“O ponto de partida é uma dúvida de linguagem”, frisa Reginaldo Pujol Filho

“O ponto de partida é uma dúvida de linguagem”, frisa Reginaldo Pujol Filho

Escritor, professor, tradutor e doutor em Letras lançou “Nosso Corpo Estranho” e conversou com o Correio do Povo sobre a sua obra, carreira e a Feira do Livro

Luiz Gonzaga Lopes

Reginaldo Pujol Filho lançou o seu livro "Nosso Corpo Estranho" nesta quarta-feira, dia 13 de novembro, na 70ª Feira do Livro de Porto Alegre

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O escritor, professor e tradutor Reginaldo Pujol Filho, lançou o livro, “Nosso corpo estranho” (Fósforo) na Clareira, em outubro, e na Feira do Livro, nesta semana. O projeto é inusitado na forma e na história que narra, do artista João Pedro Bennetti Bier, cujo resgate se dá após a sua morte por textos de parede de uma retrospectiva de sua obra. O CS entrevistou o autor de “Só faltou o título” (Record, 2015), curador da coleção Gira de literaturas em língua portuguesa da Dublinense.

Lembro de conversas nossas em livrarias, quando falavas deste projeto sobre um artista, mas com outro formato. Como o livro se situa no cabedal das tuas criações?

Acho que ele é a inquietação do momento, um momento longo, que se iniciou em 2014, quando comecei a imaginar esse projeto. Tenho a impressão de que, entre os pontos de partida dos meus livros, sempre está uma dúvida sobre linguagem. Uma dúvida sobre se consigo dar conta de uma forma de um desafio de linguagem. E, no caso deste livro, surge menos essa ideia de sátira do campo das artes visuais, e mais a constatação de que as exposição de artes, muitas delas, se parecem com narrativas literárias. Tem enredos, viradas na jornada dos personagens, episódios, capítulos, tudo amparado por textos. Ao perceber isso, me perguntei se eu conseguiria usar isso para narrar uma história, a vida de um personagem, que inevitavelmente seria um artista. Mas acho também que o processo do livro marca uma abertura muito importante para mim. Para o livro, estudei o universo das artes visuais, me aproximei de artistas e comecei a desenvolver novos e verdadeiros interesses que, dez anos depois, ainda são intensos e mexem tanto com meu lado criador, quanto com meu lado pesquisador.

À maneira Borgiana, Calviniana ou de Cervantes, tu constróis a trama por textos que são imagéticos. Como foi o processo até chegar ao produto final do livro (ou pode ser um work in progress)?

Borges, Calvino e Cervantes são muito importantes para mim como leitor e escritor e fico feliz que se possa vê-los nesse trabalho. Também fico feliz com essa ideia de “imagético” que tu vê no texto, porque essa era uma das dúvidas, se esses textos expositivos todos, além de contar, incitariam a imaginar trabalhos artísticos. Mas o processo foi um longo trabalho de pesquisa e testes em vários sentidos. Logo de início percebi que quem eu era em 2014 só seria capaz de escrever uma caricatura sobre as artes. Então, fui ler, assistir dezenas de biografias e documentários para pensar como se forma um artista. Ou como se narra a formação de um artista. Vendo as recorrências desse material (anos de formação, relação com os pais, sexualidade, primeiros trabalhos, etc.) fui tentando preencher esse imaginário com alguém que fosse ficando vivo para mim. Em paralelo, passei a frequentar uma disciplina da pos-graduação no Instituto de Artes da Ufrgs, conversei muito com meu amigo e artista Guilherme Dable sobre processos artísticos, tive conversas importantíssimas com a artista e hoje querida amiga Elida Tessler, que foram me ajudando a conhecer o João Pedro. Só depois disso, pude começar a pensar no que seriam as obras desse sujeito e como falariam de seu trabalho. Em paralelo, visitei muitas exposições, li muitos catálogos, pesquisando o que chamo de “texto médio” das exposições. Não são os grandes de textos de curadoras e curadores, historiadoras e historiadores de excelência, mas aqueles que repetem fórmulas, que geram a sensação de clichê que há em todos os campos, no direito, na política, no marketing, na crítica literária, nos ativismos. Desse caldo todo e mais pesquisas históricas sobre os tempos iniciais da aids, a situação de Nova Iorque nos anos setenta, foi surgindo esse texto. Cheguei a escrever uma minibiografia do João Pedro, com umas cinquenta páginas. Sobre o work in progress, o trabalho está comigo há dez, já foi protótipo, duas exposições físicas (PUCRS e UnB), dinâmica com estudantes. Não sei se o livro está em processo, mas o projeto talvez gere mais coisas.

Em que João Pedro se diferencia dos demais artistas?

O João Pedro, como todo artista, é uma mistura de referências, de experiências, de vontades, de fracassos. Pensei ele não como um inovador, mas como um jovem artista, ainda se entendendo, lidando com a explosão da arte contemporânea dos anos 1960, 70 e início dos 80 com muita voracidade e às vezes até afobação. Os materiais orgânicos que tu cita, que vão de sêmen a fezes, de sangue a pelos, dizem respeito a essa ânsia de mostra, se mostrar, se rasgar em público. Mas isso se mistura com uma coisa menos comum que era uma quase liberdade total, com mesadas generosas, depois uma herança da avó, que dão a ele um poder e acesso a materiais caros e tecnológicos para a época. Mas não sei se ele se diferencia tanto assim. Ele está sendo impactado pelo que vê em Nova Iorque e tentando ser parte disso. No meu caso, é uma pergunta mais difícil. Não sei nem se não é leviano eu fazer uma afirmação dessas. Sei dizer coisas que me movem como escritor, que é o desejo de não me repetir, a vontade de escrever livros que, até podem existir, mas não conheço, uma vontade de pensar a linguagem na própria linguagem, de testar caminhos que sejam novos ao menos para mim. Se consigo, se isso me faz diferente, não sei. Até porque reconheço isso em outras escritoras e escritores que me interessam bastante.

Tu és conhecido pelo estudo e domínio da literatura portuguesa. Como está teu trabalho de curadoria em literatura e teus outros projetos?

A curadoria da Coleção Gira, de literaturas em línguas portuguesas, que faço para a editora Dublinense é um dos trabalhos que me orgulha muito. Ano que vem serão dez anos, pesquisando, cavoucando autoras e autores dos países falantes de português. Temos a felicidade de ter nomes que já chegaram consagrados na coleção, como Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, Paulina Chiziane ou Afonso Cruz, mas também descobrir nomes e vozes de uma força impressionante e que vão conquistando um espaço muito importante entre o público leitor do Brasil, como Joana Bértholo, Ana Margarida de Carvalho, Patrícia Portela (que já tinha um livro no país, quando começou a publicar conosco), o moçambicano Manuel Mutimucuio, Ricardo Adolfo. É uma pesquisa que me oferece imersão em outras possibilidades de se usar o português como ferramenta literária, que me traz uma variedade muito ampla de pontos de vista, de ideias, e ver isso sendo reconhecido por festivais e feiras literárias, por jornais e revistas e, sobretudo, por leitoras e leitores, é muito recompensador. Sobre outros projetos, tenho um de longo prazo que é criar minha filha de 3 anos, com tudo que isso exige de dedicação e também de esforço financeiro, mas acabei de viver uma experiência maravilhosa, concebendo um livro e uma instalação junto com Elida Tessler para sua exposição Word, Work, World, que está no V744 atelier. Ano que vem devo publicar um livro de ensaios sobre arte e literatura e venho pensando em como abrir espaço para retomar um livro no qual vinha trabalhando até um tempo atrás.

Como defines a importância da Feira do Livro na tua vida?

A Feira faz parte da minha vivência não só como escritor, mas como leitor. Quando as políticas de preço eram diferentes, quando tinha mais ponta de estoque (antes das consignações tomarem conta do mercado editorial) eu ia no primeiro minuto da feira vasculhar saldos e voltava mais vezes. Livros muito importantes para mim surgiram ali. Aos poucos isso foi se misturando com os autógrafos, com a sensação de que caminhar na feira era a certeza de encontrar amigas e amigos que lidam com literatura, arte, cultura. Hoje é impossível dar uma passadinha na feira, sempre vou encontrar uma boa conversa, uma troca, alguém que não via há tempo. Mas tem essa coisa que não é para mim, é para todo mundo, que aquela loucura da praça de autógrafos: autoras e autores mirins de um colégio, assinando um antologia, gente que resolve bancar um sonho produzindo o próprio livro, de repente está do lado de um best-seller, um nome fundamental da literatura, sentados nas mesmas cadeiras, mesmas mesas, sentindo o mesmo cheiro. Isso é uma raridade. E nesses anos de tanto ataque à cultura, de tanta desvalorização da leitura, do pensamento, da imaginação, esse custe o que custar a Feira vai estar lá na Praça é de uma importância tremenda. Embora não devamos nos esquecer que este meu “custe o que custar” tem seu lado triste, pois a Feira tem um orçamento cada vez menor, o que também diz muito dos tempos embrutecidos em que vivemos, tanto no nível dos patrocinadores quanto do poder público. É um bom momento para falar da minha alegria de ver o Sergio Faraco patrono da Feira. Seus “Contos completos” só não merecem ser emoldurados porque merecem mais e mais ser lidos. Falo isso porque, desde que conheci a obra do Faraco pelas mãos do Charles Kiefer, fiquei encantado com a escrita dele. É um simplicidade complexa, uma complexidade simples, que me assusta. E, desde sempre, recomendo, cito, referencio Faraco em minhas aulas e me espanta (o que não é uma exclusividade do Faraco, acontece com muitos nomes, infelizmente) é que seja tão pouco lido e conhecido. Espero que essa homenagem renove a leitura da obra dele, que alargue o alcance da sua escrita.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895