Marcos Santuario

Ela não é atriz

Enquanto alguns tentam normalizar Tilly como “mais uma artista”, a comunidade artística reagiu com uma mistura de choque e urgência

Essa colisão entre o artificial e o humano não é mera provocação: é um ponto de ruptura
Essa colisão entre o artificial e o humano não é mera provocação: é um ponto de ruptura Foto : Particle 6 / Divulgação / CP

A chamada do futuro acaba de soar, e com ela, um sorriso provocador para a velha guarda dos estúdios: surgiu a primeira atriz de Inteligência Artificial, ou, ao menos, isso é o que seus criadores querem que acreditemos. Batizada de Tilly Norwood, essa figura digital, projetada pelo estúdio Particle6 / Xicoia, aparece com rosto fotorealista, presença nas redes sociais e a ousadia de movimentar negociações com agentes de Hollywood.

Enquanto alguns tentam normalizar Tilly como “mais uma artista”, a comunidade artística reagiu com uma mistura de choque e urgência: o sindicato dos atores dos EUA, o SAG‑AFTRA, repudiou a ideia com palavras duras. Em sua declaração oficial, deixou cristalino o recado: “criatividade é, e deve permanecer, centrada no humano”. E reforçou que “Tilly Norwood não é atriz, é um personagem gerado por um programa de computador treinado sobre trabalhos de inúmeros intérpretes, sem autorização ou compensação”.

O choque, entretanto, vai mais fundo do que uma briga por nomenclatura. O sindicato denuncia que a criatura digital ameaça substituir artistas de carne, de sangue, de memórias, por réplicas produzidas em massa. “Tem uma escassez de experiência de vida para extrair”, bradaram, “nenhuma emoção verdadeira, nenhum vínculo com o humano”. E alertaram: produtores com contratos com o sindicato devem negociar previamente o uso desses “performers sintéticos”, por contrato, sob pena de violações contratuais.

Para suas criadoras, Tilly não é ameaça, é “nova paleta artística”, “ferramenta além do ator”. Elas traçam paralelos com animação, CGI, bonecos, formas de expressão que coabitam o cinema há décadas. Mas a palavra “substituição” já ecoa nos bastidores. Agentes já estariam sendo sondados para representá-la. Essa colisão entre o artificial e o humano não é mera provocação: é um ponto de ruptura. Se aceitamos que uma “atriz” possa ser inteiramente simulada, o que resta da expressão humana? A angústia dos criadores? A voz vibrante no set? A lágrima que não se ensina?

O SAG defende que o valor da arte reside justamente na existência vivida, nas imperfeições, nas escolhas acontecidas, e isso não pode ser replicado por conjuntos numéricos. Tilly Norwood é um espelho inquietante. Bela digital, fria por dentro, vazia de alma que não se programa. Mas ao levantar essa figura, seus criadores ativaram uma pergunta urgente: quantos artistas humanos estão dispostos a ceder o palco a quem nunca viveu no palco? O SAG‑AFTRA, essa semana, não titubeou ao responder. A distância entre nós e o que criamos talvez seja o que garante nosso sentido, não pode ser apagada por pixels.