A vacinação que causou revolta

A vacinação que causou revolta

Levante popular contra a imunização no Rio de Janeiro completa 120 anos

Por
Juliano Bruni

A concatenação dos fatores é vasta, não apenas do episódio da revolta em si, mas sobretudo de suas causas. A capital da (agora) república foi erguida com os afluxos de três séculos de sistema colonial. Um desses fatores foi a escravidão, que, uma vez abolida (em 1888), criou uma massa de trabalhadores precarizados e marginalizados.

Na passagem do século XIX para o XX, e na transição de um sistema escravocrata para um de trabalho “livre”, uma cidade como o Rio de Janeiro ostentava um conjunto de sintomas: ruas sem iluminação e saneamento, alta densidade populacional, lixo, pragas como mosquitos e ratos, uma obscena desigualdade e, enfim, a pobreza normalizada. Nesse contexto, o presidente Rodrigues Alves (1902-1906) procurou trazer a capital ao século que se iniciava. Apontou o engenheiro Pereira Passos como prefeito do Distrito Federal e lhe conferiu liberdade de ação, sem limitações legais e orçamentárias.

O prefeito alargou ruas, abriu avenidas, canalizou cursos d’água, instalou rede de esgotos, decretou o fechamento dos cortiços (inaugurando a era das favelas), proibiu a criação e circulação de animais, a cultura de hortas, baniu as pipas das crianças, os pés descalços do centro e criou constrangimentos pecuniários para quem cuspisse na rua.

O médico Oswaldo Cruz era um dos paladinos de Passos. Em 1903, o sanitarista era o chefe da Diretoria Geral de Saúde Pública. Cruz e equipe montaram um plano de guerra. Aos agentes foi dado poder de polícia para combater as endêmicas varíola, peste bubônica e febre amarela, além da tuberculose e da febre tifoide. Para algumas moléstias, o combate se dava pelo extermínio de seus agentes. Para outras, porém, era necessária a imunização.

A vacinação foi mal recebida pelos proprietários de pensões e cortiços. Habitações que não se enquadravam nos critérios sanitários recebiam intimações para a adaptação. Os donos de imóveis também deveriam remover detritos e entulhos, propícios para ratos, pulgas e mosquitos. Apesar de a campanha se basear em orientações diretas e informações na imprensa, a resistência era respondida com a presença da Polícia acompanhando as brigadas sanitárias.

O Correio do Povo abordou os distúrbios na então capital da República. | Foto: Leandro Maciel

A insatisfação também contava com doses de moralismo. Os boatos asseguravam que era necessário se despir completamente para receber a vacina, que deveria ser aplicada nas partes íntimas e que os vacinados adquiriam feições de bovinos. A recusa à vacina, porém, não vinha apenas das classes populares iletradas. Rui Barbosa, personagem da intelectualidade brasileira da época, se colocou frontalmente contra a obrigatoriedade.

A lei 1.261, de 31 de outubro de 1904, foi regulamentada em 9 de novembro e tinha a assinatura de Oswaldo Cruz. Previa que, sem comprovante de vacinação, não era mais possível emitir certificados, ser empregado ou matricular os filhos na escola. A revolta estourou já no dia seguinte. Por cinco dias, o Rio de Janeiro foi sacudido com a sublevação popular. Bondes foram virados, agentes de saúde agredidos, confrontos com a Polícia ocuparam as ruas. Uma liga antivacina foi fundada com auxílio e participação de políticos.

Nas páginas do CP, nos dias subsequentes aos episódios de violência, o aspecto político do movimento militar ganha destaque. | Foto: Leandro Maciel

Inicialmente contra a vacinação obrigatória, logo os distúrbios se voltaram contra os serviços públicos e o governo municipal e federal. Aproveitando que o governo entrou na mira, um golpe de estado foi esboçado por militares positivistas liderados pelo senador Lauro Sodré e pelo deputado Barbosa Lima, tenente-coronel e major, respectivamente. Uma sublevação na Escola Militar da Praia Vermelha foi sufocada, os políticos sofreram ações legais e, no total, a revolta deixou quase mil presos, mais de 100 feridos e 30 mortos. Muitos detidos foram enviados em navios-prisões para o recém-anexado estado do Acre.

A obrigatoriedade da vacinação foi revogada. Cruz hoje figura entre os maiores vultos da ciência no Brasil. Passos e Alves e seus governos sobreviveram às atribulações. E a história se encarregou de colocar os pingos nos is. Em 1908, novo surto de varíola varreu a capital. Desta vez, o povo acorreu voluntariamente aos postos de saúde. Buscavam a vacina. Em 1971, o Brasil declarou a varíola erradicada de seu território.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895