Luiz de Miranda: Amor a Porto Alegre

Luiz de Miranda: Amor a Porto Alegre

José Eduardo Degrazia*

Poeta Luiz de Miranda e seu amor pela capital dos gaúchos em versos

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Nascido em 1945 na cidade de Uruguaiana às margens de um caudaloso rio, o Uruguai, que molda suas memórias de infância e faz parte do seu imaginário poético, Luiz de Miranda, com exceção de alguns períodos em que viveu no Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires, passou quase toda sua vida em Porto Alegre e a ela dedicou grande número de poemas. Duas gerações o separam dos poetas da geração modernista, Athos Damasceno Ferreira, Theodomiro Tostes, Augusto Meyer e Mario Quintana que também escreveram sobre a capital dos gaúchos. Isso se demonstra facilmente na mudança de tom, de voz, de imaginário, de estilo, e de visão de mundo que o diferencia dos demais. Começando a escrever nos anos 60, passando pelo impacto político do golpe de 64, escreveu o poeta sob o signo do social, mas diferenciando-se dos seus pares da Geração de 60 por um lirismo radical onde a mulher ocupa lugar principal, obsessivo, dominante. Mesmo tratando de temas épicos, o poeta não se deixa de fora do poema, a subjetividade transforma a luta coletiva em sensações que atingem todos os sentidos. Diferenciado, portanto, dos poetas seus contemporâneos, e, também, dos que se seguiram a ele, Luiz de Miranda escreveu uma obra torrencial e poderosa, com grandes títulos publicados pelo menos entre o final dos anos 90 e os anos 2.000. Dentre essa obra tem lugar especial o livro onde demonstra o amor por Porto Alegre, “Porto Alegre, roteiro da paixão”, de 1985 (os poemas abaixo são retirados da antologia publicada pela Editora Global, São Paulo, 2006).

Sobre este livro é importante salientar que, diferente dos poetas anteriores, Miranda não se deixa tocar pela nostalgia de uma cidade do passado, mas sim por uma cidade presente, no seu turbilhão de vidas, no ato de viver o aqui e agora. É por isso, com licença do poeta Ferreira Gullar, um poema sujo onde o lirismo cede espaço para a constatação da solidão, da dor, da perda e do mal-estar da grande cidade. Não há mais pureza aqui, existem mendigos, prostitutas, bairros pobres e perdidos. Regina Zilbermann, na citada antologia, p. 10, elucida:


Quando não se refere ao amor à mulher, suas realizações ou decepções sofridas, Miranda expõe sua segunda paixão: a cidade de Porto Alegre. Sem abdicar do sentimento amoroso provocado pela terra natal, a Uruguaiana da infância, personagem de muitos versos, mas matéria sobretudo da saudade e da nostalgia, o poeta entrega-se inteiramente à cidade de adoção. Homem que percorreu cenários tão distintos, como o pampa que atravessa nos Cantos de sesmaria, assim como as cosmopolitas São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires, onde viveu partes de sua vida, Luiz de Miranda, tal como Mario Quintana, a “cidade do (s)eu andar”. E, como o conterrâneo de Alegrete, o uruguaianense olha o “mapa da cidade”, não, porém, como quem examinasse “a anatomia de um corpo”, mas como o caminhante que percorre todas as vias, bairros e vistas possíveis, à luz do dia e à noite, vasculhando os lugares e identificando-se com os seres que os habitam.

A cidade de Porto Alegre, para Luiz de Miranda, se confunde com a humanidade que a habita e que, por sua vez, vive no interior do poeta. Mesmo vivendo o duro ofício de existir numa cidade muitas vezes inóspita para muito dos seus moradores, vivendo a marginalidade de muitos, o poeta se reconcilia com ela, e, como Quintana, se define como um ser que passa, mas que sobrevive na poesia e na cidade que o inspirou. Dentre os poetas que cantaram Porto Alegre, Luiz de Miranda ocupa um lugar de excepcionalidade. Sua paixão e entrega a ela o tornam o poeta das gentes que a sentem e a sofrem. O coração de Porto Alegre bate no coração do poeta com o ritmo do seu povo.


Poemas de "Porto Alegre 
Roteiro da paixão"

XXV
A cidade vem me caminhando os girassóis
do sonho. Como tormentas de folhas, de um
outono alucinado, joga no espelho da noite
os pesadelos da vida e da morte. O ar mofado
da ausência, como uma flor exilada ao silêncio.
A cidade é uma beleza às avessas. Que não
ilumina as distâncias do caminho. O caminho
é pobre. No ônibus da Vila Safira o destino
balança o sangue triste e nervoso da miséria,
e os rostos amanhecem uma estranha beleza,
a que voa acima da constelação do olhar,
a enferma beleza dos pobres, que em seus
ossos tímidos roem o cálcio natural da vida
e da liberdade. Seria menos pobre e infeliz,
se a cidade não fosse Porto Alegre? Se fosse
uma cidade austera, religiosa, branca, democrática
ao norte da Europa, com frio seco e papoulas
domésticas seríamos felizes?
(...)
XXVII
Respira por mim Porto 
Alegre
mais triste que alegre
eu que procuro cantar
sem afastar a dor maior
que é a dor geral
que não tem nome
porque é de todos
principalmente dos homens
humildes e humilhados
que trabalham suas vidas
à luz da miséria
de cada dia
Que nos arrabaldes 
podemos vê-los indecifrados
na paisagem de espinhos
desta cidade tão desgastada
pelo egoísmo
que flor preferida é o dinheiro
que seca o coração
e põe os olhos
no horizonte sem luz
XXVIII
Porto Alegre Porto Alegre
eu te canto para além
de toda a miséria
porque em ti vive o melhor de mim
e somos a mesma semelhança a luzir às frestas
desamparadas do meio-dia
Eu te canto, cidade,
como minha pátria 
loucura e paixão
onde meus ossos encontram
o sono mais pesado
e me concilio num caminho para morrer

 

* Escritor e tradutor. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895