Mario Quintana: histórias e memórias
Jornalista, professor e crítico José Hildebrando Dacanal relembra de algumas vivências com Mario Quintana na redação do Correio do Povo
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Eram os primeiros dias de agosto de 1966, em Passo Fundo. Há pouco tendo deixado o Seminário Maior São José (hoje Instituto de Filosofia Berthier - Ifibe), eu lecionava em dois colégios. E já trabalhava como redator/repórter do Diário da Manhã, posto para o qual fora indicado pelo então mais famoso advogado da região do Planalto, Dr. Carlos Galves, cuja esposa, D. Maria Emília, era prima de Mario Quintana.
Naquele domingo, como de costume, comprei o Correio do Povo, no qual interessava-me particularmente a página literária. Sentado em um banco da Praça da Matriz, abri o jornal, então em formato standard. E lá estava: toda ela era dedicada ao aniversário de Mario Quintana, que completara 60 anos. E eu jamais poderia imaginar que seis ou sete meses depois estaria trabalhando quase ao lado do ilustre aniversariante, na então e ainda atual Redação daquele jornal na esquina da rua Caldas Júnior. Pois aconteceu.
E assim, graças a um golpe de sorte – que mereceria uma crônica especial -, lá estava eu, no início de 1967, com pouco mais de 20 anos, na Redação do terceiro ou quarto maior jornal do país, traduzindo telegramas da UPI, AP, France Press e Ansa, vindo diretamente da roça, da Idade Média e dos quartéis da herdeira do Império Romano...E em meio às feras do jornalismo gaúcho de então, em que se destacavam Paulo de Gouvêa, Adail Borges Fortes, Antônio Carlos Ribeiro, Carlos Raphael Guimarães, P.F.Gastal e outros. E, um tanto surpreendente para a época, três ou quatro mulheres, entre as quais Maria Abreu, crítica musical, se a memória não me trai. E, claro, o protegido do Dr Breno Caldas, Mario Quintana.
Dante e o casamento. De poucas palavras e um tanto ranzinza, seu Mario – como todos o chamavam – passava o tempo sentado em sua mesa na Redação, rabiscando suas coisas, entre as quais certamente Do Caderno H, sua coluna semanal de epigramas. Pelo que sei, não tinha outras obrigações. Mas era assíduo frequentador do bar da Empresa, no terceiro andar, do lado oposto aos estúdios da Rádio Guaíba. E pelo final da tarde lá estava ele com seu lanche indefectível: café preto, quindim e cigarro.
No bar, ao contrário do que ocorria na Redação, ele falava bastante. Era ali que, às vezes, ficávamos conversando. Principalmente depois da criação do Caderno de Sábado, do qual passei a ser colaborador assíduo com artigos sobre literatura e cinema. Seu Mario não era fácil. Irônico, sarcástico e – quando se irritava – um tanto debochado, tinha tiradas geniais. Como nunca tive vocação para ser um Boswell ou um Max Brod, eu apenas ouvia. E nunca as anotei. É tarde para lamentar. Mas me lembro de uma ou duas.
Ele me chamava de guri. Um dia ele chega, senta a meu lado e me pergunta à queima-roupa:
- Guri, qual é o texto mais erótico de toda a literatura ocidental?
Eu disse que não sabia. E ele:
- Você conhece o episódio de Paolo e Francesca, da “Divina Comédia”? Pois é, lá Francesca, relatando a Dante seu encontro com seu amante, diz assim:
La boca mi bacciò tutto tremante (...) .Quel giorno più non vi leggemo avante.
- Entendeu, guri? Dante não descreve nada. E deixa que o leitor possa imaginar tudo! Um dia inteiro, guri!
Por aquela época, seu Mario já era famoso em Porto Alegre. E de vez em quando a redação era invadida por bandos de crianças e adolescentes barulhentos, liderados por uma ou duas professoras, que vinham conhecer o poeta.
Um dia – sempre no bar! – seu Mario chega e me diz:
- Imagina, guri, hoje me perguntaram por que eu nunca tinha me casado!
E eu, como sempre quieto. E ele continua, mais ou menos assim:
- Aí eu contei. Não é que eu não quisesse. Quando eu trabalhava nos Correios eu tinha uma namorada, colega de trabalho. Mas um dia o chefe trocou nossos horários. E a gente nunca mais se encontrou...
E ria, com aquele olhar irônico de sempre! Realmente, seu Mario era uma figura...
Uma lição de vida. Em outra ocasião, lá estava eu comendo meu farroupilha (1) de janta, quando ele chega e senta a meu lado. E começamos a conversar. Não lembro o motivo, mas em certo momento ele se irritou e me tratou um tanto rispidamente. Eu, querendo acalmá-lo, disse, respeitosamente:
- Mas o que é isso, seu Mario?! Nós somos amigos!
E ele, mortal:
- Não, nós não somos amigos! A amizade pressupõe uma série de experiências comuns. E nós não temos nada disso!
E se levantou da banqueta, irritado, e foi embora. E eu fiquei lá, depois de aprender uma das grandes lições de minha vida, que nunca mais esqueci. No dia seguinte, é claro, a irritação desaparecera. Seu Mario era assim.
Passaram-se uns anos, eu terminara o curso de Letras, viajara para a Alemanha, ampliara e organizara meus conhecimentos sobre a literatura ocidental., retornara um ano depois e retomara meu posto como professor da Universidade e na Editoria Internacional do jornal. E lá estava eu, de novo, no bar, conversando com o poeta.
Ele, o velho bruxo, o gênio improvável e depaysé da periferia europeia, e eu, quase quarenta anos mais jovem, um guri insciente das dores do mundo e dos mistérios da vida. Mas com suficiente conhecimento para saber que Mario Quintana podia ser inscrito entre os herdeiros da grande tradição lírica euro-ocidental clássica. E um dia eu disse isso a ele. E ele:
- Por que V. não escreve isso, guri?
Pano rápido – como se dizia antigamente. E nada mais lembro. Creio que nada respondi e tudo ficou por isso mesmo. Pouco tempo depois deixei o jornal para poder cursar Economia à noite. E nunca mais nos encontramos.
A lírica ocidental. Este episódio me causou certo desconforto, e creio ser a primeira vez que a ele me refiro publicamente. Mas a verdade é que, como professor de Literatura Brasileira, sempre utilizei exclusivamente a narrativa em sala de aula. Por motivos óbvios. Em primeiro lugar porque, em termos pedagógicos, trabalhar com ela é mais fácil e, principalmente, mais produtivo. Em segundo, porque, por sua própria natureza, o romance apresenta um vasto, diversificado e até mesmo instigante panorama da sociedade brasileira dos séculos XIX e XX. Em terceiro, porque sua importância na produção literária brasileira é tal que não há termo de comparação com a lírica e a dramaturgia, ombreando inclusive com a narrativa italiana, alemã, portuguesa e norte-americana do referido período. Mesmo deixando à parte Machado de Assis, cujos contos e romances estão entre os melhores da narrativa ocidental.
Tais temas, por sua importância literária e cultural, mereceriam longa e detalhada análise. Creio, porém, que já não mais existam as condições históricas nem, muito menos, o interesse e a competência para tanto. Era uma vez a literatura... Seja como for, é evidente que a lírica brasileira apenas esporadicamente elevou-se ao nível da grande tradição euro-ocidental, que vai dos jônio-eólios (Safo, Arquíloco etc.) e latinos (Catulo, Horácio, Ovídio etc.) a Leopardi, Fernando Pessoa e T.S. Elliot, passando pelos renascentistas italianos (Dante, Petrarca) e franceses (Ronsard, Villon), pelos metaphysical poets (Donne, Marvell etc.), por Camões e pelos ditos românticos alemães (Goethe, Hölderlin, Schiller) e ingleses (Shelley, Keats etc.).
O lugar de Quintana. É evidente também que, à parte Camões e Fernando Pessoa, Mario Quintana é um dos raríssimos casos em que a lírica de língua portuguesa elevou-se ao nível desta grande tradição. Por quê? Porque em Mario Quintana, particularmente em seus sonetos, estão presentes, em nível insuperável, as qualidades desta, como diria Aristóteles (2), terceira manifestação da arte da linguagem: a total inteligibilidade, a absoluta concisão, a perfeição estilística e a apodítica imperatoria vis, todas elas a serviço de um objetivo único: a meditação sobre um tema de perene validade universal concernente ao mundo e à natureza humana – enquanto esta continuar a mesma, como disse Tucídides.
Eu deveria ter escrito isto há cerca de meio século. Sim, é verdade. Como é verdade também que Mario Quintana tinha plena consciência de seu lugar na longa tradição da lírica euro-ocidental. Porque
Estes que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão,
Eu passarinho!
não é apenas uma boutade inteligente ou um simples bom mot, segundo geralmente se pensa. Pelo contrário, é o grito de um gênio solitário e consciente, ao mesmo tempo e paradoxalmente, de seu lugar no mundo e de seu depaysement. É a versão epigramática e contundente do Exegi monumentum aere perennius (3) de Horácio. Afinal, como disse Fernando Pessoa,
Nem precisam de crentes
Os que de si o foram.
NOTAS
(1) – Sanduíche de pão (cacetinho), presunto (ou mortadela) e queijo, popular à época.
(2) – A poética. A rigor, dela Aristóteles não trata, possivelmente por ela ligar-se então à música, como o próprio nome o indica (lira). A respeito, v. Dacanal, J.H. “Sobre os gêneros literários”, in O que é narrar? Porto Alegre, BesouroBox,2021
(3) – Construí um monumento mais perene que o bronze. Odes, I,22.