Polêmica ou Morte

Polêmica ou Morte

Ana Paula Goulart Ribeiro*

Hipólito José da Costa

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Efemérides são, muitas vezes, usadas para a exaltação do passado, mas servem também como pretexto para a reflexão crítica acerca dos processos históricos. Por isso, 2022, ano do bicentenário da independência do Brasil, pode ser tomado como uma oportunidade para se aprofundar a discussão sobre a complexa relação entre a imprensa e a política no país – relação que ganhou diferentes configurações ao longo do tempo, mas que conformou alguns traços fundamentais de nossa formação social.

Os jornais e os homens de imprensa tiveram um papel central no processo de emancipação do Brasil. Naquele contexto, a imprensa funcionava não apenas como veículo de circulação de ideias, mas como um agente de agitação e mudança. Era o lugar mesmo da ação política, onde os diferentes grupos se confrontavam, estabeleciam conflitos e alianças.
Após a revolução constitucionalista do Porto e o fim da censura prévia no Brasil, multiplicam-se os números de publicações a circular no país. Houve um verdadeiro surto de panfletos e pequenos jornais. As condições políticas exacerbam a participação e militância, sobretudo das elites e classes médias urbanas. O jornalismo que se desenvolveu, nesse momento, era profundamente panfletário. Seu objetivo, antes mesmo de informar, era tomar posição, tendo em vista a mobilização dos leitores. A imprensa, dos principais instrumentos da luta política, era essencialmente de opinião.
Os jornais funcionavam como tribunas ampliadas. Quase todos tinham engajamento e compromisso doutrinário. Redigidos, em geral, por uma única pessoa ou por um grupo pequeno de indivíduos, eram vinculados a alguma liderança ou facção política. Os jornalistas eram publicistas e, algumas vezes, verdadeiros agitadores. A linguagem dos jornais era em geral extremamente agressiva e virulenta, marcada pela paixão dos debates e das polêmicas. A agressividade da imprensa – seja oposicionista ou governista, liberal ou conservadora – era reflexo do clima de exaltação e luta do período. O tipo de jornalismo que se fazia então, marcado pela discussão desabrida, pela artilharia verbal. Não era raro que se veiculassem ofensas pessoais, insultos, xingamentos. 
As posições assumidas eram muito variadas. Mas é possível dizer que, no primeiro momento, os impressos não apoiavam necessariamente a emancipação, mas sim o reforço do papel do Brasil no interior do reino unido. Conforme a posição dos portugueses endureceu, os debates foram ganhando intensidade e subindo de tom. O antagonismo foi se acentuando na medida em que aumentavam as pressões sobre o Brasil. Quando, em dezembro de 1821, chegaram as novas ordens de Lisboa, os protestos só cresceram. Em meio a grande agitação, as forças políticas brasileiras uniram-se para impedir o regresso de D. Pedro, o que significaria para o Brasil voltar à situação de colônia. No Rio de Janeiro, panfletos foram distribuídos nas ruas ou pregados nos muros, pedindo a permanência do príncipe regente. Os jornais criticavam as medidas recolonizadoras das Cortes e alguns defendiam a separação imediata de Portugal. 
Na luta da imprensa pela independência, merece destaque Hipólito da Costa, que redigia o Correio Braziliense. Impresso em Londres, o jornal já circulava clandestinamente no Brasil desde 1808. Outro periódico emblemático dessa época foi o Revérbero Constitucional Fluminense. Surgido em setembro de 1821, tinha como redatores Joaquim Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa. Liberal, pregava o princípio constitucional. 
A Malagueta foi outro jornal importante, que surgiu em dezembro de 1821, em plena crise do Fico. Seu redator e diretor, Luiz Augusto May, foi um dos maiores polemistas da Independência. Em tom coloquial, escrevia exclusivamente artigos panfletários, de forte oposição ao governo português. Usava uma linguagem apaixonada e radical. Era o caso também de João Soares Lisboa, que fundou, em abril 1822, o Correio do Rio de Janeiro, um dos jornais mais populares do seu tempo. Era defensor da independência e da constituinte e, por causa de suas duras críticas a D. Pedro, sofreu um processo por abuso da liberdade da imprensa, o primeiro desse tipo que se conhece.
Nem todos os homens de imprensa, entretanto, eram liberais. Havia também os conservadores e, entre eles, alguns que pregavam inclusive restrições à liberdade de opinião. Esse era o caso de José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cairu, proprietário e redator de O Conciliador do Reino Unido, fundado em março de 1821. Cairu era um legalista, um ferrenho defensor da monarquia. Um dos mais influentes políticos da regência, fora deputado e funcionário da Mesa de Rendas da Bahia e membro da junta diretora da Impressão Régia. Nomeado para o cargo de Inspetor dos Estabelecimentos Literários, se tornou responsável pela censura de todas as obras impressas no país. Cairu era contra a liberdade de opinião, mas por ironia acabou fazendo da imprensa um lugar de polêmicas, de debate de ideias. Além do Conciliador, editou outros oito pequenos jornais, além de inúmeros panfletos políticos. 
Na linha conservadora, vale a pena mencionar ainda a atuação de Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, ex-editor da Gazeta do Rio de Janeiro, que lançou O Espelho, sob inspiração e proteção de José Bonifácio, o homem forte da regência e ministro dos Negócios Estrangeiros. Há indícios de que o próprio Dom Pedro I escrevia sob anonimato nas páginas do jornal.
Esses são apenas alguns exemplos da vigorosa e variada imprensa que circulou no Brasil no período da independência. Para entender seu papel na gênese de uma esfera pública no Brasil, é preciso levar em conta o circuito no qual estava inserida, lembrando que os textos eram lidos e discutidos nas ruas e em espaços de sociabilidade, como cafés, livrarias e sociedades secretas. Apesar do grande número de analfabetos, havia uma ampla difusão e circulação de ideias através dos periódicos, especialmente na corte. É essencial relativizar a fronteira entre manifestações letradas e orais para poder entender a imprensa como um complexo agente histórico.

* professora da Escola de Comunicação da UFRJ

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895