Dentre os muitos impactos das cheias registradas no Rio Grande do Sul no ano passado, o agravamento do trabalho infantil em Porto Alegre é um deles. O número de atendimentos de casos relacionados a esse tipo de descumprimento da lei subiu nos meses que sucederam a enchente. Muitas crianças e adolescentes de outros municípios afetados passaram a se deslocar para a Capital diariamente para realizar alguma atividade com o objetivo de ajudar na renda familiar.
Nos oito meses anteriores à catástrofe, entre setembro de 2023 e abril de 2024, o Sistema Informatizado da Secretaria Municipal de Assistência Social (antiga Fasc) realizou 403 atendimentos ligados ao trabalho infantil. Já nos oito meses posteriores, até 7 janeiro, o número foi de 506.
“Depois da calamidade, houve um aumento de atendimentos em relação ao trabalho infantil na nossa cidade, principalmente em regiões que foram atingidas e isso por causa da vulnerabilidade das famílias. Elas mudaram os locais (em que viviam e atuavam) e, até conseguirem retomar suas vidas, acabam colocando as crianças para trabalhar. Não é correto, mas as equipes (da prefeitura) têm acompanhado”, analisa o secretário de Assistência Social, Matheus Xavier.
Durante o mês de janeiro, 304 famílias foram registradas em acompanhamento por situação de violações de direitos do trabalho infantil.
Crianças e adolescentes oriundos de cidades afetadas pelas chuvas na Região Metropolitana, como Alvorada, por exemplo, passaram a vender produtos em pontos da avenida Assis Brasil, incluindo o terminal Triângulo. O mesmo acontece com moradores de municípios por onde passam os coletivos da Trensurb. Todos os dias, entram e saem vendedores de doces e panos de prato dos trens, no trajeto entre o Vale do Sinos e o Centro de Porto Alegre. Alguns se deslocam acompanhados dos pais e outros sozinhos. “Temos que atuar em conjunto com a Região Metropolitana para conseguir evitar que esse número de crianças trabalhando aumente”, destacou Xavier, ressaltando que a meta também é desenvolver um plano com a colaboração da Trensurb.
Xavier sustenta que houve agravamento, mas que o trabalho infantil, ou seja, qualquer atividade realizada por menores de 16 anos, exceto atividades de aprendizagem, a partir dos 14, já era uma realidade acompanhada por assistentes sociais e outros profissionais da administração municipal. Dentre as estratégias utilizadas após a identificação dos casos, está o encaminhamento para os centros de convivência, que oferecem atividades no contraturno da escola e orientação aos responsáveis.
Serviço de assistência
A coordenadora do Serviço Especializado de Abordagem Social (Seas) região Centro, Michele Nunes D’Ávila, ressalta que a rotina de enfrentamento começa com a abordagem e a identificação. As equipes andam pelas ruas e mapeiam os territórios para observar a presença tanto de moradores de rua, como de crianças e adolescentes trabalhando. Muitas vezes, o conhecimento dos casos ocorre a partir de denúncias por meio do telefone 156. “A aproximação deve ser mais sensível, lembrando que não tem papel fiscalizador.” A partir daí, é verificado se a família tem acesso aos serviços públicos e se as crianças estão matriculadas na escola.
À medida que esses grupos aceitam a identificação e o registro para obter algum tipo de serviço necessário, as crianças e os adolescentes geralmente passam a frequentar os espaços de convivência, que costumam virar referência de proteção. A participação no programa Jovem Aprendiz também é estimulada a partir dos 14 anos, já que é voltado à formação profissional, com supervisão e jornada reduzida. Contudo, no período da enchente em Porto Alegre, parte dos serviços públicos ficaram suspensos, o que agravou a vulnerabilidade de muitos grupos. “Os territórios mudaram bastante. Estamos tentando entender”, destacou D’Ávila.
Atualmente, cerca de 11 mil jovens com menos de 18 anos são acompanhados pelos serviços socioassistenciais, sendo 300 deles por situações de trabalho infantil. Uma parte acaba participando das atividades oferecidas e deixando o trabalho, mas há os que continuam ou param por um tempo e retornam, o que reflete a complexidade do tema por vários motivos.
“A maior dificuldade está nos casos mais crônicos”, descreve D’Ávila, citando crianças vítimas de exploração sexual e tráfico de drogas. “A assistência social tem um limite e isso demanda participação da segurança pública.” Existem ainda os problemas transgeracionais, como a atuação na reciclagem de lixo, em que avós e pais também começaram quando crianças, o que dificulta a mudança cultural.
A equipe de assistência recorda o caso de um menino que trabalhava na reciclagem e passou a ser assistido pelo poder público. O primeiro banho que tomou foi em uma unidade de convivência. Um tempo depois, a família, que também passou a ser acompanhada, ganhou auxílio moradia. No episódio deste adolescente, não ocorreu a solução completa do problema, mas houve avanço, com a redução da participação dele no serviço desempenhado pelos familiares.
Familiares argumentam que conseguem mais dinheiro levando as crianças
Outra dificuldade enfrentada é o convencimento de quem atua nas sinaleiras vendendo produtos para não levar os filhos a esses locais. Um dos pontos críticos é a avenida Salvador França, onde todos os dias são vistos meninos e meninas expostos junto aos carros. “Tentamos sensibilizar, mas muitos dizem que conseguem mais dinheiro levando as crianças”, conta Michele, lembrando ainda que os próprios adolescentes justificam a necessidade de obter dinheiro para comprar suas coisas, incluindo materiais escolares e mochilas. Desses, vários demonstram vontade de participar do Jovem Aprendiz, mas alguns deixaram de ir à escola ou têm atraso escolar, limitando o alcance de vagas.
Por esse motivo, Janaina Dias Assunção, assistente social e coordenadora da Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Infantil (Competi), ressalta que a orientação é não comprar de crianças e adolescentes nem dar dinheiro, pois isso estimula a permanência dos jovens nas ruas. “Precisamos contar com a conscientização da população”, salienta.
Essa permanência nas ruas fica evidente em eventos como jogos de futebol. Crianças que frequentam a Fundação Fé e Alegria e que atuam no entorno dos estádios vendendo produtos costumam chegar no dia seguinte ao local de abrigo exaustas e, ao mesmo tempo, agitadas. “Elas vêm com os bolsos cheios de dinheiro”, conta Silmara Duarte Sales, coordenadora do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, da Fundação Fé e Alegria. Antes da enchente, inclusive, eram disponibilizados colchonetes para as crianças e os adolescentes dormirem. A situação reforça a necessidade de conscientização.
“Uma vez encontramos uma menina próximo à Arena do Grêmio com os olhos vermelhos e disse que estava lá desde as 7h. Possivelmente ela estava guardando lugar para os pais comercializarem. Tinha 7 ou 8 anos. A equipe ficou muito tocada”, citando apenas um dos exemplos que passam pelos espaços de acolhimento.
Desde os 11 na construção
Aos 14 anos, João (nome fictício para preservar a identidade do entrevistado) frequentava a escola no turno da manhã e, à tarde, trabalhava em obras com o tio. Ele conta que começou a atuar acompanhando o trabalhador em um dia de serviço. Ficou encarregado de retirar pisos e limpar o local. “Eu gostei e pedi para me levar de novo. Fiquei lá do meio dia até as 18h”, descreve. Pelo meio turno, a remuneração foi R$ 40. A partir daí, essa rotina se tornou uma realidade para o adolescente. “Com o dinheiro, eu arrumei meu telefone que estava estragado, comprei meu fone de ouvido e essa corrente com a minha inicial”, mostra.
Ao longo do tempo, acumulou as funções de virar massa e auxiliar na colocação de telhas. Fora isso, carregou cimento, tijolos e madeira. Alimentando o sonho de ser jogador de futebol ou lutador, João argumenta que trabalha por opção. “É para comprar as minhas coisas com o meu próprio dinheiro e para a minha tia não se preocupar em comprar. Eu vou lá, faço o serviço e compro.”
A tia de João é responsável por sua criação desde que a mãe dele morreu. “A gente sabe que não pode trabalhar, mas ele queria ter o dinheiro dele”, explicou. “Ele já vinha ao longo dos anos trabalhando, desde os 11 anos, mas começou a ficar trabalhando direto quando fez 13 anos. Queria comprar tênis, roupas e um celular.”
Ela informou, porém, que João, agora que já completou 15 anos, não deve mais atuar em obras. “Em dezembro de 2024, dia 30, foi o último dia que ele trabalhou, porque parou o movimento por conta do final do ano. Ele está procurando um estágio de jovem aprendiz para alternar com o horário da escola”, destacou.
O trabalho desenvolvido por João está na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). A procuradora coordenadora da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e de Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes (Coordinfância) do Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), Amanda Fernandes Ferreira Broecker, ressalta que os trabalhos classificados nas piores formas só poderão ser exercidos a partir dos 18 anos. “Não há, nem mesmo EPIs (Equipamento de Proteção Individual) infantis”, explica.
Broecker enfatiza que adolescentes trabalhando na construção civil correm sérios riscos de acidentes graves. “Nenhum adolescente poderia estar prestando serviço na construção civil, que é uma das piores formas de trabalho infantil justamente pelos riscos envolvidos.”
Em decreto da Presidência da República, publicado em 2008, sobre a lista TIP, consta a construção civil e pesada, incluindo restauração, reforma e demolição, como um provável risco à saúde, incluindo os perigos com acidentes por queda, com máquinas e ferramentas. O documento também refere a exposição à poeira de tintas e cimento. Fora isso, também há exposição a vibrações e movimentos repetitivos. Estão listadas consequências como bursites e tendinites, além de intoxicações, episódios depressivos e traumatismos.
A procuradora destaca que um dos prejuízos é o impacto na educação. “A frequência escolar não pode ser usada como desculpa. Muitas vezes, esses adolescentes já chegam cansados depois de um turno de trabalho exaustivo e acabam não conseguindo acompanhar as aulas”, alerta.
Prejuízos a longo prazo
Segundo a procuradora Amanda Fernandes Ferreira Broecker, a evasão escolar e o trabalho infantil estão intimamente relacionados. “O adolescente que trabalha pode acabar optando por permanecer apenas no trabalho, pois o rendimento escolar é prejudicado. Com isso, perpetua-se um ciclo de pobreza e miséria, no qual a criança trabalha junto aos pais que, muitas vezes, também não tiveram acesso à instrução.”
O Ministério Público do Trabalho tem desenvolvido projetos para combater essa realidade, como o MPT na Escola, que capacita educadores para levar informações sobre o trabalho infantil para as salas de aula. “Precisamos desmistificar ideias equivocadas como ‘é melhor trabalhar do que roubar’ ou ‘trabalhei e sobrevivi’, pois ambas ignoram que o trabalho infantil é uma violação de direitos”, conclui Broecker.
Ela também destacou que a aprendizagem profissional foi impactada pelo fechamento de empresas em razão das enchentes. “As empresas mais afetadas, que fecharam suas portas, tinham aprendizes contratados e eles foram demitidos. Outras empresas que fecharam temporariamente também cogitaram demitir os aprendizes, mas conseguimos manter os contratos.”
Sobre o impacto das enchentes no trabalho infantil, a procuradora afirma que ainda não há pesquisas consolidadas, mas que algumas tendências começam a ser observadas. “Em Santo Antônio da Patrulha, onde estamos implementando políticas públicas, nos reportaram em outubro, quando fui lá, um aumento do tráfico de drogas porque alguns adolescentes foram de Canoas para lá. Há um fluxo migratório de algumas regiões muito afetadas para outras menos afetadas.”
A procuradora destacou que o trabalho infantil não se caracteriza apenas pela baixa remuneração, mas muitas vezes pela ausência total de pagamento. Segundo ela, essa forma de exploração pode envolver tanto atividades econômicas quanto de subsistência, sem a necessidade de ser remunerada para se enquadrar na definição legal.
“Para ser considerado trabalho infantil, basta que seja exercido antes dos 16 anos, salvo em casos de aprendizagem profissional. Já atividades não insalubres, perigosas ou penosas podem ser realizadas a partir dos 16 anos, desde que não ocorram no período noturno nem causem prejuízos físicos, psicológicos ou morais. As piores formas de trabalho, no entanto, só são permitidas a partir dos 18 anos, quando há a exigência de EPIs e formalização", explicou Broecker.
Crianças passaram a ser sujeitos de direito com a Constituição de 1988
O trabalho infantil no Brasil tem uma história marcada por avanços legais, mas também por desafios persistentes. A doutoranda em Direito e professora do curso de Direito da Unesc Juliana Paganini realizou uma pesquisa sobre o tema, analisando a situação antes e depois da Constituição de 1988. “A partir da Constituição de 1988, a gente começa a encarar a criança e o adolescente como sujeitos de direito. Antes disso, eram vistos como objetos, como mão de obra explorada”, explica. A pesquisadora destaca que, apesar dos avanços, o índice de trabalho infantil no Brasil ainda é alto, tornando o tema urgente.
Segundo a professora, os registros de trabalho infantil no Brasil remontam à época da colonização. “Os primeiros relatos são de 1530, com crianças pobres enviadas para embarcações portuguesas para trabalhar. Quando os navios ficavam muito pesados, eram os primeiros a serem jogados ao mar”, conta. Mais tarde, surgiram as “rodas dos expostos” nas Santas Casas, onde crianças abandonadas passavam a trabalhar desde muito cedo para pagar a dívida de sua própria criação.
Durante a escravidão, as crianças negras eram obrigadas a trabalhar para os filhos da burguesia e, após a abolição, o trabalho infantil foi se deslocando para as fábricas. No século XX, consolidou-se a ideia de que “o trabalho cura” e era visto como solução para evitar que as crianças “se tornassem marginais”. “A primeira norma jurídica que menciona crianças e adolescentes no Brasil aparece no Código Penal, e não para protegê-los, mas para criminalizá-los”, ressalta.
A evolução legal do tema mostra avanços graduais. A Constituição de 1934, por exemplo, proibiu o trabalho infantil para menores de 14 anos, mas ainda sem um mecanismo sólido de proteção. Em 1946, permitiu-se que juízes autorizassem o trabalho abaixo da idade mínima. Já em 1967, houve um retrocesso, com a idade mínima reduzida para 12 anos. Somente com a Constituição de 1988 houve mudança significativa. “É uma conquista gigantesca para o Brasil, porque, juridicamente, passamos a encarar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos.”
Apesar dos avanços, a pesquisadora alerta que a erradicação do trabalho infantil ainda enfrenta barreiras culturais e estruturais.
“Não podemos ser hipócritas e pensar que tudo está resolvido. O trabalho infantil está atrelado à pobreza, mas também à crença cultural de que ‘melhor trabalhar do que roubar’, ‘melhor trabalhar do que usar drogas’. Esses fatores fazem com que o índice continue elevado.”
As consequências do trabalho infantil incluem evasão escolar, danos físicos e psicológicos. Paganini destaca que, hoje, o Brasil conta com instrumentos importantes para o enfrentamento do problema, como o Conselho Tutelar, os fóruns de direitos e políticas de assistência social. “Existe uma responsabilidade compartilhada entre família, sociedade e Estado. A escola tem papel fundamental, e nós, como sociedade, também temos o dever de denunciar casos de trabalho infantil.”