Documentos e itens apreendidos são perdidos após incêndios no Deic

Documentos e itens apreendidos são perdidos após incêndios no Deic

Materiais foram destruídos, mas, segundo o departamento, as investigações não foram prejudicadas. Os episódios, porém, acenderam o alerta de entidades de classe, que questionam as condições de trabalho dos servidores

Prédio que pegou fogo em três ocasiões no final de janeiro

Por
Marcel Horowitz

Apreensões e documentos da Polícia Civil foram destruídos por três incêndios em sequência que atingiram o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), no final de janeiro, em Porto Alegre. De acordo com a alta cúpula da instituição, mesmo com a perda dos materiais, as investigações e ofensivas do órgão não foram prejudicadas. Os episódios acenderam o alerta de entidades de classe, que questionam as condições de trabalho oferecidas aos servidores e cobram mais rigor na fiscalização em prédios da segurança pública.

O primeiro incidente foi registrado no final da manhã de 24 de janeiro, no prédio F da antiga sede da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), que fica na avenida Joaquim Porto Villanova, no bairro Jardim Carvalho. A estrutura reservava dois andares para abrigar os policiais do Deic, que teve a antiga sede destruída pelas chuvas e enchentes em maio do ano passado.

Naquela sexta-feira, por volta das 11h, teve início um incêndio no terceiro piso. A fumaça tomou conta do prédio e os agentes que estavam ali foram obrigados a abandonar o trabalho às pressas. Foi preciso convocar duas equipes de bombeiros, sendo os pelotões Passo D'Areia e Açorianos, para controlar as chamas. A operação somou dois caminhões Auto Bomba Tanque (ATB) e seis militares. Ninguém ficou ferido.

No mesmo edifício, foram registrados outros dois princípios de incêndio, também no terceiro andar do local. As ocorrências aconteceram ao longo do final de semana que sucedeu o primeiro incidente. Um caso foi no sábado e outro, domingo. Novamente se instaurou um corre-corre entre os agentes que estavam de serviço. Mais uma vez, não houve feridos.

As chamas, em todos os três casos, teriam começado em um cômodo que servia de depósito para o departamento. O fogo consumiu por completo alguns dos materiais apreendidos em operações, além de documentos e inquéritos. Os itens que não foram carbonizados perderam a utilidade uma vez que ficaram totalmente encharcados durante a ação dos bombeiros para controlar as chamas.

Caixas de plástico com armas ficaram queimadas nas chamas que atingiram o 3° andar da nova sede do DEIC | Foto: Marcelo Sousa / Ugeirm / CP

Segundo a diretora do Deic, delegada Vanessa Pitrez, o ocorrido não chegou a prejudicar os trabalhos no departamento. Ela reconhece que houve apreensões perdidas no fogo, mas diz que esses eram materiais fruto de apurações já concluídas. Em relação aos inquéritos, o argumento é que todos os conteúdos já estavam digitalizados, por isso, nenhum processo investigativo teria sido afetado.

“A Polícia Civil tem por padrão digitalizar o conteúdo de todos os inquéritos, ou seja, apenas os papeis foram perdidos, mas não o teor das investigações. Além disso, os documentos que estavam no depósito são referentes a apurações que já foram concluídas. Isso também serve para os materiais guardados ali, como no caso de celulares, que tinham as informações já extraídas. Quando um inquérito está em curso, as apreensões não são enviadas para o depósito, elas ficam em posse da nossa Divisão de Inteligência ou dos policiais que compõem a equipe de uma determinada investigação”, afirma a diretora do Deic.

Conforme Vanessa Pitrez, apesar do susto, não foi preciso cancelar diligências e nem reagendar ofensivas. “Apesar do ocorrido, continuamos o nosso trabalho de forma ininterrupta, como sempre fazemos. Todas as diligências que estavam agendadas foram feitas conforme o previsto”, enfatiza Vanessa Pitrez.

O chefe de Polícia, delegado Fernando Sodré, disse que nenhum dos princípios de incêndio que ocorreram no local foram ocasionados por problemas na rede elétrica. “O primeiro incêndio começou em celulares apreendidos e que estavam guardados em um depósito. Alguns tinham as telas quebradas, porque é normal que os suspeitos pisem nos aparelhos no momento em que são presos. Isso é uma tentativa deles para evitar a coleta de provas. Ocorre que a bateria dos equipamentos é feita de lítio e, como estava muito calor dentro do prédio, acreditamos que a substância superaqueceu e os telefones entraram em combustão. Algo parecido aconteceu nos dias seguintes, quando a temperatura elevada no local inflamou materiais que sobraram do rescaldo", explicou o chefe de Polícia.

As causas

Sodré reconhece que a falta de refrigeração no prédio pode ter contribuído para os incêndios. No entanto, ele ressalta que os casos ocorreram uma semana antes do início de reformas para melhorias na estrutura. O delegado especifica que, a partir do auxílio da iniciativa privada, foi autorizada a destinação de R$ 183 mil para obras nos pisos, R$ 220 mil para a construção de divisórias e outros R$ 106 mil para o conserto do sistema de ar-condicionado.

Prédio que estava abrigando o Departamento Estadual de Investigações Criminais depois das enchentes de maio do ano passado | Foto: Pedro Piegas

O chefe de Polícia também admite que o edifício que abrigava o Deic tinha fragilidades, mas rebate a tese de que os policiais corriam risco ao trabalhar ali. Ele destaca que o departamento foi realocado para o lugar de forma abrupta e em circunstâncias adversas devido às enchentes, e que, à época, não havia outro local disponível para receber o efetivo do órgão. "As pessoas precisam entender que as atividades da Polícia Civil não podem parar em nenhum momento. Nenhum órgão parou de trabalhar, nem mesmo o Deic, que teve a antiga sede completamente alagada. Parte dos eletrônicos foram salvos, mas houve perda quase total de cadeiras, mesas e do restante da mobília. Foi preciso fazer uma mudança emergencial, sem o tempo necessário para avaliações aprofundadas, e o antigo prédio da CEEE era o único lugar possível naquele momento. Contudo, eu gostaria de deixar bem claro que, mesmo sem estar em uma sede com as condições ideais, o Deic jamais parou de operar", ressaltou Sodré.

O delegado confirma que os incêndios afetaram parte da rede elétrica do prédio F, em especial um quadro de luz. Por causa disso, parte do Deic foi transferido ao prédio A do mesmo terreno, onde também funciona a Chefia da Polícia Civil. Já os funcionários que atuam na área digital do departamento, foram autorizados a trabalhar de suas casas.

De acordo com o chefe de Polícia, o Deic está em vias de arranjar uma outra sede, e, para isso, uma análise de prédios já está em andamento. Contudo, não foram informados quais seriam os locais para onde o órgão poderá ser transferido no futuro. Há ainda um plano do Executivo Estadual, sem data prevista, que prevê a construção de uma estrutura específica para abrigar o departamento em definitivo. "A Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG) achou por bem interditar o prédio após o incêndio. Já estamos procurando outros locais para abrigar o Deic. Nossa expectativa é resolver a situação o mais rápido possível. O plano é construir uma estrutura para o departamento, mas não há previsão para isso, seria daqui há anos", antecipou Fernando Sodré.

Os riscos

As entidades de classe concordam que os incêndios não prejudicaram as investigações no Deic. Os representantes dos servidores, entretanto, alegam temer as condições de trabalho oferecidas aos profissionais da segurança, assim como as condições dos prédios onde eles estão lotados.

No caso do Deic, o Sindicato dos Escrivães, Inspetores e Investigadores da Policia Civil (Ugeirm), alega que, nas semanas antes do incêndio, já alertava sobre o calor excessivo no local. A situação seria agravada pela falta de ar-condicionado na estrutura. Os relatos do Ugeirm dão conta que, no interior do prédio, a sensação térmica ultrapassava 40 graus. Houve casos em que os servidores precisaram cumprir o expediente na área externa, na tentativa de fugir de um ambiente quente e abafado. Outros, chegaram a passar mal devido ao calor. "Desde que o departamento foi deslocado de forma provisória, em maio de 2024, os policiais trabalhavam em condições insalubres. Havia uma promessa de instalação de aparelhos de ar-condicionado, que não foi cumprida. Isso levou os servidores a trabalhar sob um calor extremo, inclusive, há casos de policiais que passaram mal. É inadmissível que, em um verão com recordes de calor, os servidores tenham sido obrigados a trabalhar sem ar-condicionado. Isso gera risco à saúde dos profissionais", afirma o vice-presidente do Ugeirm, Fábio Nunes Castro.

Na visão de Castro, o incidente comprova que a segurança e a saúde dos agentes do Deic estava em risco no local. Ele relembra o incêndio que atingiu a antiga sede da Secretaria de Segurança Pública (SSP), em 2021, quando dois bombeiros morreram e teme que algo similar possa acontecer outra vez caso não sejam adotadas medidas de segurança nos prédios da Polícia Civil. "É bom lembrar que a sede da CEEE estava desativada e foi uma solução emergencial após a enchente. Para que fosse ocupado, seria necessário que se realizasse uma avaliação criteriosa do lugar, o que parece não ter ocorrido. Dessa vez não tivemos nenhuma perda humana, mas fato é que estamos chegando cada vez mais perto de uma grande tragédia", ponderou Castro.

O vice-presidente do Ugeirm chama atenção para o fato de que, em dois anos, o Deic bloqueou mais de R$ 250 milhões oriundos de corrupção, entre valores de bens apreendidos e o congelamento de contas bancárias de suspeitos. A sugestão dele é que parte do montante seja destinado para a reforma de delegacias e departamentos. Castro também garante que o Ugeirm cobrará vistorias dos prédios da Polícia Civil no Estado.

"A ironia da situação é que o Deic conseguiu recuperar mais de R$ 250 milhões aos cofres públicos através de operações. No entanto, os seus policiais não têm nem mesmo um ar-condicionado a disposição e são submetidos aos riscos de um incêndio pelas péssimas condições do prédio onde trabalham. Vamos exigir a fiscalização de todas as delegacias gaúchas. O nosso Estado foi palco do maior incêndio da história recente do país, é preocupante que 12 anos depois ainda tenhamos vidas sendo colocadas em risco pela falta de condições de prédios públicos”, destacou o vice-presidente da Ugeirm.

A Associação dos Delegados de Polícia do Rio Grande do Sul (Asdep) também prestou solidariedade aos colegas que atuam no Deic. A entidade destacou que o episódio reforça a necessidade das autoridades em prestar mais atenção para a categoria no que diz respeito às estruturas e equipamentos de trabalho.

O ex-chefe de Polícia e presidente da Asdep, delegado Guilherme Wondracek, corrobora que, mesmo antes do fogo, as condições de serviço oferecidas aos policiais do Deic não eram adequadas. “O prédio não tinha ar-condicionado e os policiais trabalhavam em condições sufocantes, de extremo calor. Nada indica que o prédio tenha Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndios (PPCI), tanto que houve três incêndios seguidos”, pontuou o delegado Wondracek.

A reportagem contatou o Corpo de Bombeiros Militar sobre o PPCI no prédio onde estava o Deic, mas a assessoria de comunicação social da instituição disse que não tinha informações sobre isso no momento. A SPGG e a SSP também foram questionadas sobre o tema, mas, até o momento desta publicação, não confirmaram se o prédio F da antiga CEEE tem ou não o PPCI válido.

A história

O Deic é um dos principais órgãos de investigação especializada da Polícia Civil. São 13 delegacias e aproximadamente 215 servidores. O foco é promover ações de combate à corrupção, lavagem de dinheiro, roubo de veículos, captura de foragidos, crimes virtuais, sequestro, roubo a bancos, entre outros delitos que envolvam o crime organizado.

Nascido em 1997, o Deic tem raízes na antiga DI (Divisão de Investigações), que era vinculada ao Departamento de Polícia Metropolitana. A criação do órgão foi estabelecida pela Lei 10.997, que define a organização básica da Polícia Civil. Conforme a legislação, o Deic tem por finalidade coordenar, fiscalizar e executar as atividades de Polícia Judiciária e de investigações em todo o território do Rio Grande do Sul, além da apuração sobre infrações penais cometidas por organizações ou associações criminosas.

Durante mais de duas décadas, a sede do órgão na Capital esteve situada na rua Professor Cristiano Fischer, no bairro Petrópolis, na zona Leste. O prédio não comportava todas as unidades do departamento. Ali, ficavam cinco delegacias, sendo as outras distribuídas em espaços diversos. O custo mensal dos aluguéis era de aproximadamente R$ 80 mil.

O Deic mudou de sede pela primeira vez em outubro de 2018. O efetivo foi para uma estrutura de grandes dimensões, localizada na Avenida das Indústrias, no bairro São João, na zona Norte. Antes disso, o local havia servia para abrigar uma fábrica de componentes da indústria automotiva, que decretou falência após 50 anos em atividade.

O imóvel mede aproximadamente 7,5 mil metros quadrados. O Deic concentrou todas as delegacias ali durante quase cinco anos. O espaço também contava com um rígido esquema de segurança, em virtude do volume de apreensões feitas nas operações policiais. O custo do aluguel era maior do que o da sede anterior, cerca de R$ 100 mil mensais.

Mesmo com mais gastos, o lugar parecia ideal para abrigar as necessidades do departamento, não apenas por uma questão de espaço, mas também em termos logísticos. O departamento tem atribuição estadual, então a proximidade com a Freeway e a BR 116 facilitava o acesso dos policiais para deflagrar ofensivas em regiões como Serra, Litoral e Sul gaúcho.

Foi de forma abrupta que o Deic precisou deixar a sede na Avenida das Indústrias. A saída ocorreu no ano passado, em 3 de maio, quando o local ficou completamente submerso por chuvas e enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul.

A base do departamento no bairro São João ficou dois metros debaixo d'água. Na época, os agentes tiveram que retirar viaturas, equipamentos eletrônicos, materiais confiscados, armas e celulares. O dilúvio também atingiu documentos e inquéritos físicos, que só não tiveram os conteúdos perdidos porque a maior parte já estava digitalizada. O mobiliário, contudo, foi perdido por completo. Os policiais só conseguiram retornar ao local no dia 5 daquele mês, em um barco.

A solução emergencial após a catástrofe foi instalar o Deic de forma provisória na antiga sede da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), localizada na avenida Joaquim Porto Villanova, no bairro Jardim Carvalho. O prédio pertence ao governo Estadual, ou seja, não é mais preciso pagar aluguel.

Foi ali que o órgão permaneceu por quase um ano, no segundo e terceiro andares do prédio F. No início deste mês, após os incêndios, o Deic foi realizado para o prédio A, também no terreno.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895