Caderno de Sábado

O misterioso nariz

Médico, escritor e dramaturgo, Gilberto Schwartsmann divulga um trecho inédito da sua mais nova peça chamada ‘Contos Roubados’

Ópera "O Nariz", de Dimitri Shostakovich, em montagem no The Metropolitan Opera, em Nova Iorque, em outubro de 2013
Ópera "O Nariz", de Dimitri Shostakovich, em montagem no The Metropolitan Opera, em Nova Iorque, em outubro de 2013 Foto : Bengt Nyman / Wikipedia Commons / CP

Goethe levou quase sessenta anos escrevendo o seu Fausto. Há registros de que começou a criar a obra quando era ainda bem jovem. Ele concluiu a primeira parte em 1806 e a segunda em 1831, sendo que a obra só foi publicada no ano seguinte, depois de sua morte. Comprei há cerca de dez anos a minha edição do Fausto, em inglês, pela Dodd, Mead & Company, de Nova York, com tradução de John Anster. Foi de um barbeiro russo, de São Petersburgo, e a negociação deu-se numa circunstância estranhíssima. Eu fiquei contentíssimo com a aquisição desta obra, considerada uma das mais importantes da literatura alemã. As ilustrações de Frank Gregory são belíssimas.

A tragédia parte de uma história popular sobre o doutor Fausto, um homem sábio que faz um pacto com Mefistófeles, o demônio, vendendo a sua alma, em troca da realização de seus desejos. Da primeira obra dedicada à lenda, escrita por Johann Spiess em 1587, ao Fausto, de Goethe, ao início do século XIX, o mito permeia a cultura ocidental e serve de arquétipo para várias criações de literatura, cinema, teatro, música e outras formas de expressão artística que surgem depois. Fernando Pessoa escreve a peça teatral intitulada Fausto: uma tragédia subjectiva. Em 1947, Thomas Mann publica o seu romance clássico, de nome Doutor Fausto, com o personagem do compositor Adrian Leverkühn. Outra grande obra – brasileira – também se dedica ao tema: Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.

A história da aquisição da minha preciosa edição tem, contudo, outro desdobramento. Eu saía de um concerto no Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, com Leonor, quando um jovem com um sotaque árabe muito carregado me tocou no braço. Eu me assustei, mas logo percebi que ele tinha um sorriso nos lábios e um ar amigável. Perguntou se eu me recordava dele: era Mohamed, filho do Senhor Abdul, meu amigo da livraria de Esmirna. Eu o abracei e o beijei na bochecha esquerda! Eu amava o meu amigo Abdul e a bela Esmirna, a linda cidade turca, na costa do Mar Egeu, que fora fundada pelos gregos, ocupada depois pelos romanos e reconstruída por Alexandre, o Grande, e que depois fez parte do Império Otomano.

Acho que uns vinte anos antes, quando fui visitar uns sítios arqueológicos da cidade e o Castelo de Kadifekale, que ficava bem no alto de um penhasco, conheci Abdul e nos tornamos amigos para sempre. Mohamed, seu filho, era uma criança. E agora, que surpresa! Mohamed tornara-se um homem. Era estudante de Letras em São Petersburgo. Fiquei emocionado em revê-lo. Foi com Abdul, pai de Mohamed, que eu vivi uma das situações mais estranhas e até hoje inexplicáveis da minha vida de colecionador de livros raros. Foi quando adquiri o meu exemplar raro de Fausto, de Goethe.

Estávamos Abdul e eu numa barbearia na periferia de Moscou. Eu iria adquirir esta maravilhosa edição do Fausto, de Goethe, datada de 1894, que tenho no meu acervo, do dono da barbearia, que era seu amigo, de nome Ivan Iákovlevitch. Ele atendia um cliente, quando deu uma pausa para fazer o seu lanche e depois retornar ao trabalho. Foi quando Ivan encontrou um nariz – que não era o seu – no interior do pão. O nariz pertencia ao seu conhecido, o major Kovaliov. Assustado com a possibilidade de que algum policial ou autoridade entrasse na barbearia e constatasse a situação, Ivan Iákovlevitch escondeu o nariz numa gaveta.

Porém, a sua esposa desconfiou e abriu a gaveta para ver do que se tratava. Ela ficou indignada com a presença daquele nariz e gritou para que Ivan Iákovlevitch desaparecesse imediatamente com aquela coisa da barbearia. Enquanto isso, assustado e em sua casa, o major Kovaliov já havia feito de tudo para saber do paradeiro do seu nariz, mas se deparava sempre com algum conhecido e sentia-se constrangido pelo seu nariz. Ele ficou perplexo quando notou, numa manhã, ao acordar, que no lugar do seu nariz havia apenas uma superfície plana.

Decidiu recorrer a vários meios para recuperar o que lhe era de direito. Andou pela cidade meio disfarçado e terminou por identificar o seu nariz no rosto de um conselheiro do governo. Antes que o major Kovaliov tomasse qualquer atitude no sentido de recuperar o seu nariz, o conselheiro saiu às pressas do local. O major foi até um posto policial e não encontrou o comandante. Ele dirigiu-se ao jornal, para solicitar que fosse publicado um anúncio com a descrição detalhada do seu nariz, mas o rapaz que o atendeu estranhou o pedido. Ele não quis perder tempo e foi diretamente à residência do chefe da polícia, que ficou confuso com a história e com a ausência do nariz do major, negando-se a despachar qualquer requerimento oficial sobre o caso.

Kovaliov mal se aguentava de tanto ir para lá e para cá à procura do seu nariz e retornou à sua casa. Depois de refletir sobre o que se passara, concluiu que a culpa era da esposa do seu superior, senhora Podtótchina, que queria que ele se casasse com a sua filha. Foi quando um policial bateu à sua porta. Kovaliov respirou aliviado, pois pensou que haviam localizado o seu nariz. E era o caso. Ivan Iákovlevitch o havia levado, escondido num embrulho de papel, até a delegacia. Porém, haveria de se identificar um médico que fosse habilitado a colocar o seu nariz de volta no devido lugar. Kovaliov procurou vários profissionais, sem sucesso.

Na manhã seguinte, misteriosamente, o nariz reapareceu no seu lugar de origem: o rosto do major Kovaliov e sem um motivo detectável. Surgiram então vários boatos entre a população, sem que ninguém pudesse entender o que realmente havia sucedido com o nariz. Eu mesmo fiquei desnorteado com a história, ao ponto de me esquecer da razão de minha visita à barbearia de Ivan Iákovlevitch – que era relacionada com a aquisição da preciosa edição de Fausto, de Goethe. Abdul ficou também atordoado com o fato de que o nariz de Kovaliov desaparecera sem causa aparente, depois fora visto sozinho na barbearia, estivesse no rosto do conselheiro do governo e após simplesmente retornasse ao rosto do major.

Quando eu me recompus, Ivan Iákovlevitch estava falando com o dono de uma livraria próxima da barbearia, que ouvia atentamente a história sobre o desaparecimento do nariz do major Kovaliov e o seu reaparecimento na barbearia e depois nos demais destinos. Foi quando eu os interrompi, manifestando também a minha surpresa com o caso, recordando-me do propósito da minha visita à barbearia acompanhado por Abdul. Mencionei também a semelhança da circunstância com um conto de Gógol. Aproveitei a ocasião e falei ao barbeiro do meu interesse na compra da sua edição de 1894 do Fausto, de Goethe.

Ele falou-me do preço, que, embora elevado, justificava-se pela raridade da obra e pelo seu estado de conservação. Eu concordei com ele, abri a minha carteira, retirei os rublos e fiz o pagamento.

Abdul e eu saímos da barbearia com a rara edição do Fausto, de Goethe, felizes, especialmente por estarmos também com os nossos narizes no rosto e funcionando perfeitamente. Recordei-me da ópera de Dmitri Shostakovich, O nariz, que foi inspirada no conto de Gógol, que há pouco aludi, sobre um oficial de São Petersburgo cujo nariz sai de seu rosto e busca viver de modo independente – mas não por muito tempo.

A história do nariz apareceu nas primeiras décadas do século XIX na Sovreménnik, uma revista dirigida pelo poeta russo Aleksandr Puchkin. Mohamed – agora um homem das letras – revelou-me a sua preocupação com o fato de que eu insistia em utilizar as histórias que lia nos livros de autores consagrados, mas para consumo próprio. E mais grave, eu roubava o enredo de contos ou romances conhecidos e os punha nos meus livros. Na opinião do jovem Mohamed, não seria uma atitude correta da minha parte com o leitor e tampouco com os autores das obras. Tratava-se de um caso típico de apropriação indevida da literatura alheia.

Eu ponderei que muitos críticos e mesmo autores pensavam ser impossível a originalidade. E que de escutar, ver ou ler aqui e ali, nós acabávamos por absorver as criações alheias. E isso não seria necessariamente negativo. Abdul complementou a minha defesa, afirmando que os romanos utilizavam pedras para rabiscar as notícias do dia. Depois, eles raspavam a pedra até fazerem desaparecer as notícias e colocavam sobre a mesma superfície as notícias seguintes. Eram os chamados “palimpsestos”. Mohamed gostou da história, mas não da argumentação. Ele disse preferir as novas ideias.

Com a minha edição raríssima do Fausto, de Goethe, de 1894, debaixo do braço, eu me defendi, aludindo às tantas vezes em que Deus e o demônio mediram forças na literatura. Mohamed entendeu a minha comparação, mas se despediu movendo a cabeça, como se tivesse concordado comigo apenas parcialmente e para me agradar. Afinal, eu o conhecia desde criança. Eu fiquei muito contente com a sua atitude e disse a Abdul que ele educara muito bem o seu filho. Mohamed tornara-se um pensador independente. É importante questionar e não aceitar a realidade simplesmente como um fato consumado.

Sempre gentil, Abdul sugeriu que eu talvez devesse parar, ao menos por um tempo, de roubar a literatura dos outros. Era constrangedor o leitor ler os meus textos e reconhecer neles outros autores. Seria melhor que eu – Gilberto – tivesse um pouco mais de originalidade. Eu entendi a sua preocupação, mas resignei-me a ser o que sempre fui: um roubador de textos alheios. Nós nos despedimos e saímos um para cada lado, pensando no absurdo sem precedentes da história. Pior foi o major Kovaliov, que considerou o fato como consumado e saiu pelas ruas a procurar o seu próprio nariz.