Caderno de Sábado

Tecendo histórias do Tear e de Maria Helena Lopes

Um dos integrantes do Grupo Tear, o ator Sergio Lulkin trata de ‘No Tear da História: Maria Helena Lopes’, de Juliana Wolkmer (Libretos), lançado nesta sexta, 17 de outubro, à noite

O Grupo TEAR (1980-2002) existiu pela dedicação de um coletivo de artistas e criadores, sob a batuta da Maria Helena Lopes, a Lena, tornando-se uma referência no universo teatral brasileiro
O Grupo TEAR (1980-2002) existiu pela dedicação de um coletivo de artistas e criadores, sob a batuta da Maria Helena Lopes, a Lena, tornando-se uma referência no universo teatral brasileiro Foto : Adriana Marchiori / Divulgação / CP

Desde “Quem Manda na Banda” até “Solos em Cena”, o Grupo Tear (1980-2002) existiu pela dedicação de um coletivo de artistas e criadores, sob a batuta da Maria Helena Lopes, a Lena, tornando-se uma referência no universo teatral brasileiro. Como um dos atores que participou do Tear desde o começo e sendo guardião de parte do acervo do grupo, junto com o colega Marco Fronchetti, por muito tempo escutei um imperativo que me parecia impossível atender: “vocês precisam escrever um livro sobre a Maria Helena e o Tear!”.

Era, quase sempre, o que encerrava conversas apaixonadas sobre o teatro feito em nossa cidade, sobre as mais belas lembranças, cenas e personagens inesquecíveis e, com triste constatação, sobre o quanto se perdia da memória passada, sobretudo dessa arte efêmera. Guardar a emoção de “Os Reis Vagabundos” (1982), “Crônica da Cidade Pequena” (1984) e “Partituras” (1989), entre outras criações do Tear, só era possível pela lembrança de quem os havia visto nos palcos.

Traduzir essas experiências em palavras e imagens, sabendo-se que o teatro acontece ao vivo, mesmo que se possa registrá-lo como audiovisual, seria um enorme desafio. Essa demanda, que ofereceria um acesso público aos processos criativos dos diversos espetáculos dirigidos por Maria Helena através de documentos impressos, preservando uma história repleta de beleza e poesia, parecia uma possibilidade tangível e resultado de uma continuidade natural dos registros organizados desde o início da trajetória do grupo. E junto com o Tear, outros tantos artistas que construíram essa história também estariam representados nas destacadas montagens, através das criações de luz, cenografia, figurinos, adereços, música, treinamentos específicos para canto, registros escritos e de imagem. No entanto, eu recusava o desafio de escrever o livro argumentando que estava por demais imerso na vida do grupo, tendo feito parte de todas as criações, e que o olhar alheio poderia resolver melhor essa tarefa.

Eis que agora, para emoção das muitas pessoas envolvidas com um projeto ousado, essa publicação se torna realidade: “No Tear da história: Maria Helena Lopes”, organizado por Juliana Wolkmer em parceria com a Editora Libretos, é uma bela publicação, repleta de imagens, documentos variados, críticas e depoimentos - assim como trechos de entrevistas com a Maria Helena e outros artistas que colaboraram nos espetáculos – contando a trajetória de uma diretora profissional, pioneira nessa atividade desde os anos 60 e fundadora do grupo Tear. Com fino olhar e sensibilidade, Juliana - pesquisadora de mão cheia e apaixonada pelo teatro - nos oferece, além da publicação financiada pela Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura – Edital Sedac/RS 31/2024 Memória e Patrimônio, o acervo digital do grupo Tear que estará disponível nos Acervos Permanentes da Cultura – Sedac-RS junto ao Espaço Sônia Duro – Centro de Documentação e Pesquisa, vinculado ao Teatro de Arena, com apoio da Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul.

Por mais óbvio que possa parecer, é fundamental reiterar que o registro e conservação de documentos sobre o Teatro, patrimônio cultural e memória de uma comunidade, precisa ser fomentado e apoiado com investimentos. Quando surgiu o efetivo aporte para esse projeto, ao nos debruçarmos sobre o material disponível, ficou evidente que os recursos tecnológicos até a década de 80 eram escassos ou financeiramente proibitivos para coletivos artísticos. Ainda assim, muito material fotográfico, programas guardados desde a década de 50 pela família da Maria Helena e inúmeros jornais impressos, garantiram um tesouro que se revela tanto para os espectadores como para os colegas que viveram, no palco ou na plateia, uma viagem que perpassa a história de outros coletivos de teatro como o Teatro Livre, o Grupo Província e também o entrelaçamento com a história do CAD/Departamento de Arte Dramática da Ufrgs, da ditadura à redemocratização.

A ideia de tessitura que o grupo traz em seu nome, um jogo com a palavra que a Lena trouxe para o nosso batismo, se fortalece com a publicação e a disponibilidade do acervo aproximando tantos eventos que estariam desconexos, agora entrelaçados em torno de uma artista e sua história. Da mesma raiz, tecer, mulheres diretoras, atrizes, pesquisadoras, criadoras, se encontram sob esse mote, no Seminário Mulheres na Direção, que culmina com o lançamento do livro organizado por Juliana. Ao longo de meses de coleta e seleção dos diversos documentos, voltei ao passado e reacendi pequenos gestos e lampejos que apareciam nas conversas, situações peculiares de bastidores, comentários filosóficos e conceitos que iam surgindo nos intervalos entre uma imagem e outra, filigranas que constituem até hoje a visão e a refinada compreensão do Teatro e do ser humano que a experiência em grupo nos propiciou, as quais que permanecem conosco. Percebo que nos processos de criação e direção com os quais me envolvo escuto dizeres da Lena como indicações e alertas, sábias impressões que moldaram fundamentos e o olhar crítico permanente. Nosso aplauso e devida reverência à Juliana Wolkmer, que oferece ao público e às diversas instituições o acesso ao livro e ao acervo digital, construindo um caleidoscópio com detalhes do que vivemos em várias décadas e registrando a dimensão que o Tear alcançou com suas criações inesquecíveis as quais, embora desenhadas na areia que as ondas desfazem, ressoam nas histórias contadas ao redor do fogo.