Eventos para que ninguém esqueça a Kiss

Eventos para que ninguém esqueça a Kiss

A cidade de Santa Maria prepara uma série de atividades com o intuito de conscientizar e relembrar o incêndio que deixou 242 pessoas mortas e que em 27 de janeiro 2023 completa dez anos

Por
Paulo Roberto Tavares

Dez anos depois da tragédia do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, que matou 242 pessoas, cada morador da cidade tenta conviver com a sua dor de várias maneiras. Mas nem todos os que residem na cidade pensam da mesma forma. Um grupo pequeno acredita que as pessoas deveriam deixar a memória dos entes queridos “em paz, para que as almas pudessem descansar”. Estive na cidade ao amanhecer daquele 27 de janeiro de 2013, eu e a equipe do Correio do Povo que foi deslocada para cobrir a tragédia, e encontramos uma cidade em choque, com pessoas aglomeradas na porta da boate ainda tentando saber notícias de seus familiares e amigos. Voltando à cidade esta semana, deu para perceber que as pessoas tentam conviver com a sua dor, inclusive fazendo atividades em grupo. Na porta onde funcionava a casa noturna foram fixados pequenos cartazes onde se lê: “Onde você estava na noite do dia 27 de janeiro de 2013?”. 

Várias atividades estão previstas para ocorrer na semana que se estende até o dia 28, com o intuito de conscientizar e não deixar que a população esqueça o que ocorreu. Também para que haja uma pressão para que a anulação do julgamento que condenou quatro réus seja revertida e que eles voltem para prisão. “Os réus estão vivendo a vida há 10 anos, o que nós não tivemos o direito de fazer”, afirmou o presidente da Associação dos Familiares e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Gabriel Rovadoschi Barros.

A programação, de acordo com Barros, inicia-se no próximo dia 25, às 19h, com uma atividade promovida pelo eixo Kiss. Será feita uma colagem de cartazes com frases no trajeto da Praça Saldanha Marinho, na tenda onde está o mural com as fotos das vítimas da tragédia, no centro da cidade, até a Boate Kiss. É algo semelhante ao que é feito na Alemanha, lá em memória das vítimas do holocausto com o nome de “Pedras do Tropeço”. As pessoas vão caminhando e vendo no chão as homenagens que são feitas. Em Santa Maria, os cartazes serão colocados em outros locais também e não somente no chão. No dia 26, às 14h, haverá uma coletiva no centro da cidade, depois, às 18h30min, ocorre um painel sobre os 10 anos da AVTSM, onde falarão o primeiro presidente da associação, Adherbal Ferreira, pai de uma das vítimas do incêndio, o segundo homem a ocupar cargo, Flávio da Silva, também pai de uma vítima, e o atual presidente da entidade. Às 19h haverá uma palestra e logo após a exibição de uma minissérie sobre a tragédia. Ás 22h, haverá uma vigília na frente do prédio onde funcionava a Boate Kiss e, passando do dia 26 para 27, ficando até as 2h30min, horário em que começou o fogo.

No dia 27, ocorrerão eventos o dia inteiro. De manhã haverá um culto ecumênico na Praça Saldanha Marinho. Às 13h45min, serão soltados 242 balões brancos, número de mortos na Kiss, na Praça Saldanha Marinho. Logo após, às 14h, ocorre um painel com a mãe de uma vítima do incêndio da boate República do Cromañón, na Argentina, que falará sobre a experiência naquele país. O evento terá o nome de “Mães e Madres: Kiss e Cromañón”. Mães que perderam seus filhos na Kiss também estarão presentes. A programação se estende até as 22h, com painéis sobre prevenção de incêndio, problemas jurídicos, apresentação da campanha Tempo Perdido, em que serão apresentados oito fotos de vítimas de como estariam se estivessem vivas hoje. Este trabalho foi feito em homenagem às vítimas e aos familiares. O encerramento será com música de uma cantora local. E, no dia 28, às 20h, ocorre uma missa em homenagem aos 242 mortos da tragédia. “Este evento não são os 10 anos da tragédia, são os 10 anos que começaram”, afirma Barros. “O RS tem que voltar novamente os seus olhos para o que aconteceu”, destacou o presidente da AVTSM.

Uma luta para se manter viva a memória da cidade

As sequelas daquela noite ainda estão presentes em moradores da cidade, que relataram terem sido submetidos a tratamentos de saúde e psiquiátricos para superarem os traumas. Profissionais, como policiais militares e bombeiros que atenderam ao chamado, dizem ter sofrido insônia, tiveram pesadelos e, não raro, pediram para não trabalhar no turno da noite. Quem encontrou algum familiar entre os corpos prefere não comentar e quando fala é com a voz embargada e os olhos marejados. 

Um local que fiz questão de ir foi à tenda na qual está o mural com as fotos das vítimas, na Praça Saldanha Marinho, área central da cidade. Lá fiquei sabendo que algumas pessoas querem que a barraca seja retirada, sob a alegação de que deixa a cidade triste. O presidente da AVTSM considera que o espaço precisa ser mantido e que seja algo permanente para que a tragédia não seja esquecida. O lugar, contou ele, precisou ser mantido na base da ocupação, pois autoridades tentaram retirá-lo do local onde está, tempos atrás. A pressão, salientou Barros, foi muito grande. “Quando veio a pandemia, a presença de pessoas na tenda foi diminuindo, até porque não era permitido o contato social”, relembrou. “Atualmente, mantemos a rotina de todo o dia 27 de cada mês nos reunirmos na tenda para fazer vigília”.

O ritmo da cidade é frenético como em qualquer cidade do porte de Santa Maria, mas dá para sentir que algo ainda não está como deveria ser. Falei com algumas pessoas que estavam no centro para fazer compras e elas disseram que a dor não amenizou. No entanto, cada uma vai administrando sua dor, vai reagindo de variadas maneiras. O que é comum é a revolta pela anulação do julgamento e pela perda da pessoa amada. “Nada é como antes de janeiro de 2013. Sinto muita falta do meu filho”, disse um senhor que pediu para manter o anonimato. “Naquela noite, eu dei carona para ele. Até hoje me culpo por isso”, afirmou, saindo ligeiro, alegando ter um compromisso.

Um outro homem, que não teve parentes mortos no incêndio, recordou ter retornado do Litoral Norte para ajudar no que fosse necessário. Ele lembrou ter visto várias placas de carros de outras cidades rodando pela cidade à procura de informações sobre algum parente. Uma mãe que perdeu o filho, um pai que perdeu a filha, um avô ou avó que não podem mais falar com o neto nem comparecerem à formatura do ente querido e assim por diante. Todos tentam manter vivo na memória os entes queridos.

No entanto, de acordo com Barros, um pequeno grupo tem se manifestado contrário às ações e aos atos dos parentes e da associação. “Eles chegam e vão falando que são 10 anos e que deveriam deixar os mortos em paz, que não deveriam ficar falando neles”, recordou Barros. “Um absurdo, pois a crença deles não lhes dá o direito de ficarem dizendo como as pessoas devem agir ou reagir a qualquer situação, ainda mais em um caso como o da Kiss. É um grupo pequeno, mas que faz muito barulho, tem mexido muito com o sentimento dos familiares”, afirmou, ressaltando que o movimento não é apenas para os que perderam os filhos na Kiss, mas para os filhos que estão vivos e que são destas pessoas contrárias à manifestação. “Os filhos delas hoje são pequenos e estão vivos, mas eles vão crescer e para que não passem pelo que passamos é que estamos fazendo tudo isso. Digo que quero um compromisso para os meus netos. E eu nem quero ter filhos”, brincou, amenizando um pouco o ambiente. 

O julgamento, em um primeiro momento, deu um alento, apesar de não ter curado a saudade de ver o sorriso de um parente. A anulação do júri gerou um misto de revolta e dor. Porém, todos esperam que a anulação seja tornada sem afeitos. “O propósito do evento é também esclarecer juridicamente como estão os trâmites do processo. Tenho confiança de que vamos reverter a decisão”, comentou Barros. “Foi uma frustração muito grande. As pessoas não precisam passar pelo que passei, ver o que eu vi, para responsabilizar os culpados”, disse. “Dói na lembrança ligar os responsáveis pela tragédia com o cenário de hoje, que é de impunidade”, desabafou o presidente da AVTSM. Este cenário é ilustrado pela fala de uma senhora, de cerca de 60 anos, que mesmo “desmoronando” por dentro, como ela afirmou estar, segue caminhando pelo centro da cidade, assim como outros pais, mães, avós e avôs. “Quem sabe fazemos isso para nos sentirmos mais próximos dos filhos e netos cujas fotos estão naquele mural na tenda da Praça Saldanha Marinho? Fazemos isso apenas para ter a sensação de estarmos conversando com filho, filha, neto ou neta e quem sabe termos a impressão de termos visto na foto, nem que seja por um momento, o seu sorriso.” 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895