Imortais

Imortais

O que realmente interessa é o lado em que você está na disputa política. Se estiver do lado “certo”, pode até virar imortal.

Guilherme Baumhardt

Gilberto Gil abre seu canal no YouTube para uma live musical, a partir das 21h deste sábado

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O episódio está prestes a completar 20 anos, mas ainda tenho o evento vivo na memória. Estava na sala de aula, durante a faculdade de jornalismo, quando uma das professoras anuncia feliz para a turma que havia sido convidada para dirigir um órgão estatal. O governo era o do petista Olívio Dutra. Naturalmente pensei o óbvio: deve assumir alguma função na comunicação ou na Fundação Cultural Piratini. Eu era bastante ingênuo na época. Ela, formada em comunicação (com especialização em publicidade e propaganda), passaria a comandar uma das estruturas do Estado ligadas à área da saúde, na qual ela não tinha formação, tampouco em administração. Para não fugir à regra, a professora em questão tinha orientação esquerdista.

Muitos anos depois, ao assistir à excelente série “Chernobyl”, produzida e veiculada pelo canal fechado HBO (o livro que inspirou a obra é editado, no Brasil, pela L&PM), recordei o episódio vivido na universidade. Quem acompanhou os episódios certamente vai lembrar da cena. A explosão na usina nuclear já havia ocorrido, muitas pessoas estavam mortas e outras tantas estavam sofrendo os efeitos da radiação, mas o governo da União Soviética seguia tentando esconder a tragédia. Diante dos claros indícios que pairavam no ar, uma pesquisadora (que na série representou de maneira unificada os cientistas que atuaram na época) adentra a sala do burocrata responsável pelas usinas da região para alertá-lo. E tem como resposta o mais completo desdém. O “troco” é antológico. Ela lembra o sujeito que, diferentemente dela, que domina o assunto, semanas antes ele era apenas o dirigente local do sindicato dos sapateiros. Graças à dedicação ao partido e dentro de um sistema que não valoriza o conhecimento e o mérito, mas sim o “puxa-saquismo”, o sujeito ganhou a cadeira.

No Brasil, nos últimos dias, vimos algo parecido. Não há necessariamente partidos políticos, não há uma ditadura. Mas há, no cheiro do ar, uma orientação ideológica. Duas figuras de reconhecido talento na música e nas artes cênicas viraram imortais. Não, nenhum deles foi escolhido para ocupar uma cadeira na “Academia dos Músicos e Compositores”, ou na “Academia Atores e Atrizes”. Não, nada disso. Fernanda Montenegro, talvez nossa maior atriz, e Gilberto Gil, um dos nossos gigantes da música, são os novos integrantes da Academia Brasileira de Letras.

Se você pedir para alguém cantarolar um sucesso de Gilberto Gil, muitos ficarão entre “Expresso 2222” e “Realce”. Ou entre “Domingo no Parque” e “Esperando na Janela”. Estão vivas na memória popular as atuações de Fernanda Montenegro em novelas, filmes ou no teatro. A imensa maioria vai lembrar da indicação ao Oscar, em 1999, por Central do Brasil. Não se sinta menor, porém, se você não lembrar da grande obra escrita por Montenegro. Não imagine que habita em você a mais profunda ignorância por desconhecer o livro definitivo de Gilberto Gil. A verdade é que ninguém, ou quase ninguém conhece. Há aqui e ali um ou outro livro, geralmente produzido em parceria com outro autor. Fernanda Montenegro e Gilberto Gil são geniais. Mas no palco ou diante das câmeras. Nas letras, nos livros, nas páginas, são tão relevantes quanto este colunista.

Estaríamos diante de um movimento político? Não posso afirmar com certeza, mas tanto um quanto o outro são simpatizantes de partidos e políticos de esquerda e, óbvio, críticos ferozes do atual presidente brasileiro. Gilberto Gil, inclusive, foi ministro da Cultura, na gestão Lula. E, mais uma vez, fica a sensação de que pouco importa o que você sabe, o que você diz ou aquilo que você escreve. O que realmente interessa é o lado em que você está na disputa política. Se estiver do lado “certo”, pode até virar imortal.
Há uma frase atribuída ao genial Roberto Campos que diz mais ou menos o seguinte: “O PT é o partido dos trabalhadores que não trabalham, dos estudantes que não estudam e dos intelectuais que não pensam”. Se estivesse vivo, Bob Fields talvez produzisse uma atualização, não mais referente ao PT, mas ao Brasil: “Inauguramos a era dos escritores imortais que pouco escrevem”.


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