As vidas que os doadores de sangue salvam

As vidas que os doadores de sangue salvam

Todos os dias, quem doa sangue ajuda pessoas que dependem dele para sobreviver

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Por Angélica Coronel – jornalista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, especial para o Correio do Povo

“Só havia uma chance. Ou a cirurgia dava certo, ou aquele bebê iria crescer sem a mãe.” É assim que a professora Janete Vettorazzi, do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), descreve um dos casos mais difíceis que enfrentou em 30 anos de profissão.

Quem só tinha uma chance para sobreviver era a comerciante Denise Dick Santos. Aos 44 anos e grávida de 32 semanas do quarto filho, ela foi diagnosticada com acretismo placentário, que ocorre quando a placenta fica mais aderida ao útero que o normal. No caso dela, a placenta aderiu também às veias ilíacas, que são vasos com grande fluxo de sangue, o que aumentava o risco de uma hemorragia fatal.

Professora Janete Vettorazzi, do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) | Foto: Angélica Coronal / divulgação / CP

Internada, Denise se mantinha na iminência de transfusões de sangue diariamente. Mas como conseguir doadores, em plena pandemia de Covid-19? Quem deixaria o lar para ser solidário, quando ficar em casa era o pedido mais urgente? “A gente sabe que é importante, mas não pensa nisso”, conta Denise, reproduzindo uma fala comum sobre doação de sangue. “Até que a gente precise”, ela arremata.

Denise tem anticorpos irregulares, uma alteração que faz com que precise de um tipo sanguíneo especial. A luta para se manter viva e poder criar a filha mobilizou vários habitantes de Capão da Canoa, onde a família mora. Entre eles estava o padeiro Aguinel Machado, colega de trabalho no supermercado onde o marido dela trabalhava. Graças à generosidade do dono do local, que lotou três vans para trazer doadores, Aguinel, que era 100% compatível com Denise, fez a doação. Já o corretor de imóveis Fábio Cardoso, que nunca havia doado sangue, dava carona para outros moradores e percorria 120 quilômetros do Litoral até o Banco de Sangue do Clínicas para ajudar a amiga de infância. Por causa de Denise, ele, que tinha desmaios toda a vez que via sangue, hoje é um doador frequente. “O melhor jeito de perder o medo de doar sangue é doando”, simplifica Fábio, que virou o padrinho da bebê, que nasceu saudável e não poderia ter outro nome: Vitória.

Denise Dick Santos e a família. Em meio à pandemia de Covid-19 e então grávida de 32 semanas, ela precisou ficar internada e se mantinha na iminência de transfusões diárias de sangue | Foto: Arquivo Pessoal / CP

O parto foi realizado em agosto de 2020 por 15 médicos de seis especialidades. Reuniões com mais de 60 pessoas foram realizadas para planejar o procedimento. Mas nada poderia garantir o sucesso da empreitada se não fosse um componente essencial, que não depende de conhecimento ou ferramentas especializadas: sangue. Para salvar Denise, foram necessárias 20 bolsas, quantidade fora dos padrões até mesmo em casos como o dela. “Ela ia morrer se não tivesse essa quantidade de sangue disponível”, sentencia Janete. É o que acontece com muitas mulheres. Hemorragias ainda são a segunda maior causa de morte materna no país, e hospitais menores muitas vezes não têm o estoque necessário para o tratamento. “Por isso, quando recebo gestantes de alto risco, sempre oriento que tragam doadores”, afirma. Denise foi salva graças a esse componente, essencial e insubstituível. “Não adianta ter um bom hospital e um bom médico se não tem uma pessoa para doar. É o sangue que salva a tua vida.”

Antes de chegar à veia

Bancos de Sangue vivem em uma corda bamba. Não é difícil encontrar na mídia reportagens com apelos por sangue. Alguns hospitais adotam como protocolo solicitar que o paciente traga doadores, antes mesmo do procedimento. Algo nem sempre possível em um hospital como o Clínicas, que, pela complexidade dos atendimentos, costuma receber muitos pacientes de fora da Capital ou do Estado. No HCPA, o chefe do Serviço de Hemoterapia, Leo Sekine, conta que alguns tipos sanguíneos já tiveram menos de dez bolsas em estoque. É quando começa a ser realizado um cálculo doloroso: tem mais chances de receber sangue quem está em situação mais grave, com tratamento em curso ou quem precisa de procedimentos que não podem esperar. “As cirurgias eletivas, como hérnia ou vesícula, acabam ficando em segundo plano, atrás de transplantes ou cirurgias para retiradas de tumores que são inadiáveis. Mas toda vez que isso acontece é um luto, um pesar pra nós, porque sabemos que aquele paciente pode estar há meses esperando aquela cirurgia”, lamenta o médico e professor.

Para evitar situações extremas, o trabalho do Banco de Sangue do HCPA é constante. Isso porque, para além dos tipos A, B e O, e dos RH positivo e negativo, a combinação de cerca de 230 antígenos resulta em uma infinidade de subtipos sanguíneos. Como encontrá-los, se menos de 2% da população em geral costuma doar sangue? Muitas vezes a chance de encontrar um doador totalmente compatível é de uma em 100 mil. Em datas festivas, o Banco organiza apresentações musicais, chama comediantes e influenciadores e oferece até maquiagem para agradecer o gesto. Telefonemas são disparados diariamente, com pedidos de doação. “Alguns garantem que virão doar, mas nunca vêm”, conta Sekine.

Luiz Humberto Milego veio 80 vezes, a última, um dia antes de completar 70 anos, idade limite para doar. Por anos, o programador, hoje aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), percorreu os poucos metros entre o Centro de Processamento de Dados da Ufrgs e o Banco de Sangue do HCPA para doar plaquetas, que se renovam em menos tempo e permitem mais doações. De tanto frequentar o local, já conhecia as funcionárias e até alguns doadores. Com tanta experiência, Luis Humberto arrisca alguns motivos para haver tão poucos doadores: “As pessoas têm um medo ancestral de se ferir por conta própria”, afirma. “E também não tem interesse de dar alguma coisa de graça para os outros”, acredita ele, que já foi até criticado por doar. “Perguntaram para que gastar sangue”. O motivo, segundo ele, é ser útil: “Ajudar os irmãos do mundo”.

Voluntários como Luiz Humberto costumam suprir a demanda dos pacientes que não conseguem arrecadar doadores. O Banco de Sangue trabalha com o número de 80 doações diárias. Se fosse assim todos os dias, não seria necessário apelar para funcionários, usar redes sociais e mandar apelos para a imprensa para manter estoques. Em épocas de tragédias, como a da Boate Kiss, em janeiro de 2013, as doações disparam. Nas enchentes de maio de 2024, a população lotou a recepção do Banco de Sangue. Chegaram a ser 160 doações por dia. Mas a ânsia por ajudar passou rápido. “Tivemos que pedir para as pessoas agendarem no site, para não ficarem horas esperando. Mas muitos agendaram e depois não compareceram”, relata a gestora do Banco de Sangue do HCPA, Patrícia Seltenreich. Sekine compara a necessidade de doações ao fornecimento de frutas para um supermercado. “Precisa ser constante. Não adianta entregar todas no mesmo dia e depois passar vários dias sem fazer nenhuma entrega. As frutas vão estragar e não vai ter como repor”.

Sangue tem validade

Conseguir o número suficiente de doadores é só o primeiro passo no caminho que o sangue percorre até chegar ao corpo de quem necessita. E boa notícia tem prazo de validade: 35 dias, tempo que o líquido pode ser utilizado em transfusões. Para pacientes com transtornos renais ou recém-nascidos, o sangue deve idealmente ter sido coletado em até 10 ou no máximo 5 dias, respectivamente.

São vários os cuidados, justificados pela necessidade de garantir a qualidade e a segurança dos hemocomponentes. Muitos que querem doar se perguntam por que acabam barrados antes mesmo de chegar à sala de coleta. A lista de motivos é variada: o mais frequente é pelo nível baixo de hemoglobina no sangue. A legislação exige um nível um pouco maior que o mínimo considerado normal (13 para homens e 12,5 para mulheres), para que a doação não acabe provocando uma anemia. Mas candidatos com pressão alta e outras comorbidades, ou que usam algumas medicações, e até com histórico de viagens para alguns países, podem ser impedidos.

“O intuito é tentar bloquear não só o que sabidamente pode trazer problemas, mas também o que não se conhece, para proteger o receptor, que já se encontra em uma situação vulnerável”, afirma Leo. A doação de sangue por homossexuais, por exemplo, só foi permitida em 2021. “Não é uma questão de gênero, e sim de comportamento. Se o doador - hétero ou homossexual - tiver se relacionado sexualmente com muitos parceiros nos últimos seis meses, existe chance de colocar o paciente em risco, porque algumas doenças só se manifestam depois desse período”, explica Patrícia. Logo após as enchentes de maio de 2024 no Estado, o risco de transmissão de leptospirose pelo contato com a água contaminada fez aumentar o número de potenciais doadores que não puderam efetivar a doação. Considerando todos esses pré-requisitos, a média de doadores considerados inaptos costuma ficar na casa de 15% a 20%. E depois de coletado, o sangue ainda passa por pelo menos sete testes, para doenças como sífilis, hepatites, HIV e até malária. Três deles, para hepatites e HIV, são realizados no Hemocentro de Santa Catarina (Hemosc), o que explica por que uma bolsa de sangue pode levar cerca de 36 horas para ser liberada. Mas, ao final de toda essa jornada, uma única bolsa de 500ml pode salvar quatro vidas: dela se extraem um concentrado de hemácias, as plaquetas, o plasma fresco congelado e o crioprecipitado, que podem ir para quatro pessoas diferentes.

Sem parentes no Brasil: quem poderia doar?

Quando saiu de Porto Príncipe, capital do Haiti, a auxiliar de limpeza Murielle Dorisca veio em busca de uma vida melhor. Deixou para trás os três filhos, com idade entre 15 e 28 anos. Maria Vitória, a quarta filha, é porto-alegrense. Quando nasceu, ficou seis dias internada. O motivo está escrito em um pequeno cartãozinho, que a mãe guarda na carteira até hoje: o teste do pezinho, que revelou anemia falciforme. “O médico disse que ela nasceu com um problema comum em pessoas negras. Fiquei preocupada”, conta ela.

Maria Vitória, de 7 anos, tem anemia falciforme e faz transfusões de sangue desde os 4 anos no Banco de Sangue do HCPA. No dia da foto, ela estava acompanhada pelo pai, Joséph Louistene Desire | Foto: Angélica Coronel / divulgação / CP

A doença é um distúrbio hereditário em que os glóbulos vermelhos assumem o formato de foice, o que pode gerar coágulos que, em casos extremos, podem causar um AVC. As células vermelhas morrem prematuramente, causando uma escassez de glóbulos vermelhos saudáveis (a anemia) e podem obstruir o fluxo sanguíneo, causando dores, infecções e fadiga. Cerca de 300 pessoas possuem anemia falciforme em Porto Alegre. Essa é a doença genética mais incidente no mundo e no Brasil.

Maria Vitória cresceu até os seis meses sem problemas de saúde. A primeira internação durou seis dias. “Ela chorava o tempo todo, não queria comer, os pés inchavam, tinha dor de barriga”, relata a mãe. Com um ano, desmaios semanais e mais 22 dias de internação. Aos quatro anos, iniciaram as transfusões, feitas mensalmente no Banco de Sangue do HCPA. A enfermeira Monalisa Sosnoski é uma das que fazem o procedimento. Com um “O+” tatuado no braço, circundado por uma gota de sangue e um jaleco cheio de gotinhas sorridentes, ela senta ao lado de Maria Vitória e faz o procedimento manualmente, por cerca de cinco horas. Na primeira vez que a acompanhamos, a menina de 7 anos dormiu a maior parte do tempo. Na segunda, explicou como tudo acontece. “Eu como um bolinho, elas pegam um negócio gelado, pegam um paninho e botam a agulha. Não dói, porque já estou acostumada. Antes eu tinha anemia e sempre desmaiava. Agora, não”, diz a pequena, que ainda não decidiu se vai ser médica ou trancista. Na terceira, cercada por três profissionais para fazer a punção, a pequena chorou.

A exsanguíneo transfusão alterna entre retirar parte do sangue da paciente e injetar o sangue doado. São usadas uma ou duas bolsas de sangue, doadas por quem atendeu à convocação do Banco. Porque não basta ter alguém para doar. A especificidade é tão grande que apenas pessoas com o mesmo subgrupo sanguíneo da Maria Vitória podem ser doadores. Algumas combinações são raras. É um caminho longo: além de realizar os testes para achar um doador compatível, ele precisa estar apto à doação e atender ao chamamento. “É preciso ter o mesmo fenótipo para não expor a Maria Vitória a antígenos que ela não possui. Se ela for exposta, pode aos poucos criar mecanismos de defesa (anticorpos). Com o tempo, ficaria mais difícil encontrar sangue compatível”, explica Patrícia.

Por possuírem o gene recessivo que transmitiu a anemia, o pai e a mãe de Maria Vitória não são doadores recomendáveis. Sem familiares no Brasil, Murielle muda a expressão quando pensa o que aconteceria com a filha se não houvesse doadores. Ela baixa os olhos, dá um sorriso aflito, e mostra familiaridade com a gíria gaúcha que revela, em três letras, um misto de sensações: “Bah... se um dia a gente não conseguisse sangue pra ela... nem sei o que dizer”.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895