Surpresas com o primo do doutor Getúlio

Surpresas com o primo do doutor Getúlio

Alcy Cheuiche *

Escritor Alcy Cheuiche

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Manaus às dez horas da manhã. Abro a porta de vidro, dou um passo à frente e dois para trás. A sensação é a de entrar e sair da boca de um forno. Mas como vou perder este passeio? Sonhei durante anos em navegar, talvez até nadar no encontro das águas. E a van está estacionada ali diante do hotel. Quem sabe ela tem ar condicionado?

Saio resoluto junto com alguns turistas que se dirigem à viatura. Aqui dentro posso respirar normalmente. Que temperatura estará aí fora? Como essas pessoas podem caminhar tranquilamente? Chega disso e te concentra no passeio que vais fazer... No rio vai correr algum vento.
O barco é um verdadeiro navio, às vezes contratado para viagens até Belém. Para não ficar ocioso no cais, leva turistas a conhecer o fenômeno das águas do Rio Negro e do Solimões deslizando lado a lado por longa distância, até se misturarem para formar o Rio Amazonas. Águas de cor escura transparente, outras barrentas como as do Guaíba, que vão-se integrando, pouco a pouco, como café derramado no leite.
Bueno, mas isso eu ainda não vi, e aqui no porto a água é suja e com mau cheiro. Querendo apressar a saída, vou até a proa, bastante alta, e fico disputando espaço com alguns ingleses e inglesas, muito ruivas e sorridentes. É quando o alto-falante interrompe uma música suave de boas-vindas e o locutor diz claramente o meu nome completo, pedindo que eu me apresente ao comandante do navio.
Que eles saibam o meu nome, tudo bem. A agência de turismo é obrigada a entregar a lista dos passageiros no momento do embarque, dentro das normas da Marinha Mercante. Mas por que esse capitão quer me ver? O que eu fiz de errado, pelo amor de Deus?
Peço informações a um marinheiro e atravesso todo o convés até a popa, já com o navio em movimento. Caminho com as pernas um pouco abertas, como quem ganhou prática disso numa viagem recente pela Linha C, entre a França e o Brasil. Viajar sempre foi a minha cachaça e muitas vezes lamentei não ter entrado para a Marinha quando tinha idade para isso.
O comandante é um homem retaco, com um belo quepe sobre os cabelos grisalhos, vestindo um uniforme branco impecável. Apresento-me formalmente e ele me olha fundo nos olhos:
- Estão o senhor se chama Vargas?
- Sim. É um dos meus sobrenomes.
- E o senhor é parente do Dr. Getúlio Vargas?
- Meu pai era primo dele, por parte de mãe.
- Se o seu pai era primo do Dr. Getúlio Vargas, então o senhor também é.
- Sim, um pouco longe, mas somos da mesma família.
Neste momento, os olhos que me fitam enchem-se de lágrimas. O capitão dá um passo à frente e abre os braços.
- Desculpe, senhor Vargas, mas eu vou lhe dar um abraço.
Constrangido, deixo-me abraçar por alguns segundos. Por que tanta emoção? É o que ele explica, já mais tranquilo:
- Meu pai foi um grande admirador do Dr. Getúlio. Principalmente porque, uma semana antes do suicídio, o Presidente o dispensou do trabalho de garçom no Palácio do Catete e mandou-o aqui para Manaus, numa colocação bem remunerada. Revoltado com toda aquela traição, ele decorou a Carta Testamento e a dizia nas festas, como quem declama um poema. Desde criança eu sonhava em conhecer alguém de verdade da família Vargas e foram muitos os que abordei com o seu sobrenome. Infelizmente, nenhum era da mesma família, como o senhor é. Um primo do Dr. Getúlio Vargas.
- Fico feliz que tenha realizado esse desejo. Meu pai lutou nas revoluções de 1930 e 1932 e também fui criado admirando o nosso Presidente.
Novamente seus olhos se enchem de lágrimas e ele me diz:
- Senhor Vargas, o senhor está no comando deste navio. Qualquer desejo seu será realizado.
Neste momento o barco lança âncora exatamente entre as águas do Rio Negro e do Solimões. Como estou com um calção por baixo da bermuda, pergunto ao comandante:
- Posso nadar um pouco? Com um braço em cada rio? Também é um sonho antigo meu.
- Pode fazer o que desejar, eu já lhe disse.
Livro-me rapidamente das roupas, que ficam aos cuidados de um marinheiro, ajusto o calção e salto da murada do lado das águas escuras. Emerjo ouvindo gritos, que penso que são de admiração pelo meu belo mergulho. Mas não são. Um dos ingleses, que levara um caniço, acaba de retirar da água um peixe pequeno, muito brilhante, e ouço com diversos sotaques a mesma palavra:
- PIRANHAS!
Nesta hora, nem o Johnny Weissmuller, o velho Tarzan, nadando para salvar a mocinha dos jacarés, deu braçadas tão rápidas como eu. Em poucos segundos chego no portaló do navio e subo os degraus, agora sob risadas e aplausos dos turistas.
Um marinheiro me espera com uma toalha de banho. Coloco-a sobre um ombro e vou até a cabine de comando, em busca das minhas roupas. O capitão me recebe sorrindo, o que me deixa ainda mais irritado. Desta vez sou eu que olho fundo em seus olhos e não engulo as palavras:
- O senhor sabia que existem piranhas por aqui?
- Sim, como não?
- Então, por que me deixou nadar no meio delas?
- Primeiro, porque as piranhas são perigosas somente quando em grandes cardumes e na presença de sangue. Segundo, por que o senhor manifestou o desejo de nadar. E eu sou um homem de palavra.
- Como, assim?
- Como eu lhe disse, o senhor manda em mim e em toda a tripulação. Desde que se identificou, passei o comando do navio para o primo do Dr. Getúlio Vargas.

* autor: Alcy Cheuiche é escritor, autor de romances históricos, poesias, crônicas e teatro.

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895