Uma leitura refrescante

Uma leitura refrescante

VERA TEIXEIRA DE AGUIAR*

Celso Gutfreind é psicanalista e escritor e tem 41 livros publicados

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Na verdade, a leitura de uma obra nunca é a primeira. Ela sempre vem antecedida por uma outra, fruto da expectativa que temos sobre o autor e o texto, gerada por conhecimentos prévios, comentários, aspectos exteriores, condições em que os encontramos, enfim, uma série de fatores que nos aproxima do livro, e desencadeia, então, a prática da leitura. Com "Oh, Senhor Picolé! & outros poemas refrescantes" não é diferente.

Ler Celso Gutfreind representa aqui uma experiência por demais enriquecedora para todos nós, pois sua poesia vem consolidada por uma vasta obra, fruto da vivência em duas áreas distintas e complementares, a psicanálise e a arte literária. Nascido em 1963, em Porto Alegre, o autor já demonstrou interesse duplo deste cedo e, nos anos finais da década de 1980, diplomou-se médico e publicou seu primeiro livro, "A Gema e o Amarelo". De lá para cá contabilizou mais de 70 prêmios e títulos por trabalhos realizados no campo da psiquiatria e da literatura em geral. São escritos, palestras, participações em eventos acadêmicos, feiras de livros, encontros com estudantes, colaborações na imprensa e em edições de sociedades médicas ou literárias, visitas e entrevistas, entre tantas outras iniciativas que envolvem a palavra que cura e a palavra que encanta. Entre livros e capítulos de livros somam-se mais de uma centena de publicações, em que ciência e arte se abastecem mutuamente, isto é, a fala do médico chega ao paciente permeada pela poesia, e o poema repercute no leitor pelo tanto de experiência humana que carrega. Não por acaso, o autor frequenta os mais variados gêneros, segundo a disposição e a necessidade. São ensaios, crônicas, contos, histórias longas e versos.

Outrossim, como Celso Gutfreind se dedica, preferencialmente, à psiquiatria infantil, escrever para crianças é transitar confortavelmente por um território conhecido. Nas mais de duas dezenas de livros dedicados a esse público, predominam as narrativas, sempre às voltas com o universo de crianças e jovens, seus conflitos e desejos, seus fazeres cotidianos e aventuras imaginárias. Contudo, a poesia está presente, e uma das obras mais recentes contempla o gênero, fazendo da leitura uma alegre brincadeira, como atesta o título, que é também o do poema que encerra o livro. Em versos rápidos e cadenciados, os movimentos de sons e palavras divertem os pequenos e trazem à baila situações infantis corriqueiras, relativas a alimentação, higiene, escola, fantasia, enfim, mil prazeres negociados pelo picolé:
 

“Não quero rosca
nem queijo ou casquinha
nem água de coco
nem água de cheiro
nem caro perfume
nem raro sabor,
é picolé o que eu quero.”

Se o livro se fecha com a imagem do Senhor do Picolé, síntese depositária da alegria de um desejo de satisfação garantida, fica patente o caráter circular da obra, que encaminha o leitor à busca da imagem que o título propõe e só se revela nas páginas finais, em gostosa provocação. Para tanto, o primeiro poema exercita a materialidade dos algarismos, desenvolvendo seus versos segundo o desenho de cada um deles. Nesse sentido, simulam, ludicamente, a concretude do próprio pensamento infantil:

“O 1 é um poste
pra gente subir,
com uma ponte
toda inclinada,
........
O 5 é enroscado:
quem tenta subir
baila na curva
fica enrolado...”

A primeira proposta é, pois, a de enumerar, contar e ordenar as coisas do mundo enquanto objetos, ações, desejos, em um esforço de apresentação para as crianças, segundo sua capacidade cognitiva, dinâmica e mágica. Seguem-se os poemas sobre animais, paisagens, brincadeiras, figuras familiares, muitas vezes valendo-se de conceitos como tamanho, quantidade, espaço e tempo, estimulando a roda da imaginação. Se o intuito é a metaforização das relações do homem com sua realidade e sua circunstância, isso é possível através da representação do universo infantil de forma inventiva e livre. Significa brincar com os sentidos e sua expressão em linguagem verbal e visual.


O poeta coloca-se ao lado das crianças, e de tudo que guardamos da infância, quando opta pelo jogo prazeroso. Estabelece um pacto, a partir de regras determinadas, que precisam ser cumpridas uma vez aceitas. Assim, os sons, os ritmos e as palavras criam significados, por suas combinações e recorrências. Em outras palavras, o plano expressivo dá o tom que, por sua vez, estende-se às imagens de Mateus Rios. Não por acaso o projeto gráfico conta com figuras caras ao mundo infantil, muito luminosas, leves e soltas, sintonizadas com os versos e a espontaneidade dos pequenos. Se a descoberta da vida adulta se dá neste momento através da imaginação lúdica, o livro de Celso Gutfreind cumpre seu papel, refrescando o imaginário dos leitores de todas as idades, daquelas que estão chegando das que nunca abandonaram o encanto de se refrescar na leitura de poemas.

* Doutora em Letras (área de concentração em Teoria da Literatura). Professora Titular aposentada da PUCRS. 

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895