Caderno de Sábado

João Gilberto e a insurreição chamada Bossa Nova

O jornalista Márcio Pinheiro analisa o livro “João Gilberto e a Insurreição Bossa Nova - Outros Lados da História”, de Tárik de Souza

João Gilberto durante show que celebrava 50 anos da Bossa Nova, em 24 de agosto de 2008, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro
João Gilberto durante show que celebrava 50 anos da Bossa Nova, em 24 de agosto de 2008, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro Foto : Ari Versiani / AFP / CP Memória

AUTOR: MÁRCIO PINHEIRO*

“E você, por que não está perguntando nada?”, questionou João Gilberto a Tárik de Souza durante uma entrevista coletiva realizada na cobertura do empresário Ricardo Amaral em maio de 1971. Prestes a completar 40 anos, o músico já era um artista de alcance internacional e tinha diante de si dezenas de repórteres que se preparavam para ouvir dele detalhes sobre uma excursão a ser realizada pelo Brasil, patrocinada por Amaral. A entrevista, sugerida à Veja (revista onde Tárik trabalhava há três anos) como uma exclusiva, nada tinha de exclusividade. Pego de surpresa em meio à multidão, Tárik resignou-se e, em silêncio, permaneceu concentrado, empenhado em criar uma conexão telepática com o cantor – nas suas palavras “maior poder mental que jamais conheci”. Deu certo.

Encerrada a coletiva, o jornalista seria recompensado. Ele e João Gilberto foram formalmente apresentados e, ao pedido do repórter, o cantor consentiu: “Me procure amanhã no Hotel Glória”. Do encontro no dia seguinte nasceriam as primeiras perguntas formuladas. Já as respostas continuaram surgindo pelos próximos anos, e não se encerraram nem mesmo com a morte de João Gilberto, em julho de 2019. Agora, perguntas, respostas e tantas outras análises e conclusões foram reunidas em “João Gilberto e a Insurreição Bossa Nova” (L&PM Editores, 444 páginas), o mais completo relato sobre o mais enigmático artista da cultura brasileira. Entre o período que vai dessa primeira entrevista – que renderia a Tárik um relato de seis páginas, o mais longo já concedido pelo músico, que ainda exigiu que o repórter não usasse o gravador tampouco tomasse notas, obrigando-o a reproduzir posteriormente tudo de memória – Tárik reconstitui os 88 anos que João Gilberto viveu em seu universo particular. Um mundo que o artista criou para si nas mais de seis décadas de – digamos assim – vida pública.

Pelas 444 páginas do livro, as dúvidas e as curiosidades vão brotando ao longo do texto e vão sendo saciadas quase que de imediato nas páginas seguintes. Tárik não deixa nada sem resposta sobre o músico que – ao lado de Tom Jobim e de Vinicius de Moraes – moldou a bossa nova e a ela foi fiel por toda a vida, não num casamento estático e previsível, mas num relacionamento aberto a novas experiências (sem exageros, claro).

O MAIS COMPLETO CRÍTICO DO PAÍS

Tárik de Souza, 79 anos no próximo mês, talvez seja o mais completo e abrangente crítico musical do Brasil. Com uma carreira iniciada na mesma revista Veja (onde foi integrante do curso que deu origem à primeira redação), ele exercitou boa parte de seu talento nas páginas do Jornal do Brasil (onde tive a honra e a alegria de ser seu colega). Em quase seis décadas de militância jornalística, Tárik fez muita coisa, como comprova o extenso currículo que ocupa quatro páginas ao final do livro. Apenas na área literária, ele já havia publicado os ótimos “Rostos e Gostos da MPB” (parceria com Elifas Andreato, em 1979), “O Som Nosso de Cada Dia” (1983) e “Tem Mais Samba – Das Raízes à Eletrônica” (2003). Agora “João Gilberto e a Insurreição Bossa Nova” o coloca em outro patamar. É o trabalho de uma vida.

A massa formidável de informações recolhida por Tárik – os enredos factuais de uma história da qual se acreditava conhecer os momentos definitivos – confirma que “João Gilberto e a Insurreição Bossa Nova” poderia ser ainda completada por novos e abrangentes relatos – sobre quem? O já citado Tom Jobim? João Donato? Johnny Alf? – como se fosse uma obra em progresso. Mas, gigantesco como é, o livro já revela um panorama geral que se enriquece pelo microcosmo, pelo específico. Está tudo lá: da importância de mestres antecessores, como Mário Reis, passando pela admiração do cantor pelas composições de Herivelto Martins e Ary Barroso até chegar ao convívio e a troca com contemporâneos como João Donato e Johnny Alf.

Tárik – com os contornos ensaísticos aperfeiçoados pelos métodos jornalísticos de investigação – rompe barreiras cronológicas e permite a quem lê mergulhos profundos, tanto em trajetórias pouco lembradas, como as de Dom Salvador, Dom Um Romão e Raul de Souza, até a busca por caminhos inovadores sem aparentes grandes vínculos, como Jorge Ben, outra esfinge da música brasileira.

LEITURA DINÂMICA E SEM REGRAS

“João Gilberto e a Insurreição Bossa Nova” – que traz o subtítulo “Outros lados da história” – é formado por capítulos e subcapítulos que se alternam e se completam. Quase como um “Jogo da Amarelinha”, de Julio Cortázar, o livro permite (e estimula) que a leitura seja dinâmica e sem regras. O próprio autor lembra pelo caminho quais textos devem ser lidos (ou relidos): um GPS para uma estrada longa, sinuosa e cheia de desvios.

Tárik respeita a intimidade de João Gilberto e passa ao largo das discussões estéreis sobre os aspectos da vida privada. Seu foco está na música a qual ele se dedica disco a disco, faixa a faixa, com a devoção de um missionário. Ao analisar o artista, o autor não apenas revela segredos de João Gilberto – me espantei em saber da troca de socos com Tito Madi e também com a negativa do maestro Claus Ogerman em aceitar fazer um segundo trabalho com ele – como dá uma geral em seus contemporâneos, em especial Tom Jobim. Assim, as mais variadas versões vão se esclarecendo em sínteses divididas em pequenos trechos que se abrem até desaguarem em um oceano de informações.

Falei em oceano e em mergulho e é exatamente isso o que João Gilberto e a Insurreição Bossa Nova permite. E aqui faço uma comparação com outro gênio surgido nos anos 50: Pelé. Os dois eram parecidos numa série de pontos: traziam influências anteriores, mas eram claramente originais. Cercavam-se dos melhores e ainda assim se destacavam. E, principalmente, faziam da simplicidade o suprassumo do requinte. Tinham um objetivo parecido que podia ser resumido em três letras. O primeiro, o gol. O outro, o som. E até para alcançar este objetivo eram semelhantes. Sabiam fazer o elaborado, o superlativo, os dribles vocais e atléticos, aquelas coisas que facilmente enchem os olhos (e os ouvidos) da plateia. Mas optaram por outro caminho, mais direto e objetivo, despojado. Pelé, pelo futebol agudo. João Gilberto, pelo canto minimalista.

Se pouco antes me referi a um oceano para explicar a grandeza e a vastidão, encerro fazendo outra comparação superlativa e grandiloquente: Tárik de Souza construiu uma catedral onde João Gilberto ocupa o altar mais elevado. Uma obra complexa e intrincada que não apenas modifica a paisagem ao seu redor como também explica como a música brasileira chegou aonde chegou – ou deveria ter chegado.

*Jornalista. Escritor. Editor da AmaJazz