‘Precisamos qualificar o debate sobre as Artes Cênicas’

‘Precisamos qualificar o debate sobre as Artes Cênicas’

O novo diretor do Ieacen e do Teatro de Arena, Alexandre Vargas concede entrevista a Luiz Gonzaga Lopes

Luiz Gonzaga Lopes

Novo diretor do Ieacen e do Arena, Alexandre Vargas: o Teatro de Arena é memória de posicionamento engajado em oposição à censura e ao autoritarismo’

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Após oito meses à frente do Teatro de Arena e do Instituto Estadual de Artes Cênicas, Gabriela Munhoz deixou a direção das duas instituições. Quem assume o seu lugar é o ator, empreendedor cultural, pesquisador e curador de artes cênicas Alexandre Vargas, que faz parte do quadro de colaboradores da Sedac como assessor do Sistema Estadual de Cultura. É diretor artístico do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre, idealizador e coordenador da 1ª Bienal de Dramaturgia Qorpo Santo e criador do Centro de Pesquisa Teatral do Ator (CPTA). Também é um dos criadores e atual gestor do Sistema de Indicadores dos Festivais de Teatro do Brasil. Em 2017 criou o Intercena, programa de internacionalização das artes cênicas do RS. 

CS - Quais os desafios de 2022 na gestão do Ieacen?
Alexandre Vargas - O Ieacen, 31 anos de existência, se fundamenta e se sustenta no relacionamento com a produção de artes cênicas de um estado pujante como o RS. Os problemas não estão no futuro, estão no presente. O principal desafio é colocar na agenda pública e privada, ações, reflexões e relacionamentos, de maneira estruturada, consistentes e exequíveis, que nos levem a identificar o que institui uma Instituição Estadual de Artes Cênicas para a sociedade gaúcha, ou seja para todo o Rio Grande do Sul. A maior desafiação é comportamental - ela não é isolada das questões contemporâneas do país - o que por sua vez, exige qualificação e refinamento na compreensão das estruturas internas de governança, da gestão cultural, do setor artístico e dos processos participativos. Portanto, reconhecer, valorizar, resgatar e acima de tudo assumir que existe um passado cênico para ser preservado e valorizado e um presente que deve ser atuante.

CS - E quanto ao Arena? 
Alexandre - Para falar do Arena, vou me referir a um acontecimento lindo, metafórico, simbólico e de impacto que caracteriza a atual gestão da cultura no estado. Estou me referindo ao restauro que neste momento nos revela afrescos e murais originais, que foram cobertos, escondidos, neutralizados com tinta, nas paredes da Biblioteca Pública do Estado. O Teatro de Arena já foi um dos teatros mais importantes do país. O Arena é memória de posicionamento engajado em oposição à censura e ao autoritarismo. Ele é um teatro que ficou conhecido e reconhecido na história do teatro do Brasil, por enfatizar a dramaturgia nacional e a discussão da realidade brasileira. Esse generoso espaço de memória e acolhimento, abriga mais de 2.100 textos dramáticos, de autores nacionais e estrangeiros, adultos e infantis.
A memória alicerça o sentido à vida em sociedade, e preservar a memória institucional da Sedac, o Teatro de Arena, é manter a instituição viva e forte nas suas bases. Esse registrar de fatos, erros e acertos, ajudam a entender o presente, pois a história do Teatro de Arena é uma construção que traz em si as marcas dos sujeitos que dela fizeram parte. Entre ações ocorridas e visões, práticas e discursos, há muitos sujeitos que contribuíram, motivados pelas demandas do seu tempo e pela situação social, política e econômica de cada época. Consequentemente ao preservarmos e valorizarmos a memória institucional do Teatro de Arena, não só estaremos resgatando o passado, mas é acima de tudo compreendendo as diferenças e reconhecendo os limites de cada período. 

CS - Como vais aplicar tuas principais características na gestão do Ieacen e Arena?
Alexandre - As características de perfil profissional não podem ser aplicadas de maneira personalista, elas devem ser integradas a um planejamento estratégico. Esses traços na verdade, eles vão tencionar internamente a governança e o setor. Na governança no intuito de qualificação do debate para compreender as necessidades do Ieacen e da sua função real e concreta para a sociedade gaúcha. No caso do setor é uma prerrogativa assumir a necessidade de qualificação do debate sobre a Cultura e especificamente as artes cênicas. Pois ela se configura como um valor em si, os processos criativos, a geração do pensamento crítico, as novas linguagens e a experimentação estética. E esses valores são caros e significativos para a democracia gaúcha, uma vez que esses processos se opõem a domesticações e dependências, e isso é uma dimensão substancial da ampliação de novos horizontes.

CS - Na gestão da Gabriela, houve algumas ações afirmativas. Elas terão continuidade?
Alexandre - Todas as ações que foram realizadas com o propósito afirmativo da cidadania estão mantidas. Os nossos problemas, de sociedade, se estendem para além das limitações do Teatro de Arena e Ieacen, são problemas civilizatórios, de crise de civilidade. É ingenuidade pensar que a falta de público de um teatro é questão de divulgação, a falta de público está relacionado à renda e grau de instrução. Neste atual contexto é necessário uma série de letramentos de ações afirmativas, incluindo questões como o capacitismo, desigualdade de gênero, entre tantas outras questões fundamentais.

CS - Como tu achas que o teatro gaúcho poderia se desenvolver mais e criar uma autossuficiência, continuidade de ações, entre outros fatores?  

Alexandre - Não podemos dar espaço para o achismo, para o acidente, para os despreparados que ocupam espaços significativos na cadeia produtiva das artes da cena, pública e privada. Não podemos dar um milímetro de espaço para a falta de vigor criativo e artístico, que vai gerar o objeto estético. Não podemos dar espaço para quem fala e escreve sobre curadoria, sem nunca ter realizado uma curadoria. Não podemos dar espaço para quem fala e escreve sobre festivais, sem nunca ter realizado um festival de teatro. É necessário evocar permanentemente a astúcia para compreender que o teatro gaúcho é teatro brasileiro. É necessário assimilar e valorizar o nosso empreendedorismo anárquico, sem esquecer o que dizia o Tom Jobim “O Brasil definitivamente não é para amadores”. O teatro é muito mais que espetáculo, e o nosso grande desafio, nosso enquanto setor, é entrar em lutas reais com estofo intelectual e humano. O nosso grande desafio é comportamental, para assimilarmos e assumirmos as nossas responsabilidades nesse processo. Sim, em muitos momentos vamos ter que ser imperativos. Teatro é arte, cultura e ofício, e para ele se desenvolver mais e criar uma autossuficiência, temos que compreender e dar visibilidade para o ecossistema das artes cênicas no Brasil. 

Em tempo de mudança acelerada, é essencial a compreensão de que a cultura está se desdobrando em profundidade e na direção de novos sentidos e, transversalmente, com destino a novos campos adjacentes. É prudente assumir o desafio de repensar e liderar as transformações do campo da cultura. A existência de toda uma geração de novos públicos, cuja educação cultural e sentimental é atravessada pela Internet e pela lógica digita, os movimentos universais como o feminismo, o movimento negro e diversos movimentos identitários, estão possibilitando novas práticas de transformações de visões de mundo, como os corpos e as mentes que se afastam de uma lógica binária. 

É nesse contexto que a cultura passou, de uma forma mais intensa, a fazer parte da agenda de políticas econômicas. Novos instrumentos surgem de mãos dadas com a necessidade de respostas à vertigem da globalização. As novas formas de regionalização e formação de blocos econômicos e sociais implicam, em atuais gerenciamentos de programas, projetos, elaboração de indicadores, fontes de verificação de impacto, conta satélite, estudos de consumo cultural, marketing recreativo, planos estratégicos das indústrias criativas e culturais, treinamento qualificado para o quadro de pessoal, estruturas regulatórias apropriadas, instrumentos de navegação em políticas culturais, demandas sociais de gestão, criação de conselhos de cidadãos à cultura e reformulações nos organogramas das instituições e dos institutos culturais, bem como o aperfeiçoamento do controle social. Essas mudanças significativas devem dizer sim ao progresso econômico e aumento do PIB, mas acima de tudo deve colocar no centro a formação de uma Cultura Cidadã, com justiça econômica e atenção às questões relacionadas a igualdade de oportunidades e a favor da vida, da dignidade, do respeito, do amor, do afeto, da alteridade e da solidariedade como elemento fundamental do desenvolvimento e não desvinculado da economia. 

A falta de acesso cultural à população gaúcha fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e de violência que moldam a vida social contemporânea do Rio Grande do Sul. A falta de acesso à cultura é estrutural, ou seja, é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade gaúcha. A evidência, é que a falta de cultura é manifestação naturalizada e não um fenômeno que expressa algum tipo de anormalidade. Qualquer projeto político aceitável para o Rio Grande do Sul, passa pela luta contra a falta de cultura, a defesa da democracia e do desenvolvimento econômico. O que implica no entendimento de uma reconfiguração do imaginário social, ou seja, a falta de acesso à cultura é incompatível com o desenvolvimento econômico e o bem estar social. E antagônico com o ambiente econômico estável no qual as empresas necessitam para reproduzirem-se em ambiente de negócios. A cultura é fundamental para o mínimo de estabilidade e para que se torne possível a reprodução de uma vida econômica. De tal sorte que soa, como algo absolutamente ilusório pensar, que o teatro possa sustentar qualquer projeto de desenvolvimento econômico que não passe pela discussão sobre a falta de cultura, ou seja, pela estruturação de Política Cultural no Brasil. 

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895