Lei de Cotas, com 10 anos, exige revisão

Lei de Cotas, com 10 anos, exige revisão

Neste ano, com uma década de funcionamento, a própria legislação define que a política de ação afirmativa criada para tentar dirimir desigualdades no Ensino Superior do Brasil deveria ser revista. Mas mudanças geram embates

Por
Júlia Provenzi, sob supervisão de Maria José Vasconcelos e Vera Nunes

Principal responsável por ampliar o acesso da população negra ao Ensino Superior, a Lei de Cotas (nº 12.711/2012) completa dez anos em 2022. A lei – que estabeleceu o programa de acesso especial a estudantes negros (pretos e pardos) e indígenas, pessoas com deficiência e estudantes de escolas públicas – regulou o ingresso de cotistas em 107 Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), entre universidades e institutos federais, e deverá ser revista neste ano. Diversos projetos de lei tramitam na Câmara, com objetivo de remover o recorte racial da lei e mantendo apenas o fator de renda e a porcentagem voltada a pessoas com deficiência.

Passados dez anos, a qualidade do Ensino Superior é tema de constante pesquisa e análise. Um levantamento feito pelo Centro Sou_Ciência (ligado à Unifesp, em São Paulo), com dados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), do Ministério da Educação (MEC), comprovou melhoria no desempenho dos alunos. A comparação é realizada na área da Saúde, com as notas de provas objetivas de 2013 e 2019, de 15 universidades federais que possuíam o maior número de estudantes matriculados no ano de 2019. Na UFBA, por exemplo, a nota saltou, de 28,75 para 55,9, no período. Na UFF, de 22,66 para 55,47. Na UFRJ saiu de 38,41 e foi para 53,81. E, na Unifesp, aumentou de 35,56 para 54,16.

Racismo Estrutural

Tamyres Filgueira, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos da Universidade Federal do RS (Neab/Ufrgs), explica que a importância das cotas para estudantes negros e indígenas está ligada ao racismo estrutural – o Estado foi o responsável e cabe a ele corrigir o nível de desigualdade por meio de políticas públicas. Em 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que, pela primeira vez, a maioria (50,3%) dos estudantes de faculdade no Brasil, em 2018, eram negros. Entretanto, pondera que os números não encontram respaldo na realidade: “Infelizmente, esse dado de 2018 não ajuda. Se perguntar a qualquer estudante, na maioria das universidades, tenho certeza que ele vai responder que, na turma dele, não tem 50% de estudantes negros cotistas”, assinala.

Aferição

Para Tamyres, portanto, além da instituição das cotas, é importante que as universidades tenham comissão de aferição. A Ufrgs é uma delas. A banca de aferição surgiu na instituição gaúcha depois que um grupo de estudantes realizou o movimento de denúncia “Balanta Nenhum Cotista a Menos”, que levantou mais de 400 casos de alunos que usavam indevidamente a autodeclaração racial. “Na maioria das universidades apenas com a autodeclaração você passa no vestibular e pode ocupar aquela vaga”, alerta.

Após a entrada na universidade e verificado o direito do estudante (por meio das bancas de aferição), para a política pública funcionar é necessário garantir a permanência acadêmica até a conclusão do curso. “Oferecer bolsas, Casa do Estudante e acesso à alimentação são algumas das políticas que permitem manter os alunos.”

Tamyres considera que a política de cotas é somente uma das ferramentas para a garantia da diversidade e da representatividade no ensino brasileiro. Esse movimento, segundo ela, começa nas escolas, desde a Educação Básica: a lei federal 10.639, de 2003, por exemplo, tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira. “E, para isso, é essencial oferecer uma formação docente qualificada dentro das universidades que formam esses professores”, acrescenta.

Pós-graduação

A coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros defende a existência mais professores negros nas universidades, com mais qualificação desses profissionais por meio de estudos de pós-graduação. “Uma das políticas pelas quais continuamos lutando é pela ampliação das cotas na pós-graduação.” Ela informa que, hoje, não tem uma lei que regularize a situação. Assim, cada curso tem autonomia para decidir sobre a oferta de cotas. Desse modo, entender a diversidade no ensino como um elemento necessário em toda a cadeia contribui não só na educação (da Básica à Superior), mas também na formação de cidadãos mais preparados para convivência em uma sociedade plural.

O debate em torno da lei de cotas não se encerra com a revisão da legislação. Conforme Tamyres, não se trata de focar só em cotas. Para ela, deve haver formação dentro das universidades, ações de permanência, cotas em pós-graduação e corpo docente de negros, daí a importância em garantir a lei de cotas.

Estudo

  • Levantamento do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros da Universidade Estadual de Maringá (UEM) revelou que a maior parte da cobertura midiática no tema, em 2021, considera que a Lei de Cotas foi fundamental para a inclusão de alunos negros no Ensino Superior, devendo ser mantida e aprimorada.
  • O estudo, com supervisão e apoio da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, buscou identificar as principais ideias sobre a Lei de Cotas em grandes veículos de comunicação no Brasil, entre junho e novembro/2021. Foram analisados 75 textos publicados em formato digital, entre reportagens, notícias e artigos de portais.
  • A maioria dos argumentos (60,7%) são favoráveis às cotas, 29% neutros e 10,3% contrários.
  • Atual posição da mídia considera a lei uma política antirracista e se contrapõe à visão de 10 anos atrás
Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895