportou um atento e sensível olhar de fora que logo se incorporou organicamente ao processo, usando sua experiência para decupar em gestos e movimentos o mapa que se esboçava.

Uma atitude criativa fundamental sempre presente: cultivar o olhar horizontal característico do gaúcho, vasculhando tralhas e tesouros, estrofes deixadas de fora, tradições compartilhadas e evocações pessoais, nossos rastros pelo tempo e a polvadeira que se levanta. Estabelecido está o compromisso que assumimos com o nosso homenageado, Hermano Braun: “Em Busca das Paisagens Perdidas” não perderá tempo ou chances levando em conta fronteiras.

Com atenção, se ouvirá o canto do João Barreiro. E soará idioma argentino, que nossos fronteiriços misturam naturalmente com o português. Os instrumentos indígenas, que remetem imediatamente às Missões, também ecoarão. E o silêncio, a amplitude horizontal do Pampa, a presença da água corrente, da terra prenhe, do vento transformador e do fogo de chão. E o som percutido por pés e por taquaras, alinhavados pelos ecos de nossas memórias.

Ficamos assim, se o Patrão Grande lá de cima quiser, fazendo nossa mala para sair do Teatro Simões Lopes Neto com a bagagem do pertencimento.

Por fim, e desde o início, nosso muchas gracias à Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul pelo convite e pela parceria. Já se vão três anos da CORS, formando público e cantores líricos, propondo um repertório pautado pelo apuro técnico, pela curadoria corajosa e pela produção esmerada.

Agradecimento também ao maestro André dos Santos, ao Palco Bell’Anima e à Filarmônica Ontoarte Recanto Maestro (Forma), referências fundamentais nessa busca das paisagens perdidas.

E a todas gaúchas e gaúchos de coração que estão conosco nessa procura. Que cada um desenhe seu mapa.

*Jornalista, escritor e dramaturgo. Coordenador da Escola de Espectadores de Porto Alegre (EEPA)