Festival de hipocrisia, teatro de absurdos, espetáculo de horrores

Festival de hipocrisia, teatro de absurdos, espetáculo de horrores

Ao longo de décadas, as relações de trabalho mudaram, as demandas são outras, os anseios e motivações, diferentes. Dos dois lados: de quem emprega e de quem trabalha

Guilherme Baumhardt

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Ah, a nossa classe artística! Sempre tão coerente, sempre tão ativa. Uma militância sempre disposta a proteger, a levantar bandeiras, a se engajar nas lutas. Mesmo que seja para proteger privilégios, empunhar bandeiras equivocadas e lutar por menos liberdade. Há exceções, óbvio, mas que talvez sejam minoria. Ou fazem menos barulho. Quando o Congresso discutiu a reforma trabalhista, em 2017, lá estavam eles, defendendo a classe trabalhadora. O curioso é que certamente há ali gente que recebe vencimentos (ou ao menos uma parte) não pela CLT, mas sim por contratos como pessoa jurídica – ou seja, empresas. Pudera: paga-se menos imposto na maioria dos casos. Mas para o povão, todas as amarras possíveis, em uma legislação que remete a 1943. 

Ao longo de décadas, as relações de trabalho mudaram, as demandas são outras, os anseios e motivações, diferentes. Dos dois lados: de quem emprega e de quem trabalha. Mas para nossos engajados artistas, ativistas do atraso, é importante manter o país estacionado em uma época em que sequer sonhávamos com internet, compras online, home office, terceirização de serviços. Um período em que a mecanização no campo era restrita e que a indústria brasileira vivia a era pré Juscelino Kubitschek. No comércio, frequentávamos armazéns de secos e molhados e supermercados estavam apenas no imaginário de empreendedores. “Querem retirar direitos”, diziam.
A reforma foi aprovada e está tudo lá: 30 dias de férias, 13º salário, FGTS. Trata-se de uma relação de livre troca (trabalho por salário, mas que muitos ainda insistem em chamar de “exploração”, um velho conceito marxista). Mas nossa classe artística consciente estava lutando bravamente! Pena que do lado errado da história.

O mesmo ocorreu na reforma previdenciária. Um sistema injusto, antigo, defasado e deficitário, principalmente por não ser um sistema, mas dois. Um deles, o geral, em que estão os funcionários da iniciativa privada, com teto inferior a R$ 6.000,00 mensais, que quase ninguém recebe pelas regras vigentes. O outro, o regime próprio, para funcionários públicos, no qual o céu é o limite, apesar da legislação de teto salarial, raramente cumprida no Brasil. Um sistema de privilégios porque tornava mecanismos inatingíveis para os demais: integralidade do salário, aposentadoria precoce em muitos casos, entre outros pontos. Mas uma grande parcela dos nossos artistas estava lá, pedindo para senadores e deputados votarem contra.

A grande verdade é que estamos lascados se dependermos de gente assim. Essa turma adora a liberdade para produzir discos, livros, shows, espetáculos. Liberdade para criar, para criticar. São valores e ideais que existem e são garantidos graças ao somatório de um sistema capitalista, livre mercado e liberdades individuais. Ou há liberdade de expressão e crítica em Cuba, Venezuela ou Coreia do Norte? Havia liberdade artística na Alemanha Oriental, que ironicamente ostentava o nome de República Democrática da Alemanha? A resposta vocês sabem.

Há uma parcela da nossa brava classe artística que é bastante seletiva. Odeia toda e qualquer agressão às mulheres (no que concordamos), mas faz vistas grossas quando um colega dispara uma cusparada no rosto de uma mulher em um restaurante. É uma turma que critica o capitalismo, a desigualdade, mas adora viajar de primeira classe para mecas do livre mercado, com bons hotéis, restaurantes e lojas de grife. Há até um lado empreendedor, mas com aquilo que poderíamos chamar de risco zero, graças às leis de incentivo à cultura, que são bem-vindas, mas mal utilizadas. Com dinheiro garantido pela legislação, lançam novos discos, percorrem o país com novas peças, estreiam um novo show. E cobrando ingressos. Que maravilha! Em grande parte dos casos, ações incentivadas, com dinheiro de empresas, que no lugar de despejar a grana nos cofres do governo como imposto, optam por valorizar nossa cultura. Ótimo. Mas você paga duas vezes. O tributo e o ingresso. Não há ilegalidade, mas talvez um bom debate sobre a moralidade da prática. Cuidado com parcela da nossa classe artística, aquela engajada. Ela diz que te defende e te quer bem. Mas nunca te convida para dividir o caviar ou o espumante francês.


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