Por Vitória Miranda
Buscar um companheiro de quatro patas normalmente traz algumas dúvidas. Comprar ou adotar? Onde procurar?
Clarice Oliveira, presidente da Federação Cinológica do Rio Grande do Sul (Fecirs), afirma que não vê motivo para conflito entre quem prefere adotar e quem escolhe comprar. Em ambos os casos, se o ponto em comum é o amor pelos animais, para ela o que importa é a responsabilidade do criador que entrega o cachorro e do novo tutor que vai assumir a guarda do bichinho.
“Infelizmente existe essa imagem errada de que o criador de cães de raça é contra a adoção. A maioria dos criadores adota, tem um cachorro de raça não definida em casa e ajuda a causa dos animais de rua. Nos eventos (exposições e campeonatos de cães de raça) sempre recolhemos doações de ração para passar para as ONGs”, explica Oliveira.
Como identificar um criador responsável
No caso dos animais de raça, há uma diferença fundamental entre a criação adequada e a simples “reprodução” para venda. Por isso, se for comprar, é importante se certificar de que o criador é honesto e responsável. Os criadores de cães, muitas vezes biólogos, veterinários ou simplesmente entusiastas, são pessoas que tem como hobbie a preservação das raças de cães existentes no mundo, podendo ocasionalmente vender os filhotes ou cães adultos de sua criação.
Quando desenvolvido com seriedade, o trabalho do criador de cães não é movido exclusivamente pelo objetivo financeiro, pois há uma série de cuidados com o bem-estar e a saúde dos animais que são incompatíveis com uma geração de renda recorrente. “A minha criação não tem um objetivo exclusivo comercial. Não é o foco. Isso é importante porque quando o foco é apenas comercial o criador fica fadado ao erro”, defende João Batista, veterinário e criador de cães. No canil Jota Jota, que é administrado pelo veterinário em Osório, ocorrem no máximo três ou quatro ninhadas por ano. A criação de Batista é voltada ao treinamento dos cachorros para competição em eventos de apresentação de cães de raça.
Segundo Batista, quando o criador não tem conhecimento em genética ou não se importa com isso, pode cometer práticas indevidas como o cruzamento repetido de cães com grau de parentesco muito próximo e que já tenham alguma predisposição para doenças. “Existem conceitos técnicos como a consanguinidade que geram polêmica. O cruzamento entre parentes não tem problema desde que seja feito de forma responsável”, diz o criador. Segundo o veterinário, é necessário ter conhecimento sobre a saúde do animal por meio de exames genéticos prévios.
“Quando não conheço essa genética posso estar selecionando uma doença, como problemas cardíacos. Quando não há consanguinidade os filhotes saem mais heterogêneos e isso é importante que se faça de forma periódica justamente para não ter consanguinidade alta na criação. Na terceira ninhada de cruzamento entre consanguíneos os cães saem quase idênticos e a probabilidade de doenças aumenta, por isso essa prática não deve ser repetida em ninhadas seguidas”, explica Batista.
Boas práticas e conhecimento
A criação especializada envolve diversas práticas e conhecimentos, que vão desde a vacinação dos cães, disponibilização de um espaço amplo ao ar livre para promover a saúde e o bem-estar dos animais, estudos genéticos, tratamentos médicos, exames genéticos em possíveis pares reprodutores para verificar a predisposição a doenças e as características desejáveis, manejo do cruzamento, armazenamento de esperma em alguns casos, nutrição e cuidados especiais com a cadela em gestação, cuidados especiais com os filhotes, e, posteriormente, o treinamento dos cães para a convivência em matilha, quando é o caso, e com os humanos.
Para certificar o trabalho de um criador de cães, existem os Kennel Clubs, associações regionais de canis. Existem também as federações estaduais, que regulam os Kennel Clubs, e a Confederação Brasileira de Cinofilia (CBKC), entidade nacional. A CBKC, por sua vez, responde para a Federação Cinológica Internacional (FCI).
Estas instituições funcionam como uma espécie de cartório, onde os criadores registram a existência de cada animal. Elas também são responsáveis por estabelecer padrões para criação, emitir pedigrees e promover a exibição e premiação de cães de raça no Estado. No Rio Grande do Sul, por exemplo, existem cinco Kennel Clubs, localizados nos municípios de Porto Alegre, Guaíba, Pelotas, Santana do Livramento e Caxias do Sul.
Instituições ajudam na segurança
O Kennel Club de Porto Alegre se chama Kennel Club do Rio Grande do Sul (KCRGS), pois foi a primeira associação de cinofilia do Estado. Prestes a completar 80 anos de fundação, em março de 2025, hoje o Kennel Club é o 4º maior do Brasil em número de pedigrees emitidos, com 5 mil criadores associados. De acordo com Pedro Lang, atual presidente do KCRGS, “critérios de ética e cuidado na criação são fundamentais, sendo importante o rigor com saúde e higiene, tanto dos cães como do espaço que os cães vão ocupar”. O presidente do Kennel Club explica ainda que há uma ouvidoria interna na associação aberta para denúncias de possíveis maus tratos ou práticas indevidas, que ele faz questão de acompanhar de perto. Quando ocorrem casos deste tipo, o Kennel Club entra em contato com o criador e solicita a adequação às normas exigidas, podendo levar à exclusão do criador da associação caso a orientação não seja respeitada.
As instituições mencionadas acima não fazem a fiscalização dos espaços e condições de criação. De qualquer forma, são importantes porque exigem exames genéticos e realizam análises morfológicas para comprovar a raça dos animais durante os campeonatos de exibições de cães. Também não há uma exigência legal para que criadores de cães sejam veterinários, biólogos ou tenham algum tipo de formação na área. Apesar de não haver obrigatoriedade, existem diversos cursos técnicos e eventos informativos promovidos pelos próprios Kennel Clubs. João Batista, criador de cães, lamenta que hoje não exista uma fiscalização por parte de órgãos reguladores do Estado sobre a atuação dos criadores, para garantir as práticas adequadas de cruzamento e evitar maus tratos, por exemplo.
Apesar de não haver uma única forma de atestar que o canil respeita as boas práticas de criação, quem está disposto a adquirir um pet pode tomar alguns cuidados. O presidente do KCRGS também ressalta a importância de escolher bem a raça do cachorro. “A pessoa tem que ter em mente o que quer e se o cachorro vai atender essa expectativa. Tem muitas pessoas que vêm e dizem que querem um cachorro pequeno porque moram em apartamento. Mas os espaços têm que ser medidos pelo temperamento e não pelo tamanho do animal. Yorkshire é muito enérgico, enquanto o Akita é dez vezes maior e vive melhor em um apartamento”, contextualiza Lang.
Uma história de amor aos animais
Junior se tornou criador de cães aos 16 anos de idade, quando ganhou sua primeira cadela, a Nala, da raça bull terrier. A paixão pela atividade de criador começou um pouco antes, quando teve a oportunidade de visitar, na companhia do pai, uma exposição especializada no Estádio Cinófilo do KCRGS, na zona sul de Porto Alegre. De lá para cá, são 22 anos de uma trajetória ligada ao universo cinófilo. “Logo depois de ganhar a Nala comecei a estudar medicina veterinária e, em seguida, iniciei a mentoria de criadores que o próprio canil que vendeu a Nala oferecia”, relembra.
Com o tempo, resolveu mudar-se para o interior e instalou-se no sítio em Osório, onde mora até hoje. A decisão foi guiada pelo desejo de morar no campo e, também, pelo objetivo de proporcionar bem-estar aos cães de sua criação. Hoje, cria cães da raça pastor-de-shetland. Ele precisou ir atrás do segundo pastor-de-shetland com uma criadora no Canadá, que indicou o contato de uma rara criadora desta raça no Brasil, permitindo o cruzamento e a primeira ninhada.
Depois da Nala, o veterinário parou de criar o bull terrier, pois a raça não se adapta à vida em matilha. Atualmente é especializado na criação do pastor-de-shetland, com foco no treinamento dos animais para participação em campeonatos.
Acolhimento e adoção
Outra opção para quem busca um novo animal de estimação são as ONGs, canis municipais e pessoas físicas que fazem recolhimento de cães de rua. A adoção destes bichinhos, em sua maioria Sem Raça Definida (SRD), é um ato de solidariedade. Por falta de investimento das prefeituras em espaços e pessoal qualificado, nem todos os animais de rua são acolhidos pelos canis públicos e o trabalho acaba recaindo para as ONGs e sociedade civil. Em Porto Alegre, a prefeitura promove o programa "Me Adota”, que oportuniza a adoção de animais albergados na Unidade de Saúde Animal Victoria (USAV). A unidade de saúde também oferece castração a animais de tutores que possuam Número de Identificação Social (NIS) ou Bolsa Família.
Dicas para quem vai comprar ou adotar
- Conhecer o canil e conferir se há espaços ao ar livre, com áreas de sol e sombra para os cães brincarem;
- Conhecer o criador e tirar dúvidas sobre a criação dos cachorros;
- Conferir comprovantes de vacinação;
- Solicitar exame genético para conhecimento da saúde do animal;
- Solicitar o documento Pedigree (se for um cachorro de raça);
- Conferir se o canil é registrado ao Kennel Club no site do Kennel Club;
- Dar preferência para criadores que tenham formações na área, se possível veterinários ou biólogos;
- Verificar fotos dos pais e avós do cão e perguntar sobre doenças / comportamentos destes cães;
- Informar-se sobre a expectativa de vida do cão e pesquisar sobre as características da raça;
- Certificar-se de que a raça do cão é adaptável ao espaço que você tem em casa e que o comportamento padrão é compatível com o que você espera;
- Dar preferência para criadores que participem de feiras e campeonatos de exposição de cães, pois estes eventos são rigorosos na exigência de cuidados com a saúde do cão;
- Assegurar que você e demais pessoas que cuidarão do pet terão tempo e disposição para atender às necessidades do novo amigo.
Curiosidades
Pedigree: é o documento oficial do cão fornecido pela CBKC, uma espécie de carteira de identidade do animal de raça. Esse documento atesta que o cão tem a série padrão de características genéticas da raça e serve para que o canil possa comprovar a raça do cão aos novos tutores. O documento conta com informações como: raça, sexo, peso, tamanho, cor, tipo do pelo, variações, nome de quem adota e nome do criador, bem como as mesmas informações sobre os pais, avós e bisavós do cão.
Microchipagem: trata-se de um sistema de identificação via microchip, implantado por uma agulha (um pouco mais grossa do que a de vacina) entre as escápulas do cão. Ao contrário do que se possa imaginar, o microchip não funciona como um GPS. Ele serve apenas para armazenar de forma permanente diversos dados importantes do animal, como: nome, raça, sexo, idade, carteira de vacinação, histórico de consultas e doenças. Também reúne informações do tutor ou tutora do pet, como nome completo, documento, telefone e endereço.
O microchip contribui para a recuperação de animais perdidos e para a redução do abandono, já que a identificação ajuda a provar quem é a pessoa responsável pelo animal e, se for o caso, puni-la devidamente pelo abandono, tipificado como crime pela Lei Federal 9.605/98. Também facilita tratamentos médicos, uma vez que o veterinário pode acessar o histórico de vacinas e doenças no banco de dados do microchip.
As raças de cães ao longo da história
Os cães são a primeira espécie domesticada pelo ser humano de que se tem conhecimento. A espécie de cães domésticos, chamada canis lupus familiaris, teve origem na Europa por volta de 20 a 40 mil anos, por meio de um processo de diferenciação ocorrido a partir da espécie canis lupus, os populares lobos-cinzentos, presentes nos Estados Unidos, Europa, Ásia e Canadá. A explicação mais aceita pela ciência é de que os lobos se aproximaram de grupos humanos nômades em busca de restos de comida e, com o passar do tempo, acabaram desenvolvendo uma relação simbiótica com os humanos.
Já a datação e localização dos primeiros cães domesticados é uma informação complexa, com algumas dúvidas por parte da comunidade científica. Um estudo recente de 2017, publicado na revista científica Nature Communications, indicou que os cães existentes hoje podem ser descendentes de um único grupo de cães europeus. Pesquisas anteriores apontavam que os primeiros cães domesticados surgiram em lados opostos da Eurásia há mais de 12 mil anos, e que os cães asiáticos teriam migrado posteriormente com os seres humanos para o ocidente, espalhando-se para o restante do planeta.
As chamadas “raças” de cães domésticos existentes hoje surgiram a partir da seleção intencional promovida por grupos humanos, a partir da percepção de que os cães poderiam ser úteis em suas atividades. Assim, surgiram aproximadamente 400 raças diferentes, que podem ser classificadas em 5 grandes grupos, lembrando que algumas raças podem se encaixar em mais de um grupo:
Cães de trenó
Uma das primeiras funções desempenhadas por cães domesticados foi o carregamento de trenós, atividade importantíssima para a sobrevivência de diversos grupos humanos ao longo da história. Há evidências dessa utilização na Ilha de Zhukov, no nordeste da Sibéria, há cerca de 9 mil anos.
Características: pelagem grossa, corpo forte, comportamento cooperativo, patas largas, capazes de agir como pás na neve, e habilidade de alternar níveis de velocidade.
Exemplos de raça deste grupo: Huskies siberiano; Malamute do Alasca e Cão da Groenlândia.
Cães pastorais
Essa função surgiu conforme a humanidade desenvolveu a pecuária. Esse grupo de cães se divide em dois tipos: guias de rebanho, que correm atrás do rebanho sem lhes causar dano, e protetores de rebanho, que agem na proteção contra predadores. Cães desse tipo foram e ainda são muito importantes para muitos pecuaristas.
Características: confiabilidade, inteligência, agilidade e atenção.
Exemplos de raça deste grupo: Komodor, Mastim Espanhol, Rottweiler, Border Collie, Pastor Belga.
Cães de caça
Os cães desse tipo foram treinados para ajudar na luta pela caça, uma atividade de sobrevivência para ancestrais humanos. Hoje, essa atividade é esportiva e muitos cães são treinados para diferentes necessidades do esporte, como farejar trilhas, apontar as presas, espantar pássaros, capturar os abates em todos os tipos de terreno. As raças desse tipo também são usadas como cães policiais, para auxiliar na busca por drogas, cenas de crime e suspeitos de crime.
Características: agilidade, inteligência, atenção, obediência, adestramento, latido alto, olfato apurado.
Exemplos de raça deste grupo: Cocker Spaniel Americano, Labrador, Golden Retriever, Setter Inglês, Pointer Inglês, Poodle.
Cães de guarda
Os cães de guarda foram treinados e desenvolveram habilidades ao longo do tempo especificamente para a guarda e vigia de locais contra intrusos. Boa parte são cães de grande porte, mas também existem raças de médio e pequeno porte que desenvolvem a função de guarda, como o Pinscher, que é eficiente nos latidos de alerta. Na mesma linha dos cães de guarda, existem o cão-vigia (Watch dog) ou cão de alarme, e o cão de proteção pessoal (Personal protection dog).
Características: instinto de caça, comportamento protetor, aptidão para atacar.
Exemplos de raça deste grupo: Doberman, Fila Brasileiro, Akita, Boxer, Pinscher, Chow Chow, Bull Terrier, Cane Corso.
Cães de estimação
Os cães de estimação são os mais populares atualmente e estão presentes desde cedo na história da domesticação canina, como é o caso do pequinês na China Imperial, os pugs, popularizados na Era Vitoriana na Grã-Bretanha, e os poodle toy, criados durante os séculos XVI e XVIII.
Características: obediência, docilidade, porte pequeno ou médio, fidelidade, apego ao dono.
Exemplos de raça deste grupo: Shi-tzu, Pug, Poodle, Lulu da Pomerânia, Fox Terrier, Maltês, Beagle, Chihuahua.
Algumas das raças mais queridas do Brasil e suas características
Uma pesquisa chamada PetCenso 2023, realizada pelo grupo privado Petlove, apontou as raças de cães mais frequentes no seu cadastro de clientes.
1º Sem Raça Definida (SRD) – 40%
Os chamados “vira-latas” são os mais populares no Brasil.
Esse grupo pode apresentar características físicas e comportamentais muito distintas, variando de indivíduo para indivíduo, justamente porque seu padrão genético é heterogêneo.
2º shih-tzu – 12%
Em segundo lugar, estão os shih-tsu, raça chinesa originária do Tibete e muito amada no Brasil. São muito dóceis e apegados aos donos, mas podem apresentar temperamento difícil.
3º yorkshire-terrier – 5%
Em terceiro lugar, os pequenos yorkshire-terrier, com pelagem caramelo e preto, também estão muito presentes no Brasil. Eles são dóceis, inteligentes, fiéis, ativos, adoram nadar e brincar, mas também podem apresentar temperamento difícil por serem superprotetores com os donos.
4º spitz alemão (ou Lulu da Pomerânia) – 4%
Amigo, inteligente, brincalhão e bastante enérgico, o Spitz alemão está presente em 4% dos lares brasileiros. Costuma latir bastante e pode estranhar outros animais ou crianças.
5º buldogue francês – 3%
Originados na Inglaterra no século XIX, a partir do buldogue inglês, são muito dóceis e dependentes dos donos. Por conta do focinho achatado, a raça tem predisposição a problemas respiratórios e requer alguns cuidados extras em caso de temperaturas altas, como aparelho de ar condicionado, toalha úmida, manta de resfriamento, quantidade suficiente de água, para evitar o superaquecimento.
Ainda de acordo com a pesquisa, as demais raças mais comuns no Brasil são, respectivamente, lhasa apso – 3%; poodle – 3%; golden retriever – 3%; pinscher – 2% e dachshund – 2%.