Um relato sobre a Rússica (1934)

Um relato sobre a Rússica (1934)

A descrição do país soviético nas palavras do ator, humorista e cronista norte-americano Will Rogers*

Caderno de Sábado

Vista de parte da Praça Vermelha a partir do lado da Catedral de São Basílio

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*Em 1934, o americano Will Rogers (1879-1935) visitou a Rússia, país líder da União Soviética. Depois, contou num programa de rádio o cotidiano do comunismo. O relato está na coletânea "Políticos, Pernósticos & Lunáticos” (Ed. Gryphus, organização e tradução de Lucas Colombo). E a primeira tradução de Rogers ao português. No último dia 25 de dezembro, foram completados 30 anos do fim da União Soviética.O Caderno de Sábado publica um trecho do relato do autor.

Explicar a Rússia, ih, não dá. Todo mundo já tem uma opinião, e qualquer coisa que se diga não vai mudar essa opinião. Além do mais, a Rússia é um país que não se importa com o que se fala dele. Eles acreditam que já foram atacados por homens melhores do que nós, inclusive, então isso não faz a menor diferença (...). 

Os negócios que fazemos, os pontos de vista que temos, o jeito prático e lógico de entender as coisas, tudo é totalmente diferente na Rússia. Fiquei surpreso por eles não caminharem com as mãos, ao invés dos pés, só para serem diferentes das nações capitalistas.

Para começar, o governo é o dono de tudo. Se bem que isso não é muito diferente daqui. Os bancos são os donos de tudo. Mas, na Rússia, tudo pertence ao Estado – hotéis, táxis, restaurantes (...). São os donos da companhia de ópera e de todos os espetáculos e eventos, aliás. Atores e cantores, todo mundo trabalha para o governo. Controla-se a produção de cinema. Que é só propaganda.

Sabendo que eu estava interessado nos filmes, mostraram um, que ainda não estava pronto. O título é “Três Canções Sobre Lênin”. O mais elaborado e caro filme já produzido na Rússia. Juntaram nele todas as imagens de cinejornais feitos durante a vida de Lênin (...). 

Mostra o enterro dele na Praça Vermelha, embaixo de uma nevasca, com uns 35 graus negativos, e milhares de pessoas presentes, quase congelando. O filme é uma tremenda peça de propaganda. 

A coisa que mais me impressionou, e que faz pensar, é que todo mundo na Rússia trabalha ou estuda. Homens e mulheres (...). 

Mulheres trabalham em ferrovias legalmente. Para as mulheres daqui que ficam dizendo para as americanas que elas deveriam ter igualdade, verdadeira igualdade com os homens, como é na Rússia: bem, eu digo que a diferença que eu pude ver na igualdade russa é que as mulheres têm picaretas e pás, e os homens, não (...).

Mas a pergunta que as pessoas mais me fazem é: eles são felizes? Essa é difícil. Há 170 milhões de habitantes na Rússia, e eu não falo a língua deles, então claro que não dava para andar por lá perguntando:

“Você é feliz?”. É quase impossível olhar alguém e dizer precisamente quão feliz ele é. Nós olhamos os russos por oito dias, em centenas de estações da Transiberiana, e o que vimos foram pessoas descerem dos trens e caminharem com uma expressão aborrecida e vazia nos rostos. Sem alegria, sem sorriso.

Pareciam não ter a menor ideia do que o futuro lhes reserva. Mas eu já sentei na galeria do Senado e da Câmara em Washington e vi essa mesma expressão aborrecida e vazia.
A população tem algo a dizer sobre o governo? É outra coisa que todo mundo me pergunta. Para essa eu tenho resposta: sim! Mas deve dizer só para si mesma, e bem baixinho.

Você sabia que a Rússia era intensamente religiosa e que, de coração, os mais velhos ainda são? Eles dizem que existem cerca de 50 igrejas funcionando em Moscou – mas já foram em torno de 200. Muitas delas foram transformadas em clubes; outras foram derrubadas ou viraram museus antirreligiosos.

Devido a 17 anos de incansável trabalho de propaganda antirreligiosa para cima dos mais jovens, os russos afastaram da igreja boa parte deles. Mas não os idosos. Se alguém acredita em um ser superior, não importa a religião, esse alguém não o abandona tão facilmente quanto troca de governo. E não consegue apenas substituir religião por coisa nenhuma – portanto, eles criaram uma religião própria. É a igreja de Lênin, ou o Leninismo, melhor dizendo. Eles o transformaram no que talvez seja o Deus deles. Têm estátuas aos montes. Eu escolheria ter o contrato de construção de estátuas do Lênin na Rússia em vez de ter a licença para fabricação de carros da Ford, aqui. Aonde quer que se vá, existe uma estátua de Lênin, e fotos. O túmulo dele na Praça Vermelha, em Moscou, é a grande atração turística russa.

Também tentam manter o patriotismo sempre em alta. A Rússia funciona como um time de futebol, o tempo todo com palavras de estímulo. Se o cidadão não está trabalhando, está ouvindo um outro discursar e discursar e discursar. E, para os jovens, Lênin é o único grande homem de que já se ouviu falar. Bom, nós temos os nossos heróis também e conhecemos os heróis dos outros países, pois nos é permitido ler toda a literatura do mundo. Mas os russos conhecem só um. Por aí se vê como ele foi transformado numa religião no sistema deles (...). 

Ah, tem muita construção civil também. Os prédios todos parecem do tipo baixo custo: cinco ou seis andares de apartamentos. Por isso, quando alguém na Rússia diz que tem um apartamento, não significa que tenha um como nós conhecemos. Tem um quartinho. E uma divisória não é como a gente conhece. É um lençol pendurado entre uma pessoa e as outras do mesmo cubículo. E podem ser, sei lá, quatro pessoas – quatro desatinados vivendo no mesmo apartamento. O problema da habitação lá é horrível (...). 
Tem muito mais coisas para se contar sobre a Rússia. Tudo o que eu não souber sobre o país, possoinventar. Porque a Rússia é um país sobre o qual qualquer história é verdade. Ainda que seja mentira, é verdade.

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895