Isolados: aventureiros estão presos em condições extremas

Isolados: aventureiros estão presos em condições extremas

Brasileiros que saíram pela América lutam contra as fronteiras erguidas pela pandemia do novo coronavírus

Por
Henrique Massaro

Quando o representante comercial Gustavo Blume, 28 anos, resolveu largar tudo o que havia acumulado e juntar somente o essencial dentro de seu Ford Ka 1.0 para sair em busca de aventura pela América do Sul, não imaginou que se veria em condições tão primitivas. Menos de dois meses depois deixar Ivoti, na Região do Vale do Sinos, o aumento das medidas de prevenção ao novo coronavírus coincidiu com a sua chegada ao sul do Chile, de onde não consegue sair em função do fechamento das fronteiras com a Argentina, única rota de retorno ao Brasil. Há mais de 30 dias, o lugar mais seguro que encontrou para esperar fica a uma hora de viagem da cidade mais próxima e a imensidão natural das montanhas da Patagônia virou a sua prisão durante a pandemia. A realidade é semelhante à de outros brasileiros que optaram pelo nomadismo e se viram isolados em condições extremas, com as temperaturas caindo drasticamente.

O cenário é digno de se emoldurar. Ao fundo, montanhas nevadas e, em primeiro plano, campos amarelados. No meio, duas lagoas cristalinas formadas pelo gelo derretido, de onde Gustavo bebeu água e tomou banho após decidir estacionar o carro e aguardar. Rota quase que obrigatória de qualquer viajante que se aventure pelo extremo-sul do mundo, ele acabara de conhecer as paisagens geladas de Ushuaia, na Argentina, e resolveu passar para o lado chileno. Chegou no dia 15 de março com a intenção de visitar o Parque Nacional Torres del Paine, que fechou no dia seguinte com as medidas de restrição adotadas no país. Para seguir para o norte chileno, é necessário uma balsa, que parou de funcionar por causa da Covid-19, e voltar para o Brasil também é impossível com as fronteiras fechadas. Os únicos acessos terrestres são para as cidades portuárias de Punta Arenas e Puerto Natales.

Gustavo Blume está retido na beira de lagoas de degelo. Foto: Gustavo Blume/Divulgação/CP

Como Gustavo dorme em uma cama adaptada dentro do próprio Ford Ka, pareceu arriscado parar o veículo nas ruas de uma das cidades com medidas de isolamento social como toque de recolher. Ele seguiu dirigindo a esmo por cerca de 70 quilômetros até, sem querer, no fim de uma estrada sem saída, encontrar o local onde está até agora. Os dias eram preenchidos dormindo, pescando e tomando banho nas lagoas em temperaturas já baixas, mas sem muitas preocupações. Com o passar das semanas, o frio foi se intensificando e, por sorte, depois de cerca de 20 dias sozinho, teve seu primeiro contato com a vida humana. A única outra pessoa naquela imensidão, o caseiro de uma fazenda que faz divisa com as lagoas, o viu e ofereceu comida e abrigo. Passou a poder usar um chuveiro quente e, à noite, estaciona o carro dentro de um galpão fechado para dormir. Em troca, ajuda a cortar lenha e faz outros serviços na propriedade.

"É uma coisa que está acontecendo no mundo inteiro e não tem o que fazer"

A situação lhe deu segurança para permanecer no local durante o frio e tranquilidade para continuar a viagem mesmo que limitado a um só lugar. “Nunca imaginei que isso iria acontecer, mas estou levando super na boa, não perdi o bom humor, segui fazendo as minhas palhaçadas”, comenta o gaúcho de Ivoti, que, pelo perfil @ka.estou, no Instagram, reúne postagens descontraídas e que tiram o foco do momento de incertezas. “Aceitei que é uma coisa que está acontecendo no mundo inteiro e não tem o que fazer, não adianta me abalar, ficar bravo ou nervoso.”

Cenário de belezas naturais é a prisão particular do gaúcho de Ivotti. Foto: Gustavo Blume/Divulgação/CP

As linhas que separam países e que o mundo globalizado e conectado parecia ter apagado parecem terem sido traçadas novamente com a pandemia e, assim como ele, outros brasileiros estão espalhados pelo Chile, presos sem destino em meio a suas aventuras. É o caso do casal paulista Joaquim Pinto, 35 anos, e Juliana de Almeida, 34, que está com o seu carro estacionado à beira do rio Biobío, na região central do país, a mais de 2,3 mil quilômetros de onde está Gustavo Blume. Os dois saíram de São Paulo no dia 17 de dezembro direto para a Patagônia argentina, descendo até El Calafate, ainda antes de chegar ao extremo-sul do país. Entraram no Chile e a ideia era subir até os Estados Unidos, sem pressa, viajando por até três anos, se achassem necessário, para conhecer os cantos que o continente reserva e registrar os melhores momentos na página @ausenciatemporaria no Instagram.

O sentimento de liberdade que a estrada oferecia começou a mudar com as notícias de que a preocupação mundial com o novo coronavírus vinha aumentando e que a fronteira com a Argentina poderia fechar. No dia 15 de março, ao voltar de uma pescaria em Puerto Varas, já na região mais central do Chile, receberam a informação do fechamento e se tornou tarde demais para fazer o caminho de volta. Seguindo algumas dicas, resolveram dirigir até a comuna de Lonquimay, onde encontraram o lugar à beira do rio. 

Casal em local isolado próximo de Lonquimay. Foto: Juliana de Almeida/Divulgação/CP

Em meio às árvores, a tranquilidade impera no que parece ser um camping abandonado ou clandestino. Há uma mesa com bancos de madeira e um banheiro com fossa. A água é retirada do rio e filtrada por eles mesmos, que no veículo contam com painel solar e botijão de gás, além de um freezer com alimentos estocados. Assim estão há mais de 30 dias, tendo saído para compras na cidade próxima apenas duas vezes e visto menos de dez pessoas nas proximidades do acampamento, todas indo pescar na região. “Por enquanto, estamos bem, mas muito preocupados com o quanto isso pode durar”, explica Joaquim.

"Vai chegar o inverno e é pesado"

A decisão já foi tomada: voltar para o Brasil e, quando for possível, retomar os planos de viagem. Mas, sem a previsão de abertura de fronteiras na Argentina ou até mesmo na Bolívia e no Peru, sair do Chile da mesma forma que entraram parece impossível. Para não correr o risco de ficar em situação crítica enquanto aguarda, o casal comprou passagens aéreas de Santiago para São Paulo para o dia 2 de maio. A data se aproxima e parece que essa vai ser a única saída possível, mas está longe de ser a ideal. Além da possibilidade de se expor ao vírus em um voo internacional, eles precisariam conseguir uma autorização para deixar o carro em território chileno e recuperá-lo quando tudo isso acabar. Antes de chegar ao aeroporto, ainda será necessário passar pelas barreiras sanitárias e conseguir um salvo-conduto para levar o automóvel até a Capital. “Não tem muito como não deixar o carro aqui. A única opção é sair, vai chegar o inverno e é pesado.”

Joaquim e Juliana filtram água do rio Biobío. Foto: Joaquim Pinto/Divulgação/CP

A mais de 2,3 mil quilômetros ao norte do mesmo Chile, a viagem já começa a dar lugar a uma luta mais direta por sobrevivência. Nas proximidades de San Pedro, na altitude do Deserto do Atacama, brasileiros começam a sentir a dificuldade de suprir necessidades básicas e a hostilidade da população local. As fotos admirando a beleza e a profundidade dos vales foram tiradas para ilustrar um dos momentos livres que uma viagem em família de motorhome mundo afora pode proporcionar, mas o cenário se tornou uma espécie de cárcere a céu aberto. “Não importa o quão bonito seja, é como se estivéssemos dentro de uma prisão”, explica Eduardo de Sousa, 38 anos, que há mais de 40 dias interrompeu o trajeto que vinha fazendo havia um ano e sete meses com a esposa Flávia Corrêa, 37, e os filhos Eduardo Filho e Noah, de 9 e 2 anos de idade.

“Ainda não estamos em uma situação de fome, mas se encaminha para isso"

Do plano de ir de um extremo a outro do continente americano – de Ushuaia até o Alasca –, a Família Ducerrado, como se divulgam nas redes sociais, de repente se viu em condições extremas bem no meio do caminho. Os vistos de permanência no Chile dos goianos de Anápolis vencem no próximo dia 29 de abril. Estarão há mais de três meses no país onde a ideia não era ficar por tanto tempo justamente pelo custo elevado dos produtos, que, segundo Eduardo, seguem subindo durante a quarentena. 400 gramas de leite em pó para o filho menor, por exemplo, custam aproximadamente R$ 45,00 e o preço de uma pasta de dentes chega perto dos R$ 30,00. O dinheiro para bancar a viagem vinha do aluguel de um apartamento no Brasil, mas contava com o complemento de produtos que vendiam para turistas. Com o fechamento das fronteiras, essa fonte secou e a manutenção de necessidades diárias começou a se tornar inviável. “Ainda não estamos em uma situação de fome, mas se encaminha para isso se não conseguirmos um auxílio emergencial.”

Eduardo de Sousa está com a família no Deserto do Atacama. Foto: Flávia Almeida/Divulgação/CP

Para piorar, o clima é de insegurança. Conforme Eduardo, recentemente, por exemplo, cinco pessoas se aproximaram em uma caminhonete e ameaçaram a família caso não fosse embora. A ameaça, por sorte, terminou apenas em um bate-boca. A cerca de 40 quilômetros da fronteira mais próxima, com a Bolívia, também fechada, não há rota terrestre para seguir para o Brasil e a ideia de seguir de avião parece a mais segura no momento. Contudo, não há voos até, pelo menos, o próximo dia 30. “Não estamos nem nos importando de a Kombi ficar aqui, queremos resolver nossa situação, porque essa hostilidade preocupa e, se apertar mais com relação à economia, acho que vai começar a ficar bem difícil.”

Outras famílias se encontram na mesma situação e local que Eduardo nesse momento, mas ainda não cogitam a possibilidade de deixar seu meio de transporte para trás. De São Sebastião, no litoral paulista, João Carlos da Fonseca, 63 anos, que está com a esposa Fátima Cardoso, 58, viaja em uma caminhonete com um trailer acoplado na caçamba, com geladeira e a cama onde dormem. O acesso à água potável no deserto é limitado e as baterias de seus aparelhos auditivos estão chegando ao fim, já que planejava ficar no Chile por, no máximo, dez dias, e não mais de 30. Mas ir embora de avião ainda não é uma possibilidade, pois considera arriscado. “Dentro de um carro tenho muito menos possibilidade de contagiar alguém ou mesmo ser contagiado, então não sei por que insistem em voltarmos de avião”, diz, ao explicar que, durante o trajeto, só precisaria parar em algum posto para dormir dentro do próprio automóvel.

Família de Eduardo está de motorhome no deserto. Foto: Eduardo de Sousa/Divulgação/CP

Resgate

Os pedidos de ajuda começaram em contatos com os amigos motociclistas acostumados a pegar a estrada e que se viram sem saída do país onde estavam quando a pandemia estourou. Pouco mais de um mês depois, o grupo de ajuda no WhatsApp criado pelo também motociclista e instrutor de voo livre Dualcei Silva, de Balneário Camboriú, Santa Catarina, mapeou 35 viajantes, dois cachorros e 15 veículos isolados em diversos pontos do Chile aguardando permissão para poderem cruzar as fronteiras. Do litoral catarinense, Silva tem feito contatos permanentes com as autoridades para ajudar a articular o retorno em um comboio.

Em conversas constantes com Dualcei, a gerente de relações internacionais da Secretaria Executiva de Assuntos Internacionais de Santa Catarina, Julia Baranova, tem tratado diariamente com consulados, embaixadas e Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) para ajudar na repatriação dos brasileiros. No mês passado, foi possível articular o retorno de grupos que já estavam na Argentina e conseguiram um salvo-conduto, mas a situação de quem está do lado chileno se complicou depois que, no dia 26 de março, o presidente Alberto Fernández assinou um decreto que proibia a entrada no país, inclusive, para os próprios argentinos. Apesar disso, de acordo com Julia, a Secretaria, em um esforço conjunto com o Consulado da Argentina em Florianópolis, conseguiu viabilizar o retorno de 180 argentinos que estavam no território catarinense. Agora, conta-se com apoio do Consulado para deferir a autorização de trânsito de um novo comboio. “Foram emitidos ofícios com a relação de veículos e passageiros, mas ainda não temos a definição.”

"Estão em um buraco e não conseguem sair"

O grupo de ajuda organizado por Dualcei Silva chegou a incluir turistas que estavam em outros países, como Peru e Panamá, a maioria deles já repatriados, fazendo com que o Chile ofereça hoje as barreiras mais resistentes. Enquanto o retorno não acontece, as condições se tornam mais críticas principalmente para quem se encontra na região da Patagônia. De acordo com Silva, que tem experiência em viagens para o sul do continente, o clima nos próximos 30 dias piora consideravelmente, ficando aquém de zero grau. “É um lugar inóspito, de condições extremas. Estão em um buraco e não conseguem sair.”

No processo de repatriação do Itamaraty, até a noite de domingo 17.770 pessoas haviam sido trazidas de diversos países via aérea, restando cerca de 3,8 mil em 74 países. Para muitos dos viajantes retidos na América do Sul, porém, pegar um voo significa deixar para trás não só um veículo, mas, de certa forma, suas casas e pertences acumulados. Em função disso, o principal objetivo das articulações do grupo de ajuda organizado por Dualcei Silva é o de um comboio, ou seja, uma rota limitada, sem passar por dentro de cidades, evitando qualquer possibilidade de contato.

"Não temos ingerência sobre as regras impostas pelos governos sul-americanos"

Para tentar obter as respostas que os viajantes brasileiros procuram, o Correio do Povo fez contato com todas as embaixadas e consulados brasileiros no Chile, Argentina, Bolívia e Peru. Também contatou diplomatas que estão à frente das articulações de resgate, mas a maioria dos retornos foram de que a questão deveria ser centralizada na comunicação do Ministério das Relações Exteriores. Por meio de sua assessoria, o Itamaraty afirmou estar ciente dos cidadãos que querem retornar ao país por via terrestre em seus veículos e que estão impedidos pelas restrições nas fronteiras, mas informou que a pasta e as embaixadas não têm poder de decisão nessa situação “extrema e excepcional”.

“Negociações para permitir o deslocamento terrestre têm sido bem-sucedidas em diferentes ocasiões, particularmente com ônibus fretados pelo governo, e continuaremos buscando forma de solucionar o problema dos brasileiros e a prestar o apoio necessário. Há que ressaltar, porém, que não temos ingerência sobre as regras impostas pelos governos sul-americanos e somos constrangidos por convenções internacionais a obedecer a seus ditames”, informou o Ministério. A recomendação padrão é que os viajantes ainda retidos em outros países entrem em contato com o Grupo Especial de Crise para assuntos consulares e migratórios (G-CON). Na América do Sul, o número é +55 61 98260-0767.

O Itamaraty também informou que atua para ajudar brasileiros retidos no exterior em diferentes situações desde que começaram as restrições de movimentação provocadas pela pandemia do novo coronavírus e que embaixadas e consulados no mundo inteiro negociam constantemente para superar questões como fechamento do espaço aéreo e proibição de trânsito interno e entre regiões. Segundo a pasta, a atuação é limitada pelas medidas de isolamento de cada país.

O Ministério está contratando voos fretados para cidadãos retidos em países com interrupção absoluta de voos comerciais e assegurou que presta assistência consular extraordinária, que inclui aquisição de passagem para pequenos grupos de brasileiros em locais onde ainda há possibilidade de voo comercial, aluguel de ônibus para deslocamento terrestre e pagamento de eventuais taxas aeroportuárias e de embarque. Quem comprovar carência de recursos ainda pode solicitar ajuda ao consulado ou à embaixada em sua região, que buscará, de acordo com as limitações legais, dar apoio financeiro.

Preconceito e hostilidade na Argentina

Diferentemente do Chile, a maior parte dos viajantes que foi surpreendida pela pandemia quando estava dentro da Argentina não teve tantos problemas para cruzar a fronteira de volta ao Brasil. Apesar disso, o tempo em território argentino não foi facilitado. Além das dificuldades de conseguir abrigo e garantir o sustento em meio às medidas de isolamento, os relatos dão conta de preconceito da população local com estrangeiros, em alguns casos chegando à hostilidade. Em Salta, no noroeste do país, Fábio Kuhn, 36 anos, e Patrícia Miguel, 31, se viram obrigados a voltar para o Brasil depois de precisarem colocar uma placa argentina provisoriamente em seu motorhome por medo de ter o veículo depredado.

O casal saiu em setembro do ano passado de Porto Alegre para iniciar a sua Baita Jornada, como chamaram o projeto que deveria durar dois anos. Depois de conhecer o Uruguai, eles desceram até Ushuaia, entraram no Chile e retornaram à Argentina. Em Salta, com um grupo de outros viajantes, sentiram que as medidas começaram a enrijecer e decidiram que o mais correto a fazer era encontrar um lugar para se isolar. Alugaram um espaço pelo Airbnb, mas, no dia marcado, a responsável afirmou que não poderia recebê-los devido a um caso suspeito de coronavírus em um turista alemão. Ela, no entanto, em algumas horas conseguiu um conhecido que disponibilizou um quarto com duas camas e um banheiro privado por um preço mais baixo.

Estacionaram o motorhome em frente a casa, mas os vizinhos do proprietário do imóvel começaram a reclamar. O automóvel precisou ser levado para outra propriedade e a placa foi alterada para evitar maiores problemas. A ideia era ficar no local até a pandemia dar uma trégua e eles poderem retomar os planos de viagem, mas, no dia seguinte a este episódio, decidiram voltar para o Brasil. Em vez de passar por Uruguaiana e matar a saudade da família, evitaram expor os parentes a algum risco, cruzaram a fronteira por São Borja e dirigiram por mais de oito horas direto para Porto Alegre, onde aguardam para saber se poderão retomar a aventura.

De motocicleta, o curitibano Ary Andreatta, passou a semana em trânsito para sair da Argentina, onde ficou por dois meses. Durante o trajeto, contou que, em Las Plumas, não lhe deixaram comprar comida. Policiais, que inicialmente lhe trataram bem, em seguida gritaram e o mandaram seguir 60 quilômetros à noite até um posto, afirmando que teria assistência. “Não tinha. O casal que estava lá até apagou as luzes. Acampei mesmo assim, trataram igual cão”, relata. Ele resolveu voltar para o Brasil após o governo adotar medidas de facilitação da saída de estrangeiros. De fato, conforme o Consulado brasileiro em Paso de los Libres, na fronteira com Uruguaiana, por onde Ary entrou, não há impedimentos de retorno.

"Ficaríamos, literalmente, na rua”

Apesar da livre passagem, há quem ache arriscado tentar retornar nesse momento. O preconceito observado por alguns viajantes não foi sentido por Chana e Sivonei Peratz, 33 e 34 anos, em El Calafate, onde estão desde o dia 15 de abril e têm sido bem tratados. Dois dias depois de estacionarem seu veículo em um posto onde ficaram com outros viajantes, precisaram sair e encontraram uma pequena pousada à beira do Lago Argentino, a princípio para ficar três dias. Mas logo no segundo dia, souberam que ficariam trancados nas dependências do estabelecimento devido às medidas adotadas na cidade após a confirmação do primeiro caso de coronavírus. Quem fosse abordado pela polícia andando nas ruas, poderia ser preso por atentado à saúde pública. “Nos informaram que a quarentena tinha sido decretada por 15 dias, que não poderíamos sair da pousada. O pessoal só se comunicava pelo WhatsApp, não podíamos ir no mercado, passávamos o que precisávamos e compravam para nós, traziam até a porta do nosso quarto e, no final da semana, acertávamos”, relata Chana.

O casal do @aprecieajornada saiu de Santa Rosa em janeiro com o objetivo de rodar de seis a sete meses com Gulliver, seu cão golden retriever, e, depois de cruzar o litoral uruguaio, descer até o extremo-sul argentino, em Ushuaia, e entrar no Chile, conseguiu sair do país antes do fechamento das fronteiras. Depois de dois dias no Parque Nacional Torres del Paine sem muito sinal de Internet e, portanto, com pouco acesso às notícias, descobriram que as fronteiras com a Argentina estavam por fechar. Com receio de ficarem retidos no lado chileno, onde os preços são mais altos, saíram de Puerto Natales e cruzaram a divisa por Paso Dorotéa. Foram das últimas pessoas a conseguirem escapar do isolamento no Chile, mas acabaram retidos dentro da Argentina.

No fim dos 15 dias de quarentena em El Calafate, o período foi prorrogado por outros 15 dias e, agora, há autorização para ir da pousada até o mercado. O pórtico da cidade está fechado, tendo sido aberto apenas por algumas horas no último domingo para que moradores pudessem entrar e viajantes pudessem ir embora. Mas, mesmo que a passagem para o Brasil esteja liberada, eles teriam 5 mil quilômetros pela frente sem poder entrar em outras cidades, também isoladas, ou serem aceitos em alguma pousada. Os postos de combustíveis, onde costumam parar para dormir, tomar banho e ir ao banheiro, também estão muito restritos. “Alguns nem abastecem o carro e nos que abastecem a polícia te escolta para fora da cidade. Ficaríamos, literalmente, na rua.”

Presos dentro do Brasil

Mesmo quando se consegue vencer o fechamento de fronteiras, as barreiras podem ser encontradas dentro do próprio país. É o que aconteceu com Elka Albuquerque e Luis Queiros, 31 anos, de Manaus. Depois de uma aventura bem-sucedida por todo o litoral e parte do centro-oeste brasileiro em 2016, eles resolveram ampliar os planos em 2019. Compraram uma van, transformaram em um motorhome e, em agosto, saíram na expedição Do Norte ao Norte, passando primeiro pela região sul do Brasil e dando sequência a um roteiro semelhante ao de tantos outros viajantes: Uruguai, Argentina, Chile e Argentina novamente. Assim como Fábio e Patrícia, estavam em Salta quando tudo aconteceu e deixaram o local no dia 16 de março. Dois dias depois, cruzaram a fronteira em São Borja. Conseguiram andar cerca de metade do caminho, mas a rota terrestre foi interrompida.

"Como se nós viajantes fôssemos o próprio coronavírus”

Em Cuiabá, para seguir direto para Manaus, o único trajeto existente seria pela BR-319, que, nessa época de chuvas, é intrafegável em diversos pontos. O problema na rodovia exigiria que o casal subisse até Santarém, no Pará, e de lá pegasse uma balsa que em dois dias chegaria até a capital amazonense. O transporte, porém, como tantos outros serviços nesse momento, não estava operando para passageiros. Mesmo que conseguissem embarcar só o motorhome, não poderiam seguir de avião por conta do aeroporto fechado. Outra opção seria ir até Porto Velho e tentar uma balsa que levaria sete dias até o Amazonas. Nenhuma saída parecia segura e decidiram dirigir até Arraial d’Ajuda, na Bahia, e ficar na casa de amigos.

Apesar dos contratempos, os dois acreditam que estão mais seguros do que se tivessem ficado na Argentina, como chegaram a cogitar, alugando uma casa em Salta e passando um mês de quarentena por lá. Enquanto dormiam dentro do carro em um posto de combustível na estrada de volta, por exemplo, foram abordados por um policial que disse que não podiam entrar na cidade. “As coisas poderiam ficar um pouco complicadas, principalmente por preconceito com quem é estrangeiro. Temos amigos que voltaram às pressas porque começaram a sofrer vários ataques, como se nós viajantes fôssemos o próprio coronavírus”, comenta Elka.

Volta para casa

Depois 421 dias na estrada, João Paulo Mileski e Carina Furlanetto, conseguiram voltar para Bento Gonçalves, na Serra gaúcha. Mesmo depois de tanto tempo longe, precisaram ficar 14 dias sem abraçar a família. Um período de isolamento necessário depois de passarem por tantos lugares diferentes, mas cronometrado para terminar logo. O abraço nos pais do casal de jornalistas gaúchos finalmente deve acontecer neste domingo, colocando o ponto final que faltava na saga que começou quando decidiram voltar para casa. Após rodarem pela América do Sul em um Sandero 1.0, os idealizadores do Crônicas na Bagagem, como mostrado pelo Correio do Povo de 1º de março, estavam no Brasil desde dezembro do ano passado, com o objetivo de percorrer todos os estados. Com o estopim da pandemia, dirigiram 3,7 mil quilômetros por seis dias seguidos de Recife até sua terra natal.

Quando ouviram falar pela primeira vez do vírus, ainda em janeiro, estavam no Pará, mas as notícias ainda pareciam algo distante e seguiram a viagem sem preocupações. Mais recentemente, quando estavam em Barreirinhas, no Maranhão, indo em direção aos lençóis maranhenses, no quinto estado da lista, começaram a receber diversas mensagens nas redes sociais. “A ficha caiu mesmo quando estávamos voltando de um passeio e a menina do hostel disse que o parque iria fechar. Para o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses fechar, o negócio é sério mesmo”, recorda Mileski.

João Paulo e Carina voltaram depois de 421 dias. Foto: Carina Furlanetto/Divulgação/CP

Em uma casa onde se hospedaram em seguida, começaram a acompanhar mais atentamente o noticiário e, como todos os brasileiros, viram que a preocupação com a Covid-19 tomava proporções assustadoras. Os dois acharam mais seguro seguir por 1,5 mil quilômetros até Recife, onde mora a irmã de Carina, a princípio para esperar tudo passar. Acabaram ficando só dois dias na casa para evitar contato e se isolaram. O tempo total de estada na capital pernambucana, no entanto, durou apenas 18 dias. Pelas notícias, a pandemia parecia ser algo que não iria passar tão depressa. As medidas restritivas aumentavam e o medo de não conseguirem cruzar o país futuramente fez com que antecipassem a volta.

Até conseguirem chegar, foram seis dias de estrada praticamente sem sair do carro. O único contato com outras pessoas era na hora de pagar pedágios e em postos de combustíveis. Dormiram e cozinharam no veículo e até passaram dois dias sem tomar banho. No meio do caminho, João, o motorista da dupla, passou uma noite praticamente sem dormir devido a uma crise renal que normalmente o faria procurar um hospital, mas que precisou ser encarada só à base de remédios. O casal só respirou aliviado às 13h do dia 13 de abril, quando chegou a Bento Gonçalves. A emoção na chegada foi registrada em vídeo. Dos momentos finais de estrada até a chegada na Pipa Pórtico da entrada da cidade, os dois refletem sobre os aprendizados e as transformações que viagem proporcionou.

“Não acreditamos que tão cedo vai ser seguro estar em deslocamento do jeito que fazemos, dependendo de um posto de gasolina para usar banheiro, então optamos por esperar na nossa cidade”, explica Carina, antecipando que a aventura ainda não foi dada por encerrada. Depois de cumprirem os 14 dias isolados no andar de baixo da casa dos pais de João, o caminho é o apartamento dos pais dela e, além de matarem a saudade dos familiares, querem usar o tempo de quarentena para trabalhar em um livro que vai reunir as 450 crônicas escritas durante a viagem e relatos inéditos, como o dia em que encontraram o ex-presidente uruguaio José Mujica e quando acharam que poderiam morrer de frio.

Isolados antes mesmo de sair

Depois de mais de três anos de planejamento, Marauê Nunes, 34 anos, e Raquel Pinto, 31, estavam prestes a sair em busca do sonho de dar a volta ao mundo nos três anos seguinte. Já haviam deixado os empregos para trás, alugado seu apartamento e reformado uma antiga ambulância do Exército que lhes serviria de moradia em Algum Lugar na Terra, como chamaram seu projeto de vida mostrado há cerca de dois meses pelo CP. Finalmente, carregaram o automóvel naquele 15 de março, mas, no dia seguinte, quando pegariam a estrada, vieram as notícias de que as fronteiras na América do Sul tinham fechado. Desde então, são viajantes retidos antes mesmo de a viagem começar. Porém, na opinião do casal, não ter pego a estrada foi mais sorte do que azar. “Ou teríamos que voltar ou estaríamos presos em algum lugar. Nessa hora é melhor estar em casa”, avalia Marauê.

A casa tem sido um apartamento da avó dele em Porto Alegre, o que dá tranquilidade com relação a gastos e não compromete os recursos para a viagem. O restante da renda vem do aluguel do imóvel onde o casal morava anteriormente. O que poderia ser visto como limitação está sendo utilizado pelos dois para planejar ainda mais a empreitada. Durante a quarentena, estão lendo, escrevendo, aprendendo a mexer melhor nos equipamentos de audiovisual que compraram e aperfeiçoando o site www.algumlugarnaterra.com.br.

Ambulância reformada por Marauê e Raquel ainda está estacionada. Foto: Alina Souza

Por enquanto, não conseguem fazer previsões de quando poderão colocar sua casa ambulante na estrada. Antes dos próximos 60 dias, nem cogitam essa possibilidade e aceitam a ideia de que a espera possa demorar, pelo menos, cerca de quatro meses. É necessário ter calma e aguardar até que uma volta ao mundo se torne novamente algo minimamente seguro. Quando chegar a hora, afirmam, não terão receio, já que, dentro do seu carro, se sentirão mais seguros do que agora, indo ao supermercado ou pegando um transporte por aplicativo.

Os dois também não se arrependem do que deixaram para trás, mesmo que não tenha sido pouco. Ele largou um cargo concursado na Petrobras depois de nove anos, ela, os empregos de cirurgiã-dentista em três clínicas. Mas a aventura nunca foi o único motivo do desprendimento, já que Marauê não gostava do que fazia e Raquel estava desmotivada com a profissão. Adiar a volta ao mundo, portanto, não é problema. A viagem em busca deles próprios começou assim que abandonaram a insatisfação.

 
Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895