Um choque iminente

Um choque iminente

Assim como os norte-americanos foram fiadores durante anos, por exemplo, da estabilidade em Israel, único país democrático naquela região do planeta, qual será a política da China?

Guilherme Baumhardt

Pessoas andam em uma área turística em Chengdu, na província chinesa de Sichuan

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Primeiro se dizia que a liberdade na China chegaria ao país trazida por aqueles que respiraram ares norte-americanos e europeus, chineses que viajaram pelo mundo, estudando ou trabalhando. Não aconteceu. Eles saíram, voltaram, mas não levaram a tão sonhada liberdade na bagagem. Depois as fichas foram colocadas na erradicação da miséria e a formação de uma classe média − estima-se que a nação mais populosa do mundo tenha hoje ao menos 400 milhões de pessoas vivendo com renda média anual entre 15 mil e 390 mil dólares ao ano. Miséria e pobreza diminuíram drasticamente, mas a liberdade não veio.

Muitos acreditavam que o livre acesso à Internet e redes sociais criariam um ambiente para questionamentos, a formação de um “exército” infinitamente maior do que aquele que foi massacrado na Praça da Paz Celestial, em 1989. Essa massa serviria de combustível para um inevitável advento das liberdades individuais. E o que a China tem hoje? Uma das redes mais fechadas do mundo, em que algumas plataformas e aplicativos são simplesmente proibidos, com restrições severas de usuários e uma permanente invasão de privacidade.

O país asiático caminha a passos largos para se tornar a maior potência econômica do mundo. Ganhou concorrentes. A Índia (nação quase tão populosa quanto a China) dá sinais consistentes de desenvolvimento. A pandemia escancarou um erro estratégico gigantesco: ao transferir o parque industrial do mundo para a China, é como se o planeta tivesse colocado todos os ovos no mesmo cesto. A luz de alerta acendeu. Sem dúvida, são ingredientes novos, mas insuficientes para parar a locomotiva chinesa que segue firme rumo ao lugar hoje ocupado pelos Estados Unidos.

Quando isso ocorrer, qual será a conduta chinesa com o restante do planeta? É inevitável algum grau de dominação. Os norte-americanos de uma maneira ou de outra exercitaram isso ao longo das últimas décadas. Moveram peças no xadrez internacional de acordo com seus interesses. Com os chineses não será diferente. Assim como os norte-americanos foram fiadores durante anos, por exemplo, da estabilidade em Israel, único país democrático naquela região do planeta, qual será a política da China? A ditadura e o regime de opressão ficarão restritos ao ambiente interno? Ou a política restritiva vai nortear a relação com parceiros mundo afora?

Alguns argumentam que os chineses estão acostumados a isso. Da monarquia (e uma sucessão de dinastias), passando por um governo provisório em um período turbulento, até a chegada de Mao-Tsé tung ao poder, nunca houve liberdade ampla, muito menos democracia de fato no país. Ou seja: é, sim, verdade que estamos falando de um povo acostumado ao “cabresto”. Para ilustrar essa subserviência, recordo aqui um episódio vivido em Beijing, em 2013, na cobertura de uma missão empresarial e governamental do Rio Grande do Sul, durante um compromisso em uma das sedes do Partido Comunista da China. O prédio era feio por fora, mas suntuoso por dentro. De tão alto e macio, o pé afundava por completo no carpete instalado nas salas. Nos corredores, vasos e outros adereços de valor histórico e com preço incalculável. Em um determinado momento, uma das jornalistas da comitiva se levantou e se dirigiu até a porta. Queria fumar e não acenderia um cigarro ali dentro. Durante o trajeto que levaria ao corredor ela foi barrada por uma chinesa. Em inglês, explicou que queria sair para fumar. E ouviu: “Vocês não podem sair daqui. Não sem os seus líderes”. A brasileira tentou argumentar, sem sucesso. E logo depois deu meia volta e retornou para a poltrona onde estava. Para a chinesa, nada mais natural: esperar quem manda. Para nós, um retrato cru do que é viver sem liberdade, nem mesmo para fumar um cigarro, na rua, sozinho.

Se os chineses estão acostumados com isso há milênios, o mundo ocidental não está. Há um potencial para turbulências. O governo de Xi Jinping já deu sinais claros em Hong Kong. Depois que deixou de ser colônia britânica, a região passou a sentir na pele a opressão vinda de Beijing. Para os que acreditam que esta é uma realidade distante, lembro que países vizinhos veem na relação com a China uma espécie de tábua da salvação. Argentina e Venezuela estão na sarjeta, fruto das próprias escolhas, em função das tragédias patrocinadas por governos populistas de esquerda. Hong Kong pode estar longe. Buenos Aires e Caracas estão aqui do lado. Tanto Alberto Fernández quanto Nicolás Maduro esperam cada vez mais por um socorro chinês – que não virá de graça.


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