Um ano Mágico

Um ano Mágico

Por Luiz Maurício Azevedo*

Caderno de Sábado

A medida do ano pode ser o lançamento de novos títulos como ‘A Extinção das Abelhas’, de Natalia Borges Polesso

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Em abril de 2007 eu era um aluno da Famecos. Durante muito tempo sonhei com isso. Grosso modo, a Famecos era a faculdade de comunicação da PUCRS, mas no meu mundo a Famecos era uma versão melhorada de Pasárgada. Os cafés do bar da Liana não perdiam para nenhuma cafeteria verde de Seattle. E era possível ver velhos professores derramando suas técnicas de redação para alunos brilhantes que passavam. A sensação que eu tinha é que qualquer garoto de dezenove anos que passava por ali podia ser o novo Truman Capote. E qualquer menina podia ser a Joan Didion. Foi com esse olhar de toupeira desmiolada que esbarrei em um livro chamado Não devo pensar em coisas ruins, de Mark Dery. Naquele tempo eu não ganhava a vida criticando o trabalho dos outros, por isso podia ler bons livros e não me preocupar com autores que passam a vida dando entrevistas intermináveis sobre os riscos do lugar de fala na literatura, a Tropicália, os cancelamentos ou a presidência de Bartolomé Mitre. Sim, eu era feliz em Pasárgada. Não muito, é claro. Ninguém é. Só um marreco pode ser feliz por inteiro. O resto de nós fica com a felicidade fatiada. E isso nem importa, porque a vida de alguém deve ser uma jornada de interesse, não necessariamente de felicidade. Aprendi isso lendo os textos de Contardo Calligaris, uma das piores perdas do ano de 2021. 

No melhor ensaio do livro, Dery resgata uma frase de Greg Tate sobre a situação paradoxal dos negros americanos. Os negros, defendia Tate, vivem sob um regime de estranhamento que só pode ser considerado verossímil em uma narrativa de ficção científica. Uma vez, depois de ler seu magnífico Flyboy in the Buttermilk: Essays on Contemporary America, saí pelo Soho à procura de uma loja que supostamente vendia discos secretamente gravados pela Motown. Claro que não encontrei a tal loja. E é claro que Tate aparece aqui como homenagem mínima de um homem que tem muito a agradecer aos mortos desse e de todos os anos.

Nunca mais fui à Famecos. Não sei se alguma daquelas potenciais Didions poderá fazer o trabalho da original, que partiu essa semana. Não sei se o novo jornalismo pôde contar com os meus colegas. E não sei se alguém ali conseguiu, digamos, seguir o caminho do dinheiro. Penso nisso agora porque no fim do ano os caminhos de nossos começos se apresentam novamente. Os romanos – não todos, só os melhores deles – acreditavam no deus Janus. Ele tinha duas faces: uma voltada para a frente, outra voltada para trás. Ele unia o passado e o futuro em uma mesma figura. Por isso chamamos o primeiro mês do ano de janeiro. Contudo, se o primeiro mês do ano tem duas faces poderosas, o último é uma espécie de extrato de nossos dividendos e movimentações emocionais feitas ao longo do ano. E como minha vida é a literatura, é razoável pensar que a medida do meu ano possa ser o lançamento de novos títulos como os de Djamila Ribeiro (Cartas para Minha vó); Guto Leite (Devoção); Natália Borges Polesso (A extinção das abelhas); Colson Whitehead (Trapaça no Harlem); Kiese Laymon (Heavy), e Jonathan Franzen (Crossroads, ainda sem tradução para o português). Quero lembrar de 2021 assim, pelos livros que nasceram. Aliás, Barack Obama incluiu Whitehead e Franzen entre as melhores leituras que fez esse ano. Eu sempre cito Obama quando quero que vocês aceitem uma indicação minha. Ele sempre recomenda Homem Invisível, de Ralph Ellison. Não sei se cheguei a falar para vocês sobre esse livro. De toda sorte, espero que em 2022, quando se completam setenta anos de seu lançamento, eu possa fazê-lo.

* Pesquisador pós-doc na FFLCH/USP; autor de “Wolfsegg, Rio Grande do Sul” (Figura de Linguagem)

 


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