O Brasil vai liderar uma expedição de 61 cientistas de Argentina, Brasil, Chile, China, Índia, Peru e Rússia, que percorrerá mais de 20 mil quilômetros do continente antártico para chegar o mais perto possível da costa. Eles partem na próxima sexta-feira do Porto de Rio Grande e permanecerão em missão durante 60 dias, enfrentando temperaturas de 0 até -20 graus no verão antártico. A bordo do navio quebra-gelo russo Akademik Tryoshnikov, o principal objetivo dos cientistas é analisar a estabilidade das plataformas e do manto de gelo antárticos frente ao aquecimento global e o que isso pode representar em termos de aumento do nível dos mares.
O pesquisador Jefferson Cardia Simões, do Centro Polar e Climático (CPC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), lidera a Expedição Internacional de Circum-Navegação Costeira Antártica e destaca que missões que avançaram pelo continente ou fizeram circum-navegação existem há mais de dois séculos. “O pioneirismo desta nova expedição está em ser realizada o mais perto possível da costa da Antártica.”
Mudanças Climáticas
A Antártica, continente mais ao sul do planeta, é a região mais fria da Terra e seu principal regulador térmico, controlando as circulações atmosféricas e oceânicas. É ali que estão 90% das reservas de gelo e 70% da de água doce do planeta, além de ter recursos minerais e energéticos. Com cerca de 14 milhões quilômetros quadrados, seu território equivale à área de Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Peru e Bolívia juntos.
Em tempos de aumento da temperatura média da Terra, a Antártica está ligada ao aumento do nível do mar devido ao derretimento de seu manto de gelo. “Nos cenários de mudanças do clima e suas implicações para o nível do mar, o IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas] tem um cenário que vai de 30 centímetros a 1,2 metro até o ano de 2100, em resposta a um aquecimento de 3 a 4 graus. Se forem 4 graus, vai ser 1,20 metro. Mas há um outro cenário, para 200 ou 300 anos, que, se realmente for instável essa posição (das plataformas de gelo), o nível do mar pode subir até 6 ou 7 metros. E aí Porto Alegre estará debaixo d’água.”
Além do nível do mar, o que acontece na Antártica está relacionado a outros fenômenos, que também serão estudados na missão de circum-navegação. “Um ponto importante é que nós estamos colaborando com diferentes projetos para medir características em vários lugares, porque o oceano austral está se tornando mais ácido, menos salino e mais quente”, afirma Simões.
O professor lembra que, quando se emitem gases de efeito estufa, não é apenas a composição da atmosfera que muda, mas também a do oceano. “O oceano está absorvendo mais CO2 e isso forma um ácido, o ácido carbônico. É um ácido fraco que começa a atingir os microrganismos, a base da cadeia alimentar. Está todo mundo preocupado”, explica Simões, ressaltando que, como em todo tipo de mudança ambiental, há fenômenos em série ocorrendo. Ele destaca as enchentes que aconteceram no Rio Grande do Sul em maio deste ano e o papel da Antártica no sistema climático, em todo o clima do hemisfério sul.
O professor Francisco Eliseu Aquino, do Departamento de Geografia da Ufrgs, coordenará as pesquisas do grupo de climatologistas durante a expedição. Segundo ele, a viagem permitirá estudar o ciclo hidrológico examinando as conexões entre a região tropical e a Antártica. “Também faremos perfurações na neve e gelo para investigar a variabilidade do clima e da química da atmosfera ao longo dos últimos 100 anos”, diz ele.
A viagem no Akademik Tryoshnikov
No percurso ao redor da costa, os pesquisadores estarão a bordo do navio quebra-gelo Akademik Tryoshnikov, do Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica de São Petersburgo, da Rússia. No mundo, existem apenas quatro navios quebra-gelo científicos e o Tryoshnikov é um deles. “Nós vamos nos aproximar o máximo possível da costa, para isso precisamos de um quebra-gelo. O Brasil não tem quebra-gelo, tem dois navios resistentes a gelo. Mas embarcação resistente não consegue partir gelo consolidado, pode passar onde já está quebrado, onde tem placas de gelo. Agora, o quebra-gelo pode partir 1,5 metro, até 2 m [de gelo consolidado]”, explica o líder da expedição, Jefferson Cardia Simões.
A bordo, durante dois meses, estarão 140 pessoas, sendo 61 pesquisadores e a tripulação. Além disso, o navio carregará dois helicópteros, que sairão para realizar sobrevoos e ajudar quem precisa desembarcar para trabalhar no continente. Conforme Simões, a expedição prevê paradas em estações russas e chinesas e, talvez, em uma indiana.
Como é uma viagem de circum-navegação ao redor da Antártica, os pesquisadores vão passar por todas as longitudes da Terra, já que os meridianos se juntam nos polos. Assim, eles precisarão acordar um fuso horário de referência. “Nós estávamos até discutindo se vamos usar o horário de São Petersburgo ou Porto Alegre”, diz Simões.
O pesquisador explica que será estabelecido um horário para as pessoas acordarem, tomarem café da manhã e começarem a trabalhar. O fluxo de atividades de cada um depende, entre outras coisas, do tipo de pesquisa, da localização do navio e das condições atmosféricas. “Vamos supor, por exemplo, que tu queres fazer uma estação de oceanografia. Tens que parar o navio, jogar os equipamentos científicos, até 1.000 m de cabo, sobe, desce, isso demora algumas horas. Nesse meio tempo, o cara que trabalha com atmosfera continua suas atividades, agora, o glaciologista não tem nada para fazer nesse dia. Vai ter que fazer trabalho de escritório.” No meio disso, tem almoço e janta e “talvez umas coisinhas para comer nos intervalos”.
Países unidos para conseguir fazer pesquisa científica
“É assim que funciona a cooperação internacional da ciência, tu divides os custos para fazer uma pesquisa de referência, coletar os dados”, afirma Jefferson Cardia Simões, que é pioneiro da Glaciologia no Brasil e foi vice-presidente do Comitê Científico de Pesquisa Antártica do Conselho Internacional de Ciências (SCAR/ISC). O professor destaca que a missão liderada por ele só foi possível porque houve uma junção de conhecimentos, recursos financeiros e estrutura de vários países. Ele cita, por exemplo, a utilização do navio quebra-gelo russo. “Esse foi um motivo essencial para a cooperação com o Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica de São Petersburgo. Eles são os proprietários desse navio.” A expedição é 97% financiada pela fundação suíça Albédo Pour la Cryosphère, dedicada ao estudo e à preservação da massa de neve e do gelo planetário. E conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do RS (Fapergs).
Os 27 pesquisadores brasileiros que participam da Expedição Internacional de Circum-Navegação Costeira Antártica são vinculados a instituições associadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera e a projetos de pesquisa do Programa Antártico Brasileiro (Proantar/CNPq). Eles participam de diferentes estudos que ocorrerão simultaneamente durante a viagem.
Simões salienta o valor da viagem para o Brasil, tanto para ciência como para expressar a liderança do país. “Mostra que a gente está chegando a outro patamar, principalmente de colaboração internacional.” O professor destaca, porém, que apesar do protagonismo brasileiro em algumas áreas, como na própria glaciologia, muito da relevância da pesquisa brasileira se deve mais a iniciativas e persistências individuais do que a políticas públicas. “No Brasil, infelizmente, raramente temos política pública de ciência e tecnologia. Temos política de governo, não de estado.”