Entre recomeços e desesperanças: um ano do início da tragédia no Vale do Taquari

Entre recomeços e desesperanças: um ano do início da tragédia no Vale do Taquari

A calamidade pública devastou cidades, causou mortes e prejuízos incalculáveis em setembro de 2023, como prenúncio da tragédia que viria a assolar o Estado nos meses seguintes

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Por
Guilherme Sperafico

“Começou em setembro e depois não parou mais”. A frase dita por uma moradora de Muçum denota a dura a realidade das cidades do Vale do Taquari nos últimos 12 meses. Entre os dias 3 e 5 de setembro de 2023, a região foi atingida por fortes chuvas, que causaram alagamentos sem precedentes na história recente do RS.

Durante a catástrofe, ao menos 54 pessoas perderam a vida, casas foram levadas pela água, cidades ficaram inacessíveis e um grande rastro de destruição modificou a paisagem. A situação, entretanto, antecedia o que estaria por vir nos meses seguintes e se espalharia por outras regiões do Estado.

Ao menos quatro outros episódios de chuvas intensas foram registradas somente no Vale do Taquari desde a tragédia que completa um ano. Deles, novembro teria sido a maior enchente, não tivesse acontecido a de setembro. Depois, em maio, já em 2024, a região padeceu junto com o restante do RS na maior catástrofe natural que o Brasil já registrou.

Mais do que o saldo devastador deixado pelos catastróficos episódios, os constantes recomeços criaram a nova realidade das comunidades. Desde setembro, ainda há escolas que não puderam voltar a funcionar e famílias que não puderam sequer voltar para conferir os estragos. A travessia entre os municípios se tornou mais difícil e os acessos a localidades ficaram precários.

No meio empresarial, principalmente nos micro e pequenos negócios, o sentimento é de incerteza para quem já precisou recomeçar tantas vezes e vive com o medo de que as enchentes voltem a acontecer. Em várias cidades, bairros inteiros estão impossibilitados de serem reconstruídos pelo risco de novos alagamentos. Além disso, os próprios moradores já pensam em recomeçar a vida em outro lugar.

Lajeado

Lajeado teve 16% de seu território atingido pelas enchentes | Foto: Pedro Piegas

Se entre os moradores de Lajeado a insegurança de voltar para casa predomina, com os comerciantes não é diferente. Em um dos poucos estabelecimentos que retomaram atividades às margens do Taquari, em uma área que teve muitas casas e prédios derrubados pela água, o empresário Evandro Marinho, de 40 anos, tenta dar continuidade a uma agropecuária na avenida Beira-Rio.

O estabelecimento foi atingido por três enchentes desde setembro. “Estou aqui contra o consentimento do poder público, mas não tenho para onde ir. Este prédio é meu. Eu cheguei a olhar outros locais para alugar, mas o valor aumentou muito e inviabilizou a mudança. Sem contar que eu teria que vender ou locar, mas quem vai querer vir para cá”, questiona.

O empresário Evandro Marinho, de 40 anos, tenta dar continuidade a sua agropecuária na avenida Beira-Rio, após ser atingido pela tragédia. | Foto: Pedro Piegas

“Eu não queria estar aqui, só que não tenho como sair. Quando começa a chover, o coração aperta”, relata Marinho. O empresário relata a transformação na vizinhança. “Era um lugar muito bonito, que está horrível. Agora que começa a aparecer um pouco do verde no topo das árvores, mas ainda está muito feia a paisagem.”

‘A enchente faz parte da nossa história’

Maior cidade do Vale do Taquari com cerca de 85 mil habitantes, Lajeado teve 16% do território atingido pelas enchentes desde o ano passado. As partes mais próximas ao rio, incluindo áreas do Centro, foram fortemente afetadas. Às margens do manancial, quadras inteiras tiveram casas derrubadas pela força da água.

Lajedo ainda se recupera das enchentes que começaram em setembro de 2023 | Foto: Pedro Piegas

Já no final de agosto, o município não tinha mais moradores em abrigos. Conforme a Prefeitura, há um grande investimento em aluguel social, para que as famílias possam residir em um local seguro. Além disso, acessos a cidades vizinhas foram recuperados, ainda que provisoriamente, como é o caso da Ponte de Ferro, no limite com Roca Sales, onde podem passar veículos leves. Há ainda a ponte recentemente instalada pelo Exército, também no limite entre as duas cidades, para caminhões e veículos de grande porte.

Apesar de todos os transtornos, Caumo ressalta a resiliência da cidade, que ao longo dos anos foi se adaptando e que, mais uma vez, está superando a tragédia. “Lajeado foi crescendo, respeitando a série de enchentes. A enchente sempre vai fazer parte da nossa história. O fato de a gente ter sido atingido em 16% do território indica 84% não foi. Isso já demonstra que, naturalmente, o crescimento vem acontecendo em outras regiões”, pontua.

O prefeito afirma, ainda, que o território alagado não será desconsiderado. “É importante crescer com harmonia e nós não vamos abandonar essa parte da cidade, mas vamos, sim, ter processos definidos para não tenhamos que passar por tudo de novo”, conclui Caumo.

Maior escola do Vale do Taquari permanece fechada

No Centro de Lajeado, o histórico prédio que abriga o Colégio Estadual Castelo Branco – o popular Castelinho – está fechado e sem previsão de retorno. A escola, a maior do Vale do Taquari e com mais de 900 alunos, foi duramente atingida nas enchentes. Desde a tragédia de setembro, não pôde retornar às atividades.

A lousa de uma sala situada no terceiro piso revela o último dia letivo completo: 3 de setembro. No dia seguinte, muitos alunos chegaram a ir até a escola, mas o prédio precisou ser evacuado por causa das águas que começavam a avançar pelas ruas. Nos dias seguintes, toda a parte térrea estava inundada.

Lousa de uma sala de aula revela o último dia letivo completo: 3 de setembro | Foto: Pedro Piegas

Em novembro, o local voltou a sofrer com as enchentes. Nos meses seguintes, uma grande obra de recuperação foi realizada pelo governo do Estado, com reformas das salas alagadas e compra de materiais. A previsão era de que, após as férias de inverno, os alunos que estão alocados na Universidade do Vale do Taquari (Univates) pudessem voltar para o Colégio. Entretanto, tudo que havia sido feito e adquirido acabou danificado pela enchente de maio, que não afetou apenas o térreo, mas, também, todo o segundo andar.

A situação levantou o temor e o boato de que o colégio poderia, inclusive, não ser recuperado. A situação, entretanto, é rechaçada pela prefeitura. “Nós não vamos concordar com isso. Esta é uma escola estadual, mas é patrimônio da cidade de Lajeado. Se o governo do Estado não quiser fazer o investimento para recuperar, o município vai fazer e pedir a destinação desse prédio para termos uma escola municipal”, afirma o prefeito Marcelo Caumo.

Maior colégio de Lajeado, que recebe mais de 900 alunos, segue fechado | Foto: Pedro Piegas

Questionada sobre o assunto, a Secretaria de Educação do Estado informou apenas que os alunos permanecerão na Univates até o final do ano e que, em relação à estrutura da escola, “ainda se está discutindo com as comunidades locais os próximos passos”. Enquanto aguarda uma definição, o colégio recebeu ajuda do Exército, em agosto, para a limpeza do prédio tomado pela lama.

Cruzeiro do Sul

Moradia em Cruzeiro do Sul | Foto: Pedro Piegas

No caminho do Taquari, a cidade de Cruzeiro do Sul teve mais de 6 mil moradores diretamente atingidos pela enchente. Alguns bairros tiveram praticamente todas as casas levadas pela água. Na área rural, propriedades inteiras também acabaram devastadas.

Das moradias situadas na RS 130, várias estão arruinadas. Além disso, a via ficou tomada pela lama e passou vários meses sem condições de tráfego. Desta forma, alguns proprietários ainda nem conseguem retornar para verificar o que sobrou.

Na localidade São Miguel, somente no final de julho, após obras realizadas pela prefeitura local – mesmo a rodovia tendo competência estadual –, alguns moradores conseguiram voltar. É o caso do agricultor Jorge Luis Hining, de 52 anos.

Ele relata que a população ainda não havia se recuperado da enchente de setembro, quando a de maio chegou para modificar, de vez, a localidade. “A maioria da população não vem mais para cá, pois estão apavorados. Em setembro do ano passado a água chegou à altura da canela. Era a maior desde 1941 e o pessoal achava que não viria maior, mas veio. Já tinha ficado bem feio em setembro, as estradas já tinham ficado ruins, mas agora quebrou com o pessoal. Todo mundo perdeu tudo de novo”, lamenta Hining.

Jorge Luis Hining, de 52 anos | Foto: Pedro Piegas

A violência da destruição deixa, até mesmo quem retornou, com medo de continuar. “Por onde passou a correnteza, não sobrou casa. Mas, vamos fazer o quê? É a natureza. Quem se salvou precisa tocar o barco. Moro há 26 anos, mas não sei até quando vou continuar. Não tem quem aguente perder tudo de novo”, conclui Hining.

Já os moradores Paulo e Adriana Gassen, de 61 e 58 anos, ainda estão na fase de levantamento dos estragos. Segundo o casal, devido às dificuldades de acesso, puderam ir poucas vezes até a residência que possuem na cidade. “Nem conseguimos limpar nossa casa. Já faz três meses da última tragédia e ainda estamos desse jeito, sem conseguir chegar de carro”, relata o homem.

Para eles, a enchente de maio chegou para causar a perda de tudo que haviam reconquistado. “Cerca de duas semanas antes (da enchente de maio), a gente pôde descansar, tranquilos de que havíamos concluído o trabalho de recuperação da casa. Quando estava tudo pronto e arrumado, perdemos tudo de novo”, lamenta a mulher.

Paulo e Adriana Gassen ainda estão na fase de levantamento dos estragos, pois puderam ir poucas vezes até a residência que possuem em Cruzeiro do Sul | Foto: Pedro Piegas

Conforme a prefeitura, a recuperação da RS 130 é de responsabilidade do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer). Questionada sobre a situação, a autarquia manifestou, em nota, que a empresa de conservação de rodovias não pavimentadas iniciou os serviços nesse trecho. “A rodovia, não pavimentada, foi muito prejudicada, pois fica muito próximo à margem do rio. A expectativa é de que sigam os serviços, com condições climáticas favoráveis, para restabelecer a condição de tráfego”, diz a nota.

Muçum

A inundação arrasou Muçum, causando 18 mortes confirmadas. Outras duas pessoas não tiveram os corpos localizados | Foto: Pedro Piegas

‘Começou em setembro e não parou mais’

A bela cidade de Muçum teve sua rotina alterada por completo no último ano, com a série de problemas causados por pelas tragédias. Em setembro de 2023, enquanto ainda se recuperava de uma vigorosa chuva de granizo registrada no final de agosto, a maior enchente de sua história aconteceu.

Sem precedentes, a inundação arrasou o município e causou 18 mortes confirmadas, outras duas pessoas não tiveram os corpos localizados. A rotina nunca mais voltou ao normal e outras duas grandes enchentes foram registradas. A de novembro teria sido a maior da história, não tivesse, meses antes, ocorrido a de setembro. Já a de maio de 2024 chegou para aumentar o rastro de destruição, arrasar casas e prejudicar tudo o que já estava sendo reconstruído.

No Centro, em frente à Ponte Rodoferroviária Brochado da Rocha, a aposentada Elida Zonatto de Almeida, de 68 anos, vive com a família o receio de não saber o que será do futuro. Ela espera pela conclusão das habitações que serão construídas pelo poder público, em local seguro, para a população. “Está muito difícil. Muita gente ainda está fora, porque as casas não apresentam condições de retorno. E tem os que nem pretendem voltar. A gente perde tudo, volta, limpa, recomeça e logo acontece tudo de novo”, conta.

Carla e a mãe, Elida, tentam ter esperança no futuro após as perdas causadas pelas enchentes | Foto: Pedro Piegas

Mesmo tendo dois andares, a casa de Elida foi coberta até o telhado pela enchente. Por conta disso, a filha e o genro, que moravam na parte de baixo, passaram a dividir com ela a moradia no segundo piso. “Começou em setembro e depois não parou mais. É uma enchente atrás da outra. Faz um ano que vivemos este pesadelo”, lamenta a filha, Carla Lourdes de Almeida Piassetta, de 51 anos.

‘Vida a gente não tem mais’

Conforme o prefeito de Muçum, Mateus Trojan, em setembro, mais de 80% da área urbana da cidade foi atingida. Os meses seguintes foram de recuperação básica, focada nos atendimentos essenciais, para superar os problemas. “Tivemos a proibição de reconstrução nas áreas totalmente destruídas ou declaradas como áreas de risco extremo, e aí começamos um trabalho de captação de recursos.”

Em meio a estes processos, até as enchentes de novembro, os trabalhos que ainda estavam em fase de recuperação foram novamente prejudicados, mas a cidade voltou a lutar para se recuperar. Já em estágio avançado, o prefeito relata que a tragédia de maio aumentou os problemas. “Nós já tínhamos uma reorganização na cidade. Algumas obras já sendo concluídas, os prédios públicos praticamente todos restabelecidos e estávamos em processo final de recuperação das estradas. Aí aconteceu mais esse evento extremo que, em termos de inundação, foi até um pouco maior, mas com agravante dos deslizamentos”, ressalta.

Ainda segundo Trojan, Muçum tem um orçamento previsto para 2024 de 38 milhões, enquanto o prejuízo estimado em setembro é de 231 milhões e, em maio, de 271 milhões, o que faz a cidade não ter capacidade de se reerguer sozinha.

Além dos projetos habitacionais em execução, outra obra aguardada e que chama a atenção é a de recuperação da ponte rodoferroviária, que teve a estrutura de travessia dos veículos levada pela correnteza. A reconstrução tem custo de quase R$ 10 milhões, oriundos da Defesa Civil Nacional. A conclusão é aguardada para fim de 2024.

Segundo o prefeito, Muçum tem um orçamento previsto para 2024 de 38 milhões, enquanto o prejuízo estimado em setembro é de 231 milhões e, em maio, de 271 milhões | Foto: Pedro Piegas

Para o prefeito, a principal lição deixada pelas catástrofes é a necessidade do trabalho de prevenção. “Também precisamos buscar soluções para que a gente possa, pelo menos, amenizar os danos e as consequências das inundações da nossa região. Além disso, há a necessidade de desburocratização e o Brasil precisa entender que, em situações extremas como a que o Estado está vivendo, a gente não deveria ter tantos empecilhos. A coisa deveria andar muito mais rápido para atingir as pessoas que esperam por essas soluções.”

Encantado

Em Encantado, bairros inteiros ficaram praticamente desertos, com casas em ruínas ou abandonadas | Foto: Pedro Piegas

A espera por uma nova moradia já completa um ano para dezenas de famílias de Encantado. A cidade, que teve grande parte do território atingido, viu bairros inteiros ficarem praticamente desertos, com casas em ruínas e outras abandonadas pelo receio de novas enchentes.

Somente no início de agosto, três meses após as enchentes, a camareira Solange Flobes, de 50 anos, pôde sair de um abrigo municipal, junto da família da filha Elisabete Flobes da Silva, 22 anos, também afetada pela catástrofe.

As duas alugaram uma casa em local que, embora também tenha sido atingido, fica mais distante do bairro Navegantes, onde moravam, na área mais crítica do município. “Passamos mais de dois meses no abrigo. Minha avó também perdeu a casa e veio para cá. Tem gente que está desde setembro em abrigo”, conta Elisabete.

Somente no início de agosto, três meses após as enchentes, a camareira Solange Flobes pôde sair de um abrigo municipal | Foto: Pedro Piegas

A jovem conta que a situação ainda não havia conseguido se recuperar da catástrofe de setembro. “Me inscrevi na Prefeitura e estou aguardando para receber uma casa. Estamos assim desse jeito, em uma situação crítica. Eu havia comprado coisas novas em abril e, em maio, perdi tudo de novo”, lamenta.

No maior abrigo de Encantado, a desempregada Renata Schneider, de 30 anos, está em um pavilhão que virou a moradia de mais de 30 famílias. A mulher conta que residia no bairro Lago Azul, mas perdeu a casa. Agora, espera os programas habitacionais para receber um novo lar. “É uma droga isso. A gente não sabe mais no acreditar. Algumas informações dizem que é até final do ano, outros que vai demorar dois anos, não sabemos mais no que acreditar”, lamenta.

Conforme o prefeito Jonas Calvi, Encantado ainda tem seis abrigos com mais de 110 famílias. No início do mês de agosto, módulos de casas provisórias foram entregues pelo governo do Estado para abrigar cerca de 30 famílias.

Calvi explica que o município já possui áreas de terra para o plano de habitação. “No bairro Navegantes, a gente vai construir prédios em área que não é alagável. A previsão é de que o contrato seja assinado neste mês e de que leve cerca de um ano pra ficar pronto. Será um bloco com 48 apartamentos”.

O prefeito relata, ainda, que a recuperação da cidade praticamente não andou durante os meses seguintes. Como agravante, o que havia sido feito, antes de maio, foi comprometido. Entretanto, ele garante que, após a enchente deste ano, as coisas começaram a andar. “A gente percebeu que muitas coisas avançaram em decorrência de maio, incluindo o plano de habitação que nós temos, que foi iniciado após setembro. Tínhamos os projetos, mas só destravou agora”.

Para Calvi, as enchentes mudaram a história e a cultuara dos municípios gaúchos. “O aprendizado que fica é de que nós temos que ter sistemas e mecanismos de alerta. Em 2024 temos que ter essas possibilidades. E fica, também, a condição de que os municípios precisam passar por uma reestruturação do plano diretor. A gente tem que aprender a conviver com essa nova realidade”, conclui.

Roca Sales

Roca Sales tenta se reconstruir em meio a uma onda de migração no município cuja área urbana foi quase toda afetada | Foto: Pedro Piegas

Na casa alugada pelo filho, o reciclador Carlos Alberto Correa, de 61 anos, trabalha enquanto cuida do neto, em uma das poucas moradias ocupadas nas proximidades do Rio Taquari. Entre setembro e maio, as enchentes que atingiram a cidade cobriram até o telhado da residência.

Embora não tenha sofrido danos estruturais, a moradia de Correa é uma das exceções, na região que teve diversas residências levadas pela força da correnteza. Por isso, moradores passaram a buscar outras regiões da cidade para morar, devido ao receio de novos episódios extremos como os que foram vividos neste último ano.

Carlos Alberto diz que, devido ao receio de novos episódios extremos, muitos moradores estão em busca de outro lugar para morar | Foto: Pedro Piegas

“Em setembro a gente perdeu tudo, não imaginávamos que poderia acontecer o que aconteceu. Agora, em maio, conseguimos tirar as coisas de casa a tempo e estamos nos recuperando aos poucos. Só que a maioria dos vizinhos não quer mais voltar para cá, com medo da água’, relata Carlos Alberto Correa, de 61 anos.

Conforme o reciclador, mesmo para os que já retornaram há o desejo de buscar um local seguro para seguir a vida. “A maioria dos que voltaram está pensando em sair também. Meu filho também pensa em sair, mas vai ir para onde? Não tem outro lugar. Eu estou aqui desde pequeno, há mais de 60 anos, e nunca tinha visto uma coisa dessas”, afirma.

Estrela

No município de Estrela, o nível do Rio Taquari subiu mais de sete metros | Foto: Pedro Piegas

Assim como as demais cidades da região, a situação enfrentada por Estrela é dramática. A altura da inundação pelo Rio Taquari é quase que inacreditável, mesmo para a população que vivenciou as enchentes.

Na área industrial, pavilhões altos em áreas com elevação no solo, tiveram mais de sete metros de água. Nos bairros residenciais próximos ao rio, muitas casas ficaram em ruínas ou tiveram a estrutura comprometida, com telhados arrancados, aberturas levadas pela água e móveis perdidos.

Mesmo para os mais experientes, tudo o que foi visualizado durante o último ano é inédito. Quase que inimagináveis, as histórias contadas pelos que viveram a histórica enchente de 1941, se transformaram em realidade para o aposentado Edo Antônio Schwan, de 71 anos. Embora more em um local seguro, diversos familiares e conhecidos perderam tudo.

Edo Schwan ajuda o cunhado a retirar um armário que poderá ser reaproveitado em novo endereço, distante do rio | Foto: Pedro Piegas

Schwan esteve na casa do cunhado para salvar um armário de madeira que poderá ser reaproveitado em novo endereço, distante do rio. Além da incredulidade do momento vivido por grande parte dos moradores, ele vê com tristeza a nova realidade. “Eu moro há 46 anos em Estrela e só ouvia os mais velhos falarem sobre 1941. A gente fica triste que tenha acontecido no ano passado e voltado a se repetir neste ano. Todos queremos a cidade bonita e todo mundo capricha para conseguir isto, mas está feia a situação. Vai levar uns 10 anos, no mínimo, para Estrela se recuperar”, lamenta.

Na casa ao lado, o empresário Junior Lemes, de 33 anos, mora no endereço desde que nasceu e nunca tinha visto nada parecido. “O pior é que foram três vezes seguidas. Em maio a gente se precaveu um pouco mais, mas em setembro perdemos tudo”, relata.

Apesar da necessidade de reconstrução, Lemes conta que pretende continuar. “Mas não temos previsão de poder voltar para casa. A maioria dos vizinhos também vai acabar voltando, não tem o que fazer, mas está tudo bem devagar. Alguns alegam que agora em setembro vai ter outra enchente e o pessoal tem receio”, explica.

Conforme o prefeito Elmar Schneider, apesar de ter mais de 40% do território atingido, a cidade está começando a se recuperar. Com manutenção de empregos, a expectativa é de que, neste mês, não se tenha mais moradores desabrigados. “Os prejuízos são incalculáveis. Infelizmente, nos últimos anos tivemos provas duras e fomos desafiados. Passamos pela maior crise da área da saúde, passamos por vendaval, por estiagem e pela tragédia de setembro. Mas é importante dizer que, com o que ocorreu no ano passado, capacitamos nossa Defesa Civil e, em maio, não tivemos nenhum óbito”, pontua.

Para Schneider, entre os principais ensinamentos está, justamente, a necessidade de equipar e profissionalizar as Defesas Civis. Além disso, ele afirma que, enquanto prefeito, quer entender, da Secretaria de Meio Ambiente do Estado, quais as soluções necessárias para o Rio Taquari. “Eu espero uma nota técnica que diga, claramente, se a abertura das comportas ou a dragagem são soluções, ou não. Sem isso, todos ficam sem saber o que fazer”.

Por fim, o prefeito diz ter a certeza de que a região vai dar a volta por cima. “Precisamos ter uma segunda ponte entre Lajeado e Estrela. Se olharmos a dificuldade de circular até Arroio do Meio, é muito grande. Qualquer intervenção na ponte resulta em grandes prejuízos para nossa indústria. Ainda corremos um risco forte economicamente, mas o vale é diferenciado e vamos continuar trabalhando muito para se reconstruir”, conclui.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895