Lembrando Mario Quintana

Lembrando Mario Quintana

Poeta e tradutor José Eduardo Degrazia recorda alguns encontros rápidos mas marcantes com o poeta Mario Quintana

Correio do Povo

Jurados da categoria Poesia do Prêmio Habitasul-Correio do Povo, José Eduardo Degrazia, Mario Quintana e Carlos Nejar

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Não fui amigo próximo do Mario Quintana feito o Armindo Trevisan e o Sergio Faraco, que iam na sua casa, levavam o poeta para passeios em Porto Alegre, e para almoços em suas casas. Eram seus confidentes. Não fui, também, daqueles amigos, que ele chamava de chatos preferidos, e costumava ironizar, pois os poucos momentos que os jovens daquela época tinham com ele, era de profundo respeito. Principalmente o encontrávamos na redação do Correio do Povo.

Estava sempre sozinho, na sua mesa, escrevendo com calma, ausente a tudo o que se passava na sua volta, envolto na produção dos seus textos do Caderno H. Nem chegávamos perto para não o incomodar. Íamos conversar com o Antônio Hohlfeldt, com o Paulo Gastal, para falar de textos a serem publicados, mas ficávamos mirando com o canto do olho o Poeta. Ele parecia levitar, não estava, aparentemente, ligado ao matraquear das máquinas de escrever, que impunham um ritmo uníssono ao ambiente. Ele estava noutra. Daquela mesa o poeta armava todo um mundo, e a cada sábado apareciam no Caderno de Sábado os poemas e prosas que sempre nos espantavam.

Nos lançamentos de livros e autógrafos estávamos sempre presentes. Temos nas páginas iniciais desses livros autografados, palavras de incentivo ao nosso trabalho. Guardo esses volumes com muito carinho na minha biblioteca. Lembro que ele dava atenção ao que estava acontecendo, falando bem de, por exemplo, poetas novos como Nei Duclós e Luiz de Miranda. Não era, como muitos pensavam, um escritor preso ao seu tempo, à sua própria geração. É claro que, manifestadamente, não gostava da poesia hermética que se estava fazendo na época, e, que parecia dominante.

Há um momento para mim inesquecível. Foi quando fomos jurados do prêmio Habitasul-Correio do Povo. Um prêmio que revelou muitos escritores nos anos 80. Fomos jurados do prêmio de poesia, Mario Quintana, Carlos Nejar, e eu. Discutíamos os poemas apresentados, logo chegávamos a um acordo de qual seria o melhor para vencer o prêmio. Depois saíamos a andar pelas ruas. Eram momentos em que aproveitávamos para caminhar por Porto Alegre. Nessas caminhadas e visitas ele mostrava o humor do Quintana, ferino e feliz. Na caminhada entre o Correio do Povo e a sede da Habitasul passamos pelo escritório de um advogado. Ele tinha na entrada uma estátua de um efebo. Quintana não perdoou: o retrato do doutor quando jovem? Tenho foto de nós três perto da sede da Habitasul, no centro. Posso afirmar que foram os melhores momentos, para mim, esse convívio com os dois grandes poetas. Conheci muitos autores nacionais e internacionais, mas este encontro com o poeta Mario Quintana, e o Carlos Nejar, foi inesquecível. Uma outra ocasião semelhante ocorreu no encontro literário de Passo Fundo, quando estive com J. J. Veiga e Marcos Rey, um mais diferente do outro que podíamos imaginar. Porém, cada um – à sua maneira –, me influenciavam e influenciam ainda. A foto com eles é, também, uma grande lembrança.

Quando a professora Tânia Carvalhal me convidou para escrever a apresentação do livro Esconderijos do tempo, que sairia nas obras completas organizadas por ela para a editora Globo de São Paulo em 2005, fiquei muito feliz, pois queria abordar uma questão, para mim importante, que era o do poeta ainda ser considerado um passadista, poeta que não tinha evoluído. O próprio poeta embaralhava as coisas com a sua conhecida frase: “Eu nunca evoluí, sempre fui eu mesmo.” Os seus críticos aproveitavam a deixa para dizer que Quintana era um poeta menor, não entendendo o fino humor do autor. Pedindo perdão, por citar a mim mesmo no prefácio deste livro, digo: “O poeta abriu outros leques nas suas obras ao uso do fantástico e do absurdo, aproximando-se do realismo mágico dos anos 60-70”. Junto com Apontamentos de história sobrenatural e Baú de espantos, acredito que o lirismo de Quintana, sem perder nunca sua naturalidade e sensibilidade, alcançou momentos altos de expressão da alma contemporânea.

Maravilhoso poeta o Mario Quintana, avesso a escolas e modismos, e, no entanto, ligado ao essencial da vida, onde o lirismo é tão primordial como um gole de água bebido no escuro. Ao mesmo tempo sendo um referencial de modernidade da linguagem.

Ter convivido com ele esses poucos momentos preenchem de alegria, até hoje, a minha vida.

Ler Mario Quintana sempre, como se fosse para nós, poetas da província, a fonte primordial, de onde bebemos a água lustral da poesia.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895