Famílias arriscam a vida em meio a pilhas de resíduos gerados pela enchente em Porto Alegre

Famílias arriscam a vida em meio a pilhas de resíduos gerados pela enchente em Porto Alegre

Depósitos temporários montados pela prefeitura atraem catadores em busca de materiais recicláveis

Morador do Porto Seco procurava objetos no topo de uma das pilhas de materiais descartados

Por
Cristiano Abreu

É como estar de volta aos anos 1990. São toneladas de resíduos de todos os tipos, formando montes com cerca de cinco metros de altura, talvez até mais, e tantos outros de extensão. São pilhas volumosas que exalam um cheiro desagradável e preenchem o horizonte de quem vê a partir do chão barrento. No topo, as pessoas reviram os descartes em busca de algo que possa ser revendido ou até mesmo reaproveitado, às vezes muito próximo do maquinário pesado que movimenta as cargas que chegam uma atrás da outra.

A comparação com os lixões urbanos a céu aberto do passado, atualmente proibidos por legislação, é tão involuntária quanto automática. Consequência da inundação que atingiu Porto Alegre em maio deste ano, os pontos de transbordo montados de forma emergencial pela prefeitura da Capital têm a seu favor receberem apenas os chamados resíduos inertes. Na concepção, esses locais concentram tudo o que é retirado das ruas e não podem ser direcionados para aterros convencionais, que recebem, por exemplo, a coleta orgânica domiciliar.

O levantamento atualizado do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) aponta que desde o dia 6 de maio, quando foi iniciada a força-tarefa para limpar a cidade, 90.796 toneladas de resíduos foram coletadas. Este volume foi distribuído entre os depósitos temporários, nas áreas centrais e nas zonas Norte e Sul, de onde posteriormente será encaminhado para o aterro de inertes em Gravataí, na região Metropolitana.

Por questões contratuais (a empresa inicialmente contratada pela prefeitura desistiu de prestar o serviço e uma nova seleção foi necessária), o transporte até o destino final começou apenas nesta semana. Neste ínterim e com pilhas de resíduos cada vez maiores, pessoas que vivem da cata viram surgir uma oportunidade.

Um destes pontos de transbordo está montado junto ao Complexo Cultural do Porto Seco, na zona Norte. Por lá o movimento é constante, com caçambas do DMLU chegando praticamente sem parar. Ao passo em que esses veículos descarregam, cinco retroescavadeiras enchem caminhões maiores que partem para Gravataí. Entre as operações, alguns moradores do entorno tentam garimpar objetos de todo tipo. “Tem bastante alumínio e cobre. Esses dias, achei até panelas, com caixa e tudo; 'tava' amassada, mas deu boa”, contou o Caio Rafael Souza, 26 anos, que passou a usar os recipientes na cozinha de casa, apesar do risco à saúde.

A área em questão no Porto Seco é extensa e aberta, o que dificulta o controle. Mesmo com a presença de uma viatura da Guarda Municipal no acesso pela avenida Élvio Antônio Filipetto, bolsas de pessoas circulam pelo local, ainda que parte delas apenas satisfazendo a curiosidade, observando o trabalho ou postando fotos em redes sociais. Contudo, enquanto os agentes controlam um lado, os catadores se aproximam do outro.

Ainda no mesmo ponto de transbordo, os agentes da Guarda tentaram fazer com que dois jovens, ambos aparentemente com menos de 18 anos, apagassem o fogo colocado em fios retirados da pilha de resíduos. De imediato, um grupo de pessoas avançou pelo lado oposto. Surgiu até catador puxando carrinho.

Catadores circulam entre máquinas em um dos depósitos provisórios, no Porto Seco | Foto: Fabiano do Amaral

No fim da semana, as crianças estavam entre os resíduos. Dois garotos corriam felizes com brinquedos sujos de lama, retirados dos rejeitos.

Na avenida Voluntários da Pátria, próximo à Arena do Grêmio, um homem usava calças laranjas, idênticas às do uniforme usado pelos garis que trabalham na Capital, caminhava entre os resíduos. Ele segurava um saco plástico de cor preta já parcialmente cheio, e, com a mão livre, esfregava os olhos, incomodado com uma fumaça branca que sai da pilha de descartes. Sem se identificar, revelou que trabalha na varrição das ruas e tenta obter dinheiro extra com a coleta de materiais recicláveis ​​no tempo livre. “A gente precisa se virar para viver”, justificou o gari, morador do bairro Humaitá.

A mensagem emitida pelos materiais acumulados há mais de um mês no local é visível em trechos da Avenida Voluntários e da BR-290. Apesar de chamar a atenção dos motoristas, não chega a oferecer prejuízo ao trânsito.

O Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) afirma que os locais usados ​​como ponto de transbordo são monitorados pela Guarda Municipal e por equipes de vigilância contratadas. De acordo com o diretor-geral, Carlos Alberto Hundertmarker, já foram identificados problemas relacionados ao acesso de pessoas no depósito temporário do Porto Seco. “A área é aberta e acaba ficando mais vulnerável”, mas estamos reforçando a vigilância, pela própria segurança daquelas pessoas”, destacou.

Hundertmarker lembra que os materiais depositados nestes locais estão contaminados e, portanto, oferecem risco à saúde. Também por este motivo, o gestor do DMLU revelou que os profissionais envolvidos na força-tarefa de limpeza da Capital foram vacinados contra a gripe e o tétano.

“A saúde das equipes é uma preocupação constante, por isso, além dos equipamentos de proteção adequados (EPIs), promovemos a vacinação.”

Sobre a fumaça gerada pelos resíduos, o diretor do departamento garante que não há perigo, uma vez que tem, segundo ele, origem na evaporação da água acumulada sobre os materiais. “São inertes, como chamamos, não é como o orgânico que emite gases pelos resíduos, e também não há chorume. Importante dizer que todos os locais, mesmo sendo temporários, receberam licença da Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental).”

Ao todo, 1.040 garis atuam nos bairros afetados pela cheia do Guaíba Em Porto Alegre. Estes trabalhadores são auxiliados por 477 equipamentos, entre caminhões e retroescavadeiras, que contam também com equipe de motoristas e operadores das máquinas, entre fiscais e apontadores, em atividades coordenadas pela Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb). Apesar da mobilização, Carlos Alberto Hundertmarker diz ainda não ser possível estimar prazo para a desativação de depósitos temporários.

“Vivemos uma guerra nas ruas da Capital. O que posso garantir é que estamos trabalhando para deixar a cidade limpa o mais breve possível”, completou o diretor do DMLU.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895