Etanol para suprir 23% da demanda gaúcha

Etanol para suprir 23% da demanda gaúcha

Usina de biocombustível anunciada em junho pela BSBios tem obras de construção em Passo Fundo projetadas para iniciar no primeiro trimestre de 2023 e produção inicial de 111 milhões de litros por ano a partir de 2024

A planta completa da unidade de processamento industrial deve funcionar com plena capacidade a partir de 2027, utilizando grãos produzidos nas plantações de inverno do Rio Grande do Sul

Por
Patrícia Feiten

A busca de energias renováveis e a preocupação com os efeitos devastadores do aquecimento global transformaram os biocombustíveis em protagonistas da chamada economia de baixo carbono, baseada em tecnologias limpas. Menos poluente que os derivados de petróleo, o etanol obtido a partir de matéria vegetal é um dos pilares dessa transição rumo a processos sustentáveis que vem redesenhando a paisagem em regiões produtoras de grãos no país, como Mato Grosso e Goiás. Se, nesses estados, as usinas de etanol produzido a partir de milho mudaram a rotina das propriedades rurais, no Rio Grande do Sul, são os cereais de inverno que prometem inserir o agrocombustível nas estratégias de negócios de pequenos, médios e grandes agricultores. 

Entre os empreendimentos que devem inaugurar essa nova era dos biocombustíveis no Estado, a BSBios, controlada pelo ECB Group, planeja iniciar no primeiro trimestre de 2023 as obras de uma usina de etanol de trigo em Passo Fundo. Com um investimento total de R$ 556 milhões, o projeto será dividido em duas etapas. A largada das operações está prevista para 2024, com o processamento de 750 toneladas de cereais por dia e produção anual de 111 milhões de litros do biocombustível. Na segunda fase, em 2027, a planta receberá 1,5 mil toneladas diárias de matéria-prima e a capacidade instalada chegará a 220 milhões de litros de etanol por ano. A atividade industrial também irá gerar 155 mil toneladas por ano de farelo destinado à produção de rações animais.

Segundo o presidente da BSBios, Erasmo Carlos Battistella, a planta poderá produzir etanol anidro (que é adicionado à gasolina) ou hidratado (o produto comum vendido nos postos). O empresário explica que, após assinar um protocolo de intenções com o governo gaúcho e a Prefeitura de Passo Fundo, em junho, a empresa está concluindo os estudos necessários, os projetos de engenharia e a estrutura de financiamento para iniciar as atividades na safra de trigo de 2024. Com o negócio, o ECB Group projeta uma receita de R$ 1,3 bilhão por ano e espera gerar 143 empregos diretos. “A produção vai fomentar toda uma cadeia de produtores, armazenadores e distribuidores. Será uma oportunidade viável de renda para o agricultor com a cultura de cereais de inverno”, afirma Battistella.

 Terreno onde a usina será construída, em Passo Fundo. Foto: BSBIOS / Divulgação / CP

Parceira no projeto, a Biotrigo Genética fornecerá duas cultivares de trigo específicas para a produção de etanol – a usina poderá operar também com triticale, arroz, sorgo e milho, entre outros. O supervisor de novos negócios da empresa, Rodrigo Gutierrez, explica que as sementes desenvolvidas para a BSBios se diferenciam por níveis elevados de amido – um requisito para a transformação em biocombustível – e alta produtividade. “Com clima e manejo adequado, elas podem chegar a 100 sacas por hectare”, afirma. 

Atualmente em processo de multiplicação, essas sementes estarão disponíveis aos agricultores em 2024, segundo Gutierrez. A meta é, até 2027, atingir a disponibilidade de insumos necessária para a cobertura de 140 mil hectares cultivados com trigo. Ainda neste ano, o potencial das variedades poderá ser conferido em vitrines técnicas e dias de campo organizados pela Biotrigo. “A ideia é trabalhar com produtores que hoje não semeiam trigo, este produtor que não trabalha no inverno, até porque não tem liquidez no trigo”, destaca Gutierrez.

A Embrapa Trigo, de Passo Fundo, apoia o projeto com assistência técnica no manejo dos cultivos. O diretor-geral da unidade, Jorge Lemainski, vê boas perspectivas na conversão de culturas alimentares em energia. “(O Estado) tem uma estrutura sementeira muito boa e produtores habilitados para essa produção”, avalia. Para demonstrar soluções tecnológicas disponíveis e dar segurança aos agricultores que decidirem se aventurar nesse novo segmento de mercado, a empresa de pesquisa também prepara visitas técnicas e seminários. “Já existem materiais desenvolvidos, tanto com triticale quanto com trigo, com prognóstico de, a cada tonelada de grãos, retermos na ordem de 400 litros de etanol e, processado esse etanol, termos o resíduo que poderá ser utilizado para a composição de rações”, observa Lemainski.

Alternativa de renda

A usina da BSBios se insere na Política Estadual de Estímulo à Produção de Etanol, que criou o programa Pró-Etanol para reduzir a dependência de outras regiões do país no abastecimento do biocombustível. Hoje, o Rio Grande do Sul importa 99% de sua demanda, e a nova planta, a partir de 2027, supriria sozinha 23% dessa necessidade, segundo Battistella. O presidente da Comissão do Trigo da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), Hamilton Jardim, comemora os investimentos no setor, que reverberam o mote do Programa Duas Safras da entidade. A iniciativa fomenta o aproveitamento de áreas agrícolas que são cultivadas no verão, mas ficam ociosas no ciclo de inverno. “Para teres mais culturas, tens de ver as oportunidades de o mercado absorver (a produção), e o etanol vem numa sequência de avanços que construímos com a cadeia. O produtor comemora porque está vendo alternativas de remuneração”, diz Jardim. 

Para o representante da Farsul, por se tratarem de usinas do tipo “flex”, capazes de operar com diferentes vegetais ricos em amido, os projetos atualmente em estudo no Estado abrem perspectivas de diversificação de negócios a agricultores de todos os portes. “Para cada 1 milhão de hectares cultivados por ano, aproximadamente, temos mais três em pousio em que podem entrar, incentivados pelo Duas Safras, milho na várzea, arroz gigante e tantas outras culturas que vão surgir em função disso”, exemplifica o dirigente.

A Usina

  • Investimento total de R$ 556 milhões
  • Capacidade de processamento de grãos de 750 toneladas de cereais ao dia a partir de 2024, resultando em 111 milhões de litros por ano de etanol
  • Capacidade de processamento de grãos de 1,5 mil toneladas de cereais por dia a partir de 2027, representando 220 milhões de litros por dia de biocombustível
  • A atividade vai gerar 155 mil toneladas por ano de farelo de grãos
  • A receita anual com a produção de etanol é estimada em R$ 1,3 bilhão

Projeto de Santiago aguarda licenciamento

Empreendimento de casal de agricultores da região central gaúcha, CB Bioenergia deve começar a produzir etanol a partir de 2023, podendo alcançar a produção de 40 milhões de litros por ano quando atingir capacidade plena

Com propriedades rurais em Santiago, na região central, os agricultores Cássio Souza Bonotto e Juliana Bochi Bonotto estão em contagem regressiva para a produção de etanol a partir da safra de trigo de 2023. No ano passado, o casal adquiriu uma área de 15 hectares no entroncamento entre a RSC-287 e a ERS-168 para a instalação da CB Bioenergia, empreendimento no qual trabalham em parceria com a Ampla Performance Industrial, de Getúlio Vargas. O projeto já teve um aporte de R$ 75 milhões em montagem de equipamentos e estruturas de armazenagem e deverá receber mais R$ 300 milhões em investimentos, de acordo com os empreendedores.

Cássio Bonotto diz que o processo de licenciamento ambiental foi iniciado em setembro do ano passado. Ele espera que até setembro sejam obtidas a licença ambiental prévia e a licença de instalação para o início das obras, que ocorrerão em duas etapas. Na primeira fase, a usina produzirá 12 milhões de litros de etanol hidratado por ano e em torno de 20 mil toneladas de WDG (grãos úmidos de destilaria), coprodutos da geração do biocombustível usados na fabricação de rações animais que poderão ser destinados a um confinamento a 20 km da usina. “Tudo o que a usina produzir num dia será consumido no mesmo dia, não precisa secar para armazenar. Fica mais econômico o processo”, explica Bonotto.

Na segunda etapa, a CB Bioenergia passará a produzir anualmente em torno de 40 milhões de litros de etanol - hidratado, anidro ou ambos, segundo o empreendedor, que avalia parcerias com a rede de distribuidoras de combustíveis. “Vai depender muito do mercado. Como nosso volume inicial não é tão alto, vamos produzir o hidratado porque tem consumo na aviação agrícola e nos postos da região”, afirma Bonotto. Nessa fase, a planta também aumentará a produção de WDG para 70 mil toneladas por ano e deve buscar a autossuficiência energética. Para alimentar a caldeira produtora de vapor prevista no projeto, umas das alternativas avaliadas é o uso de casca de arroz, aproveitando a presença de engenhos na região. “É uma matéria-prima mais barata que a lenha hoje”, afirma Bonotto.

O projeto da CB Bioenergia já recebeu R$ 75 milhões em recursos para montagem de equipamentos e estruturas de armazenagem e deverá receber mais R$ 300 milhões em investimentos, revelam os empreendedores. Foto: Ampla Performance Industrial / Divulgação / CP

Segundo o empreendedor, a motivação para o investimento veio das dificuldades de comercialização do trigo, cuja colheita na região coincide com períodos chuvosos, o que afeta a qualidade de parte da safra destinada à indústria de panificação. O trigo que deve virar etanol será fornecido por agricultores, cooperativas e cerealistas do centro-oeste do Estado. “Já estamos com 80% dos equipamentos fabricados. Temos a expectativa de, dentro de mais ou menos 12 meses, montar toda a usina após ela começar a operar”, diz Bonotto.

Apoiador do projeto, o prefeito de Santiago, Tiago Gorski Lacerda, acredita que a usina será um grande incentivo para as culturas de inverno. Ele resume em duas palavras as perspectivas abertas pela usina no município: “muito desenvolvimento”. Além de conter o êxodo rural de jovens, gerar empregos e retorno em tributos, o empreendimento fortalecerá a bovinocultura, com a produção de matéria-prima para rações animais, avalia o prefeito. “Voltaremos a ter o gado não no regime extensivo, e sim com confinamento, porque uma das grandes dificuldades que temos é a alimentação para a produção de leite, carne, frangos e suínos”, destaca.

Programa pró-etanol prevê 12 usinas para o RS

A CB Bioenergia, em Santiago, e a BSBios, em Passo Fundo, estão entre as 12 usinas baseadas em cereais de inverno e outras fontes alimentícias previstas no âmbito do programa Pró-Etanol. Além dos dois empreendimentos, há projetos em fase avançada nos municípios de Viadutos (na região do Alto Uruguai), Guaíba (Região Sudeste) e Júlio de Castilhos (no centro do Estado), informa o coordenador do programa, o extensionista da Emater-RS/Ascar Valdir Zonin. Se concretizadas, as 12 biorrefinarias seriam uma resposta à dependência quase total do etanol produzido em outros estados.

Hoje, o Rio Grande do Sul consome 1,5 bilhão de litros do biocombustível por ano e traz de outras regiões 2 milhões de toneladas de milho para ração animal, de acordo com os parceiros do Pró-Etanol, que tem apoio de entidades do setor agropecuário, universidades, centros de pesquisa e da Frente Parlamentar em Defesa da Autossuficiência do Etanol da Assembleia Legislativa. “Iremos necessitar de 10 a 12 usinas de porte médio para atender à demanda interna de etanol. Sabemos que é um trabalho de médio a longo prazo e que nem todos (os projetos) irão se viabilizar”, afirma Zonin.

Para cada usina prospectada no programa, explica o coordenador, são feitos estudos sobre oferta de matérias-primas, tecnologias viáveis e mercados potenciais. Na jornada do sonho à realidade, porém, é preciso vencer várias etapas. Segundo Zonin, o grupo pede ao governo estadual políticas de fomento florestal que deem suporte às usinas e de incentivo ao plantio de cereais de inverno. Para atender à atual demanda de etanol, seriam necessários 100 mil hectares de biomassa florestal, destaca. “As 12 usinas vão precisar de em torno de 12 mil toneladas por dia de grãos e, em média, 50 caminhões ‘truck’ por dia de cavaco cada”, diz Zonin.

Triticale é aposta para produção de etanol

Sementes do cereal estão sendo multiplicadas pela Cotricampo, na região noroeste do Estado, para abastecer a planta que a cooperativa pretende instalar com capacidade de processamento de 300 toneladas/dia de grãos

Em área experimental, cooperativa testa as potencialidades do grão, mais resistente e com custo de produção menor que o de implantação de lavouras de trigo. Foto: Rodolfo Richer / Cotricampo / Divulgação / CP

O agrocombustível também ganha atenção da Cotricampo, de Campo Novo, no noroeste do Rio Grande do Sul. Presente em 18 municípios, com 23 unidades de recebimento e beneficiamento de grãos e sementes, lojas de produtos agropecuários, supermercados, indústrias de farinha de trigo e ração, entre outros negócios, a cooperativa planeja a instalação de uma usina de etanol, valendo-se da estrutura de armazenagem de que já dispõe. 

O presidente da Cotricampo, Gelson Bridi, conta que o projeto começou a sair do papel há dois anos, por meio de uma parceria com a Embrapa Trigo, de Passo Fundo, para a seleção de cultivos sob medida para a produção de etanol e farelo. A escolha recaiu sobre o triticale. “É uma cultura mais resistente e produtiva, com um custo (de produção) menor que o trigo”, explica Bridi, ressaltando que o plano vem sendo traçado com cautela em conjunto com consultorias, de forma a assegurar rentabilidade aos associados. Em todo o Rio Grande do Su, a cooperativa reúne cerca de 9 mil agricultores.

Enquanto desenvolve estudos econômicos e a pesquisa de equipamentos para a montagem da planta de etanol, a Cotricampo vem investindo na multiplicação de sementes de triticale. A meta, segundo Bridi, é garantir um estoque de insumos suficiente para o plantio de até 50 mil hectares na área de abrangência da cooperativa – hoje, a Cotricampo cultiva todo ano 200 mil hectares de lavouras de verão, mas apenas de 70 mil a 80 mil hectares desse total são ocupados com cereais de inverno na temporada seguinte. 

A multiplicação de sementes possibilitará à Cotricampo abastecer uma planta de etanol com capacidade para processar 300 toneladas diárias de triticale. “O primeiro passo foi garantir a matéria-prima. Hoje, temos já uma boa quantidade de sementes nas propriedades dos nossos associados. Os que estão cultivando o triticale estão aprendendo a manejar cada vez melhor”, diz Bridi. 

O engenheiro civil Jair Rodrigo Kuntzler, que participa do projeto, destaca a oportunidade de incremento de renda que a iniciativa significará para os associados que atuam na triticultura. “A Cotricampo já atua com fábrica de farinha e rações. O produtor é bem participativo, porque sabe que tem a compra garantida pela cooperativa. O objetivo é não gerar uma competição, no sentido de que o associado vá deixar a sua área de trigo para plantar o triticale”, ressalta Kuntzler.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895