“Pé de Pilão” na minha vida
O escritor e músico Cláudio Levitan fala do seu envolvimento com a obra infantil de Mario Quintana
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A obra “Pé de Pilão”, do Mario Quintana, entrou na minha vida no dia do seu lançamento, em 1975, quando a editora e escritora Mery Weis, me propôs transformar o livro-poema num disco de música. Em 1976, na época eu tinha 24 anos, comecei a debulhar a história. Encontrei no prefácio da publicação essas reflexões: “Eu fujo de livros e estórias infantis como quem foge do demo e da peste. Costumam ser a negação do espírito da infância. Mas se é você quem se dispõe a escrever para crianças, a coisa muda de repente. Seu ‘Pé de Pilão’ é - não podia deixar de ser - uma delícia plena. A graça, a inventividade, o envolvimento na melodia verbal, tão simples e cativante - que pequenina obra-prima você ofereceu a todos!” (Carlos Drumond de Andrade)
Sim, a história era uma graça, mas exigia entendimento apurado, criando um desafio pra mim: como adaptá-la para música mantendo a sua magia? Descobri na andorinha, que enxergava o “mundo como se fosse um mapa”, a chave para decifrá-la. Passei a esboçar em desenhos os personagens e os seus trajetos. Com essa visualização, pude construir a primeira adaptação para opereta e, então, passamos os três a compor as canções, Nico Nicolaiewsky, Vitor Ramil e eu.
Para isso, precisei conversar com o Mario Quintana. Na primeira vez, perguntei porque o nome do livro ‘Pé de Pilão’ se não constava no poema. Ele disse, de forma quintanesca, que “as crianças gostam de rimas e de palavras escalafobéticas” e que tudo saiu da canção “Pé de Pilão, carne seca com feijão, arreda camundongo pra passar o batalhão!” Usamos como a marcha-militar do Polícia. Suas botas, feito pilão, marcam o ritmo. Em 1985, sob a direção do Vitor Ramil, produzimos um lay-out das composições gravadas em estúdio e colocadas numa fita cassete para que ele mostrasse para a direção da sua gravadora da época. O objetivo era gravar com grandes nomes da música brasileira. Mas, como o diretor não conhecia nem o poeta, o LP não saiu, mas saiu a HQ. Os desenhos que fiz para a referida adaptação, serviram de esboço para o álbum que veio a ser lançado em 1986, como homenagem pelos seus 80 anos (Editora L&PM).
MOSTRAR AO POETA. Antes de publicá-la, fui mostrar ao poeta. Marquei com a sua sobrinha-neta, o dia e a hora para visitá-lo. No momento em que cheguei, começou um temporal de apagar as luzes da cidade. Não queria perder a oportunidade, comprei velas e pilhas para usar no gravador e mostrar também as músicas. O hotel estava só com algumas lanternas. Me apresentei na portaria. Ligaram pro quarto e me autorizaram subir. A escadaria era um breu e eu, o próprio escritor Borges, cego, subindo as escadas para ver o poeta. Contei os andares, tateei pelo corredor até uma porta com luz na fresta do chão. Botei o ouvido para saber o que se passava lá dentro. Uma voz dizia:
- Tio, tu tens que tomar esses remédios, senão vais morrer e vão dizer que foi de cirrose! Imagina o escândalo!
- Puxa! A eternidade me dá uma preguiça!
Não tive dúvidas, bati. A Helena Quintana abriu sorrindo e me convidou para entrar. Foi nosso segundo encontro para tratarmos do Pé de Pilão. Nos acomodamos em volta dos desenhos em páginas grandes, A3. Comecei a mostrá-las sob as luzes de velas. Depois, as músicas. Ele gostou, “o Professor Dom Galaor se parece com o Laitano!”- disse sorrindo. Assim como das canções, mas confessou, “não gosto de música! Só das sinfonias do Mahler. Mas gostei das canções, apesar de preferir o silêncio”. Ao terminarmos, voltou a luz! Missão cumprida! O livro foi publicado como presente de aniversário num álbum de luxo.
SÓ EM 2008. As músicas só foram gravadas em 2008. Antes, montamos a versão teatral. Isso aconteceu em 2006, quando o Diretor da Casa de Cultura Mario Quintana, Sérgio Napp, entusiasmado com a ideia da opereta, usou para isso parte dos recursos da Lei Rouanet, destinados para a CCMQ comemorar os 100 anos do poeta. Em três meses, usando bonecos, atores e música ao vivo e com uma equipe entusiasmada, concluímos o projeto. Os arranjos foram feitos pela Turma do Pé Quente, formada pelo Ian Ramil, que na época das gravações da fita cassete estava na barriga de sua mãe; Melissa Arievo; Juliana Dariano; Ed Lannes e por mim. Ensaiamos durante o outono e inverno. A estréia, em 12 de outubro, dia das crianças, foi tensa, não tínhamos certeza se as crianças entenderiam uma opereta.
O público infantil aplaudiu entusiasmado. Além dessa consagração, recebemos a indicação em quase todas as categorias do Prêmio Tibicuera e o de melhor trilha sonora para teatro infantil. Isto nos incentivou a buscar recursos para realizar o CD. Trabalhamos durante todo o ano e lançamos no dia da criança com um encarte especial: a HQ sem o texto para ser preenchido pelos pequenos leitores e ouvintes com as letras das canções como se fosse um jogo. Recebemos o Prêmio Açorianos de Melhor CD infantil. Em 2010, ganhamos o Edital do Sesi-SP para circulação da peça por 16 municípios do estado de São Paulo em mais de 30 apresentações. Remontamos a peça com uma nova equipe, a de São Paulo, com Adriana Fonseca, Lu Pizzonia, Guilherme Toledo e Clara Coelho.
PÚBLICO INFANTIL
Nas viagens, soubemos pelos orientadores do SESI que o público infantil entendia melhor a peça que os adultos. Talvez porque as crianças gostem de palavras escalafobéticas e os adultos nem tanto, uma vez que se atrapalham com os seus significados e perdem na continuidade. Isso confirmou que o poeta era conhecedor do “espírito da infância” e, ajudada com a música, conseguimos torná-la mais lúdica. Neste mesmo ano, recebemos outro prêmio, o do Itaú Cultural para música infantil, o de gravar um DVD contendo parte do espetáculo, veiculado por algumas redes de tv. E ganhamos o material gravado para futura montagem de um DVD com a peça completa. Pé de Pilão não para. Decidimos, ano passado, remontar a peça facilitando sua apresentação em feiras de livros e praças públicas, agora como show musical, sem cenário e bonecos, usando a HQ projetada em um telão de led, como se fosse lida a medida em que as músicas são cantadas. Para isso, pedimos ao desenhista Lucas Levitan, meu primogênito (que nos primeiros esboços musicais, em 77, aparece com seu chorinho de nenê ao fundo das gravações, enquanto o Nico e eu trabalhávamos nas primeiras composições), que ele colorisse os desenhos seguindo as orientações do próprio poeta, conforme sua carta, entregue poucos dias depois do lançamento da HQ, em 1986, com sugestões para uma futura edição colorida.
LIÇÃO
A poesia inteligente do Quintana serve de lição para as novas gerações que aprendem antigas palavras e canções, enriquecendo seu repertório. O feitiço da fada mascarada, que faz a avó nunca envelhecer, é o próprio Pé de Pilão que nos torna eternas crianças e que ainda me surpreende quando vejo bebês de 9 meses se encantando com as canções, ou crianças de seis anos, de uma creche, cantando de cor essa “pequenina obra-prima” do velho poeta.