Não-lugares de deslocamentos semânticos e geográficos

Não-lugares de deslocamentos semânticos e geográficos

Niura A. Legramante Ribeiro*

"Isto é ao que podem aspirar as imagens apresentadas por Igor Sperotto nos trabalhos da série 'Hotéis no Exílio', 2021, em que fotografou fachadas e letreiros de hotéis simples, em diferentes bairros de Porto Alegre..."

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Em 18 de setembro de 2021, Porto Alegre foi contemplada com um novo espaço para exposições de fotografias, o “V744atelier”, graças à iniciativa da artista – que também trabalha com práticas fotográficas – Vilma Sonaglio, cujas obras inauguraram o espaço. O projeto “Eu convido que convida”, criado por Sonaglio para a realização de exposições, como o próprio nome indica, toma forma por um convite a um artista que convida outro. A geografia do ateliê – uma sala e um corredor na entrada da casa – propicia a realização de duas exposições ao mesmo tempo. Assim, André Venzon convidou Igor Sperotto para apresentar seus respectivos trabalhos, de 19 de dezembro de 2021 a 25 de fevereiro de 2022.

Entre as infinitas possibilidades que existem para interpretar as imagens, pode-se partir da pergunta sobre o que elas podem evocar? Uma resposta possível é a memória e o desejo, que podem se deslocar a diferentes tempos e espaços. Isto é ao que podem aspirar as imagens apresentadas por Igor Sperotto nos trabalhos da série Hotéis no exílio, 2021, em que fotografou fachadas e letreiros de hotéis simples, em diferentes bairros de Porto Alegre, que possuem nomes de outras cidades ou países do Exterior: Hotel Roma, Hotel Milão, Hotel San Francisco e Hotel Uruguai. Por serem os hotéis locais de passagem – transitórios, portanto –, não fixam identidades, e por terem nomes que remetem a locais diferentes de onde estão instalados, pode-se dizer que eles cumprem duplamente a função de não-lugares, como proposto por Marc Augé (1994, p. 73), em razão de não serem em si lugares antropológicos: “se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não se pode definir como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar”. 

O artista escolheu o cartão postal, dispostos em quadros, como suporte para a impressão das imagens com as fachadas dos hotéis e, no verso para simular a função do postal, escreveu uma mensagem que caracteriza a ideia de envio e de comunicação com um receptor. Nesses postais, há um QR Code que leva a um site no qual o projeto se expande. Assim, o substrato que ancora as configurações da série está na ideia de deslocamentos: das chegadas e partidas dos hóspedes, dos nomes dos hotéis que referenciam outros locais que não onde se localizam os imóveis, da ideia tradicional de envios e recebimentos de postais, do ícone que leva a um site e, por fim, das sonoridades de carros circulando, buzinas e sirenes que acompanham o backlight com uma foto mostrando o letreiro do Hotel Minuano. Sperotto complementa a fotografia com aquilo que ela não pode oferecer, uma dimensão sensorial auditiva, podendo criar uma narratividade imaginária de que a pessoa presente na imagem poderia estar experienciando a cidade viva, com uma pluralidade de barulhos. Embora o significado de um som possa ser relativo às experiências sociais e biográficas de cada um, tal sonoridade aguça de forma mais forte a presença do urbano, disparando na memória um sentido de urgência de tempo. Se as imagens dos hotéis podem provocar lembranças agradáveis de viagens, o som de sirene de ambulâncias ou dos bombeiros corta o silêncio e desperta para um estado de atenção, de alerta, dado seu significado; a estridência das buzinas lembra que a cidade é pulsante. 

É muito instigante a forma como Sperotto fez a ocupação do espaço, pois pode reverberar espaços de antigos hotéis. Os trabalhos estão dispostos em uma parede de corredor comprido, não muito largo e, ao adentrar, já se observa uma mesinha com uma campainha e com os postais das imagens dos hotéis, típica situação que pode reproduzir os halls de entradas estreitas de hotéis antigos, mas encontrados ainda hoje. Para o artista, a ideia da campainha também tinha o objetivo de que o visitante ficasse tentado a tocá-la e pudesse observar as fotos dos postais ainda com o som ecoando na mente. Então, o contexto onde se encontram os trabalhos já provoca lembranças de antigas visitas a hotéis com tais características. 

Criar a ambiência de um hall de determinadas tipologias de hotéis foi a ideia que Igor teve assim que conheceu o espaço do corredor da casa do ateliê V744. Esta concepção reverbera antigas experiências de quando, após sua formatura, foi morar em Londres, passando três anos na Europa e, depois, circulou por dez meses na Ásia e se hospedou em uma centena de hotéis e pousadas bem simples. Portanto, foi a partir de suas vivências como viajante que definiu os elementos realmente essenciais e mais característicos desse tipo de hotéis que seriam justamente a campainha e a mesinha com os postais. A ideia era “ambientar a pessoa, assim que ela entrasse no espaço, e os hotéis Roma e Uruguai têm bem forte essas características na recepção”, segundo contou o artista à autora (2022). Aspectos das biografias dos artistas podem formar os arcabouços rememorativos em suas práticas poéticas. Apreender partes da cidade por imagens, textos e sonoridades é, também, contar fragmentos de sua identidade ao ativar suas memórias de viagens.

Gottfried Bohem (2015, p. 29), lembra que as imagens dão acesso ao que se pode chamar de “pensamento com olhos”. No espaço entre o olhar e a imagem se impõe uma atmosfera de um estado de pensatividade do observador, o que gera também deslocamentos imaginários dados pela semântica dos nomes dos hotéis por instigar o desejo de conhecer as cidades ou de rememorar lembranças para quem lá esteve. Imaginação e memória carregam o traço do ausente. As imagens de Hotéis no Exílio são evidências de um presente, pois os hotéis ainda funcionam, mas, também, rememoram um passado, porque alguns deles existem há mais de quarenta anos. Este trabalho contém o potencial de reativar o vivenciado, pois pode acionar um disparador de memórias sobre as impressões instaladas no presente. Lembrar aponta para vínculos com o passado.
 

* Professora do PPGAV/DAV/Instituto de Artes/Ufrgs.

REFERÊNCIAS
AUGÉ, Marc. Não-lugares, introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.
BOHEM, Gottfried. “Aquilo que se mostra. Sobre a diferença icônica” in ALLOA, Emmanuel (org). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.


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