Agricultura porto-alegrense terá mais área

Agricultura porto-alegrense terá mais área

Extinta no ano 2000 e reabilitada em 2015, a zona rural da Capital do Rio Grande do Sul deve ser contemplada na revisão do Plano Diretor do município, cuja conclusão está prevista para 2024, passando de 4 mil para 6 mil hectares

Por
Nereida Vergara

Se há algo que o porto-alegrense tem apreço é pela compra de alimentos vegetais frescos. A cidade tem um grande número de feiras, parte delas de produtos orgânicos, com excelente qualidade e variedade, e presença expressiva da população. Entre as capitais do Brasil, a extensão da zona rural de Porto Alegre perde apenas para Palmas, no Tocantins, e para São Paulo. O cultivo de frutas na zona sul da Capital é uma tradição que remonta ao início do século passado - há registros, segundo a Emater/RS-Ascar, de que a primeira festa da uva no Brasil ocorreu justo em Porto Alegre, por volta de 1913 (veja na página central). A zona rural, que chegou a contar com 14 mil hectares até o ano 2000, quando foi extinta pelo Plano Diretor. Desde 2015, ano em que foi delimitada novamente pela Lei Complementar nº 775, passou a ser 8,28% do território da Capital, cerca de 4 mil hectares. 

A partir de 2020, quando assumiu o prefeito Sebastião Melo, a área e os seus produtores, cerca de 700 reconhecidos pelo uso do Talão do Produtor, têm recebido mais atenção. Mas os desafios, admite o secretário de Governança Local e Coordenação Política, Cássio Trogildo, são imensos.

Problemas relacionados a demarcação de terras

O secretário, ex-vereador e nativo da zona rural porto-alegrense, assumiu em julho deste ano o comando da agropecuária municipal, antes parte da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMEDT). Desde então, Trogildo vem traçando ações para melhorar o desempenho do setor. Ouve dos agricultores uma queixa frequente: a impotência do produtor diante das invasões de terras que são cultivadas, mas não foram demarcadas como rurais. O cálculo da secretaria é de que sejam cultivados hoje na Capital 5,7 mil hectares, 1,7 mil a mais do que o contemplado no limite geográfico. "As áreas de frutas como uva e pêssego, por exemplo, são tradicionais, mas algumas estão fora deste limite", reconhece. A equipe da Governança local define como a zona rural o “Extremo Sul” da cidade, mas não aponta nominalmente os bairros abrangidos.
De acordo o secretário Trogildo, as invasões acontecem porque os agricultores não têm a escrituração do imóvel, ou esta não tem a finalidade correta. "Por isso, estamos trabalhando no sentido de regularizar essas propriedades, permitindo que sejam enquadradas como rurais e venham a ter os benefícios que isso agrega, como a não incidência de IPTU", explica. 

"Precisamos entender e quantificar o que é nossa zona rural, pois não há estatísticas concretas de volumes produzidos e nem do nosso rebanho, que existe", indica. A partir deste levantamento, que será feito em 2023, por Organização da Sociedade Civil (OSC) contratada em edital, a Prefeitura Municipal pretende dar atendimento a demandas muito esperadas. Uma delas, é a inclusão de mais 2 mil hectares de zona rural (localizados no bairro Extrema, ao lado do bairro Lami) na revisão do Plano Diretor, que está sendo feita e que deve ser publicada em 2024. Outra, é a manutenção e aparelhamento do Centro Agrícola Demonstrativo (CAD), também mo limite da Capital com o município de Viamão, onde máquinas agrícolas, que podem servir aos agricultores com o pagamento apenas do combustível, não estão sendo usadas por falta de operador. Estes profissionais também serão admitidos por contrato de OSC.

Cássio Trogildo ressalta que entre as providências futuras está ainda o apoio aos produtores para fazerem a transição para o modelo orgânico de produção ( até 2032 quem planta na Capital precisa se adequar à lei que transforma Porto Alegre em zona livre de agrotóxicos na produção primária e extrativa); o fomento e regramento das feiras de orgânicos, e a criação de uma feira específica em que produtores em transição da agricultura tradicional para a agroecologia possam vender seus produtos já com algum valor agregado. “Algumas feiras estão funcionando à margem da lei, e queremos que todas obedeçam regras”, complementa ele.

O presidente do Sindicato Rural de Porto Alegre, Cleber Vieira, estima que existam pelo menos 10 mil hectares com plantio agrícola ou criação de animais na Capital, a maior parte em terrenos que não estão na zona rural. Embora elogie a atual administração, segundo ele a mais atenciosa ao setor nos últimos anos, Vieira diz que os problemas são muitos, a maioria relacionados à demarcação e às vantagens que o produtor perde não estando contemplado dentro da zona rural, como a obtenção de financiamento. “Mas não para por aí. As máquinas disponíveis para uso no CAD (dois tratores e uma roçadeira), além de não ter operadores, estão obsoletas”, reclama, e dá como exemplo o que ocorreu com o milho porto-alegrense na última safra. “De 40 hectares de milho plantados na nossa zona, um único produtor perdeu 15 hectares por não ter máquina para colher o grão”, conta.

“Queremos buscar a prosperidade"

Vieira diz que os produtores e suas associações cansaram de esperar pelas ações públicas e decidiram se organizar conjuntamente para buscar a evolução e a valorização do agricultor e da produção primária da Capital. “Queremos buscar a prosperidade. Tirando trigo e fumo, a Capital produz tudo. Vejam as feiras de final de semana, com dezenas de produtores, a maioria do interior do Estado. Por que?”, questiona. O grupo, formado pelo sindicato rural, associações de produtores, caminhos rurais e indígenas, se encaminha para fundar o próprio centro agrícola demonstrativo, em terreno arrendado (no bairro Lami) com possibilidades de qualificação para os produtores e exibição de plantios de estufas, que a população poderá visitar. Para viabilizar o empreendimento, o sindicalista afirma que está buscando emendas entre os parlamentares gaúchos.

Bom clima e mercado próximo agradam produtor 

Entre cultivos tradicionais como o da uva e do pêssego, estabelecidos em Porto Alegre há mais de um século, a zona rural da Capital começou a contar, nos últimos anos, com a semeadura da soja, favorecida pelo clima, e que mesmo durante a estiagem da safra 2021/2022 teve desempenho acima do restante do Estado. Na safra 2022/2023, o Sindicato Rural de Porto Alegre estima que a área plantada com a oleaginosa se aproxime dos 900 hectares | Foto: Cristine Rochol / PMPA / Divulgação / CP.

Umidade garantida por rios e pelo oceano proporcionou aos agricultores que plantam em áreas da zona rural de Porto Alegre a produtividade de até 60 sacos de soja por hectare na safra passada, apesar da estiagem que se abateu sobre o Estado.

A afirmação do presidente do Sindicato Rural de Porto Alegre, Cléber Vieira, de que o município planta praticamente tudo, é uma verdade reconhecida. As condições climáticas da Capital dos gaúchos, servida por mananciais como o Lago Guaíba e favorecida pela umidade que vem do oceano, permitem o cultivo das mais variadas espécies de hortaliças, em especial as folhosas, assim como de frutas e grãos. Uma prova desse potencial foi o ocorrido na safra 2020/2021, quando os 600 hectares de lavouras de soja implantados na zona rural conseguiram uma produtividade média de 60 sacos por hectare, muito superior à obtida no restante do Estado em razão da severa estiagem. Na safra de soja 2022/2023, Vieira acredita que a área plantada da oleaginosa poderá alcançar os 900 hectares.

“Se o crescimento urbano chegar até os limites do município, a qualidade do ar vai diminuir”

Luiz Paulo Vieira Ramos, chefe do escritório municipal de Porto Alegre da Emater/RS-Ascar, diz, entretanto, que muito mais de ser propícia à agricultura, a zona rural da Capital tem um papel muito importante na qualidade de vida dos porto-alegrense, por garantir saúde ambiental ao município. De acordo com Ramos, o perímetro agrícola é fonte de preservação de água e um corredor de ar oxigenado que vem da Laguna dos Patos e do mar. “Se o crescimento urbano chegar até os limites do município, a qualidade do ar vai diminuir”, sentencia.

Pelo Censo Agropecuário de 2017, Porto Alegre teria 398 propriedades rurais ativas, mas, segundo o chefe do escritório municipal da Emater, o número é maior e beira os 500 produtores, dos quais, 10% já têm cultivos orgânicos certificados. A variedade é imensa. “Porto Alegre tem tradição no plantio de frutas e olerícolas. Vai do pêssego à pitaya, no caso das frutas, e tem cerca de 30 espécies de legumes e verduras”, contabiliza. Há também uma base forte de cultivo de flores, que fortalece a renda do produtor, sempre em propriedades diversificadas.

Foto: Cesar Lopes / PMPA / Divulgação / CP

“A vantagem maior para o produtor que planta na Capital está em um mercado próximo e ávido por produtos frescos”, comenta Ramos, ao lembrar das inúmeras feiras, e da possibilidade do agricultor estabelecer seu comércio com pequenos mercados e restaurantes, interessados em vegetais de boa qualidade, principalmente os orgânicos.
Luiz Paulo conta que a zona rural se início nas proximidades da Ponte de Pedra (na avenida Borges de Medeiros, no bairro Centro) e se expandiu para onde hoje é o bairro Moinhos de Vento. “Porto Alegre tinha moinhos de trigo e descascadoras de arroz”, recorda. As duas mais antigas feiras da uva no Estado, possivelmente as mais antigas do Brasil, tiveram início na Capital. A primeira, em 1913, na praça Guia Lopes, na Avenida Teresópolis. A segunda em 1921, no bairro Vila Nova, até hoje produtor de frutas.
Para os próximos anos, Ramos acredita que Porto Alegre deverá consolidar por volta dos 800 hectares o plantio de soja e em 400 hectares o plantio de arroz, cultivos que terão de analisar a possibilidade de se enquadrarem na lei que estabelece a cidade como zona de agrotóxicos até 2032. Além disso, devem surgir empreendimentos nas áreas de olivicultura e de pecanicultura (produção de noz-pecã). “Isto deve crescer também, por que são produtos que estão demonstrando rentabilidade”, completa.

Extensionista do escritório da Emater/RS em Porto Alegre, Luís Bohn, também enxerga o crescimento do interesse do produtor pela olivicultura e a pecanicultura. Bohn analisa que o agricultor familiar da Capital é sempre vulnerável às questões de mercado e que nunca foi tão importante a modernização dos empreendimentos. Ele diz que as famílias que dão espaço aos jovens, mais interessados em inovação, estão conseguindo avançar. “Mas a sucessão não é o usual, não é o que se vê normalmente”, informa.
No ano que vem, a Emater deve publicar o estudo bianual que incluirá as informações sobre a produção agrícola de Porto Alegre, com dados atualizados de volume e unidades produtivas.

Foto: Luciano Lanes / PMPA / Divulgação / CP

Sucesso dos agricultores está na variedade oferecida 

Instalados na zona sul de Porto Alegre, produtores como Gilberto Luiz Antunes, de Belém Novo, e o casal Rafael Hilário e Mayara Barros Lima, do bairro Extrema, apostam na diversificação de espécies para atender o consumidor urbano.

Gilberto Luiz Antunes mantém em Belém Novo, na Estrada Francisca de Oliveira, três hectares plantados de uma área de 23 hectares que possui. Foi torneiro mecânico do Exército, profissão que abandonou pelo cultivo agroecológico de cítricos, melão, melancia, hortaliças, legumes e flores. Somente de cítricos, chega a colher 8 mil quilos por ano, produção que venda nas feiras ecológicas da Capital.

Antunes comemora a atenção que o produtor vem recebendo da prefeitura. “Nunca vimos igual”, comenta. Diz que pela primeira vez está sendo estudado um Plano de Aquisição de Alimentos para o município (informação confirmada pelo secretário de Governança Local, Cássio Trogildo), que permitirá a venda dos alimentos orgânicos da Capital para a merenda escolar da rede municipal de ensino.

De Soledade, Gilberto encontrou no bairro Belém Novo, na zona sul de Porto Alegre, o terreno ideal para um cultivo variado de frutas, hortaliças e flores, comercializadas nas feiras de orgânicos do município | Foto: Gilberto Antunes / Arquivo pessoal.

O agricultor ressalta a importância de investimentos no Centro Agrícola Demonstrativo (CAD),principalmente no que diz respeito à recuperação do maquinário. “Hoje, não se compra um trator por menos que R$ 220 mil, o que é inviável para o pequeno agricultor. Por isso aguardamos a contratação de pessoal para que se possa retomar o uso dos tratores e da retroescavadeira existente no CAD”, completa.

Gilberto Antunes relata que o empreendimento em Belém Novo é a principal renda de sua família e que, além de vender os produtos in natura e flores, processa os alimentos que sobram a cada safra, transformando em geleias e conservas. “Tenho apoio do Senar e da Emater, sempre que necessário”, relata o agricultor de 59 anos, que veio de Soledade com a família aos 8 anos de idade e que sempre gostou de plantar, desde a infância.

No bairro extrema, produção projetada para ser constante e fresca

Mayara e o marido pretendem instalar na propriedade de dois hectares uma agroindústria para desidratar os alimentos colhidos que retornam das feiras | Foto: Larissa Hilário / Divulgação / CP

Os jovens Rafael Hilário e Mayara Barros Lima, instalados em uma área de dois hectares no bairro Extrema, ao lado do bairro Lami, na zona sul de Porto Alegre, vê como a maior vantagem do produtor rural da Capital o fácil deslocamento para as feiras no perímetro urbano. São, segundo Rafael, 35 quilômetros de sua propriedade até as feiras do Bom Fim, Auxiliadora e Tristeza, onde oferece as verduras orgânicas que planta.

Goiano, Rafael formou-se em Agronomia e, em 2006, veio trabalhar com a tia, Silvana Bohrer, proprietária do Sítio Capororoca, no Lami, muito conhecido pelos produtos processados orgânicos, como geleias e pães, e pelo uso de Plantas Comestíveis Não Convencionais (Pancs). Há dois anos, ele e a companheira adquiririam a área no bairro que a prefeitura pretende transformar em zona rural a partir da revisão do Plano Diretor. Do total do terreno, o casal planta 0,7 hectares, a maioria com folhosas de espécies que produzam durante o ano inteiro.”O nosso foco são as feiras e a oferta de produtos frescos toda a semana”, comenta Hilário. 

Na área de 0,7 hectares são semeadas de 10 a 15 espécies de verduras que tem boa produtividade o ano inteiro e que se sucedem no plantio de acordo com a estação. Rafael e Mayra não pretendem aumentar a produtividade, hoje de cerca de 500 pés de folhosas por semana. Há um plano, entretanto, de criação de uma pequena agroindústria no local, para desidratar e vender os alimentos que sobram.

Agrônomo, o goiano Rodrigo quer manter a produção em 0,7 hectares, com variedade e qualidade em legumes folhosos demandados pelo consumidor | Foto: Larissa Hilário / Divulgação / CP.

Correio do Povo
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