Resistência, potência e energia criativa aos 50

Resistência, potência e energia criativa aos 50

Editor assistente, crítico de cinema e curador do Festival de Cinema de Gramado faz retrospectiva histórica do evento em artigo

Marcos Santuario

Desde 1973, o Festival de Cinema de Gramado vem se consolidando como um dos maiores eventos do gênero na América Latina

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No ano de 1973 não se imaginava que, naquela cidade turística da serra gaúcha, iria ser criado aquele que viria a ser um dos principais festivais de cinema do mundo. Não é exagero afirmar isso, já que o Festival de Cinema de Gramado figura hoje entre os 100 principais eventos do gênero no mundo. Sua primeira edição, de 10 a 14 de janeiro daquele início dos anos 70, começou a marcar uma trajetória que levaria o Festival a um patamar de ser um dos momentos mais esperados do ano entre as diversas atrações na região. 

De lá para cá, ano após ano, desfilaram, de forma ininterrupta, os principais representantes da cinematografia brasileira e ibero-americana. Primeiro somente a brasileira, até o início dos anos 1990. Até aquele momento havia uma produção importante no universo do cinema nacional. Por isso, até então a denominação do festival já apontava sua essência: era o Festival do Cinema Brasileiro de Gramado. “Reza a lenda” que, no primeiro ano, o diretor Arnaldo Jabor não foi para a cerimônia de premiação, pois não acreditava que iria ganhar. Ganhou. O seu “Toda a Nudez Será Castigada”, que havia recebido já o Urso de Prata, no Festival Internacional de Berlim, levaria o Kikito de Melhor Filme em Gramado. Ficou na história como o primeiro vencedor do evento. Como ele, muitos dos que passaram e iluminaram palco e tela em Gramado, se foram para outros universos, mas serão lembrados para sempre. 

E mesmo que naquela primeira premiação até luz tenha faltado, as lamparinas que Iluminaram sorrisos e aplausos já prenunciavam um futuro capaz de enfrentar “ventos e marés”. E assim foi constituindo-se, para muitos, como o “Oscar Brasileiro”, prêmio que, aliás, inspirou a elaboração do troféu criado para os vencedores de cada edição do evento em Gramado. Ao longo dos anos, homenagens e novos troféus foram surgindo para reconhecer os talentos que pisavam em Gramado e mostravam sua arte nas telas. O mais tradicional e desejado dos troféus, sem dúvida, continua sendo o Oscarito. Com ele, o Festival de Gramado homenageia atrizes e atores que se destacam na arte de representar.

Já o Kikito, que significa “Deus do bom-humor”, foi criado pela artesã gramadense Elisabeth Rosenfeld. Considerado primeiro como troféu da Feira Nacional de Artesanato, em 1972, e no ano seguinte consagrou-se como o prêmio para as diversas categorias do Festival.
Até 1988, o objeto de madeira era esculpido à mão. Depois ganhou forma em bronze. Na época, após o falecimento de Elisabeth, em 1980, o gaúcho Orival da Silva Marques, conhecido como Xixo, era o responsável pela produção. Para a edição destes 50 anos, ele produziu dez troféus especiais, um a cada três dias, em média. Pesando cerca de meio quilo, utilizou grápia e imbuia como madeira.

Mas além de homenagens e troféus, o Festival de Gramado tem sido palco de debates, encontros e discussões sobre o universo do audiovisual. Já em sua segunda edição, em 1974, o Festival mostrou que se tornaria um dos grandes palcos para discussões, tanto da área audiovisual, quanto assuntos de destaque nacional. De lá para cá, e como bem apontou Fernando Meirelles em pleno Palácio dos Festivais, em 2012, “se olharmos para a história do Festival, podemos saber como foi o nosso cinema nos últimos 40 anos”. Talvez hoje ele atualizaria a fala para “os últimos 50 anos”. 

Na tela do Festival passaram produções muito provocadoras como “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, que recebeu quatro Kikitos, entre eles, de Melhor Ator, com Reginaldo Faria; “Pra Frente Brasil”, de Roberto Farias, que teve sua exibição proibida pela censura da ditadura e gerou um dos mais inflamados debates da história do Festival. Outro ponto alto foi a sessão especial de “O Pagador de Promessas”, de 1962, com presença do diretor Anselmo Duarte e elenco, homenageados pelos então 30 anos da histórica conquista da Palma de Ouro em Cannes. Teve ainda “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, em 1986, de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, considerado um dos curtas marcantes do cinema brasileiro. Isso só para citar algumas das muitas obras que marcam a história de Gramado em sua relação com o universo audiovisual. E em se tratando de mudanças, do início até hoje, foram muitas. A partir de 1988, o Festival de Cinema de Gramado, antes realizado no verão, passa a ocorrer oficialmente no inverno.

A partir de 1990, Gramado começa a se tornar polo e receber produções e artistas internacionais. A internacionalização se dá como saída ao momento em que o governo brasileiro fecha a Embrafilme e gera uma quase extinção da cinematografia nacional, afetando os fundamentais incentivos à produção cultural. As produções internacionais, que começaram a fazer parte das competições de Gramado, foram fundamentais naquele momento e hoje perduram como presenças desejadas dando ainda mais brilho ao evento. Momento em que o evento se torna Festival de Gramado Cinema Latino e Brasileiro. Foi assim que a tela do Palácio dos Festivais pode exibir e premiar talentos mundiais como o espanhol Pedro Almodóvar, com seu “De Salto Alto”, eleito melhor diretor, e como o argentino Fernando Solanas, de “A Viagem”. Brilharam ainda a almodovariana, Marisa Paredes, que subiu ao palco para receber o Kikito de Melhor Atriz. Teve ainda Antonioni, homenageado, reverenciado e, para sempre, marcante na história de Gramado. Não demorou para que o o Festival se tornasse Patrimônio Histórico e Cultural do Rio Grande do Sul, com direito a calçada da fama e tudo. Essa relação local/global se fortalece tambem com a entrega dos primeiros Kikitos de Cristal, destacando nomes do cinema latino-americano. A ponte com o universo do Cinema estrangeiro está construída. Aliás segue ampliando-se, integrando já a nova essência do evento, que se transforma no Festival de Cinema de Gramado. Amplo e inclusivo. Quando chegou aos seus 40 anos, o Festival aposta em um novo formato. 

Foi naquele momento que assumimos a honrosa e desafiadora responsabilidade de formar parte da nova curadoria do Festival, ao lado de dois amigos sempre admirados: Rubens Ewald Filho e José Wilker. Desafiados pela organização do evento para dar novo rumo cinematográfico, apostamos na diversidade, na representatividade, no rigor cinematográfico e na qualidade das produções. De lá para cá tem sido uma constante alegria, cercada de muito trabalho, debate e encontros com colegas que se tornam amigos a cada encontro. Hoje, ao lado das excelentes Soledad Villamil e Dira Paes, o nosso olhar se amplia e se renova. Com elas, e chegando aos 50 anos, seguimos junto a vários outros nomes compondo esta construção coletiva que acompanha as evoluções das novas formas de produzir, distribuir, exibir e consumir o audiovisual contemporâneo, o Festival de Gramado segue apontando para o futuro.

Superada a fase pandêmica que não permitiu presencialidade, aprendeu-se com ela que o hibridismo é uma possibilidade real e, também, envolvente. Homenagens, ingressos grátis mediante doação de alimentos e parceria com o TikTok com a primeira edição da mostra #FestivalDeCurtas. É o 50º  Festival de Gramado, mostrando o presente, em sintonia com a sociedade, no presente e no futuro, de mãos dadas com o audiovisual contemporâneo e suas novas formas de expressão. 

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895