A tarde de 25 de novembro de 2010 ficou marcada na memória visual dos brasileiros. A cena da fuga dos complexos da Penha e do Alemão após uma operação de guerra montada para retomar o local foi televisionada ao vivo em cadeia nacional e aventava novos tempos no Rio de Janeiro. A paz prometida não prosperou. Passados quase 15 anos, uma nova megaoperação nas mesmas comunidades se tornou a mais letal da história do país, com mais de 120 mortos, e deixou mais perguntas do que respostas.
Na década passada, a ação contou com tanques da Marinha e envolveu forças estaduais, federais e o Exército. A operação durou três dias, enquanto os agentes lentamente subiam a Vila Cruzeiro para posteriormente ocupar a região posicionando Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) com um projeto robusto de investimento. À época, estimava-se 35 mortos entre os dias 22 e 28 de novembro.
Ao fim da semana de guerra, o então comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PM-RJ), Mário Sérgio, anunciara que o complexo havia sido tomado. "Trouxemos a liberdade para a população do alemão", declarou, em coletiva de imprensa.
A primavera sonhada não floriu. Quase 15 anos depois, Penha e Alemão voltaram a ser local seguro para lideranças do crime organizado. Agora, porém, não apenas do Rio de Janeiro. O Comando Vermelho (CV) se expandiu. Foi exportado para outros estados brasileiros e passou a disputar com os paulistas do Primeiro Comando Internacional (PCC) o mercado internacional do tráfico de drogas e armas. O crime se fortaleceu.
Se intensificaram também as intervenções policiais nas comunidades – principalmente nos últimos anos. Em fevereiro de 2019, uma operação resultou em 15 mortos na favela do Fallet. Em maio de 2021, 28 perderam a vida no Jacarézinho. Em maio de 2022, foram 23 mortos na Penha. Em junho de 2022, mais 17 mortos no Alemão. Em janeiro de 2023 morreram 17 em Senador Camará. Em março de 2023, 13 mortes em São Gonçalo e Salgueiro. O saldo da vida e da morte chegou ao ápice na megaoperação de 28 de outubro de 2025, a mais letal realizada no Brasil, contabilizando 121 pessoas sem vida.
“Essa operação, lamentavelmente, não é um ponto fora da curva. Há um padrão que tem se repetido ao longo do tempo, em diferentes governos, mas especialmente nessa última década, em que vários governadores acabaram sendo eleitos justamente com esse discurso de um populismo penal, de uma ideia que esse confronto armado poderia ser uma solução”, analisa Rodrigo Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para ele, já ficou demonstrado que operações dessa natureza não são traduzidas em resultados práticos e eficientes para combater organizações criminosas e tornar as cidades brasileiras mais seguras para a população do país.
“Em relação ao CV, essa operação impacta muito pouco. Esse tipo de ação se repete ao longo do tempo, já ocorreu em outras comunidades. Essas pessoas que morreram são pessoas que atuam na ponta, no varejo. Os mandados de prisão que eram para duas lideranças do CV não foram cumpridos. Não houve nenhum tipo de consequência de uma forma mais efetiva”, critica o professor.
O Rio de Janeiro é um local mais seguro hoje do que era antes de 28 de outubro? O Comando Vermelho é uma organização enfraquecida após a operação? A resposta óbvia para estes questionamentos realçam a ineficácia da estratégia utilizada para a chamada ‘guerra às drogas’.
“Temos que virar esse jogo, mostrando justamente que uma situação como essa denota a fragilidade das políticas até aqui implementadas, inclusive nesse padrão, para que nós possamos inovar positivamente no enfrentamento desse problema gigantesco, que ameaça a democracia brasileira. Não é aceitável que haja territórios, especialmente numa cidade como é a do Rio de Janeiro, uma vitrine do país, que sejam dominados por grupos armados”, afirma Azevedo.
Melissa de Mattos Pimenta, professora do Departamento de Sociologia da UFRGS, corrobora. “Faz 30 anos, pelo menos, que a gente estuda a segurança pública, com dados, indicadores, modelos, inclusive avaliações de impacto de políticas públicas eficazes que funcionaram, que têm efetividade. Faz muito tempo que estamos falando as mesmas coisas. O problema é que tem governadores que continuam utilizando as mesmas estratégias que sabidamente não funcionam”, questiona.
Melissa também é professora no Programa de Coordenação em Sociologia, coordena o mestrado profissional em Segurança Cidadã e participa há 30 anos do grupo de pesquisa Violência e Cidadania da universidade.
“Mesmo se a operação for atingir os líderes da organização, tanto o CV como o PCC são estruturados. A estrutura permanece. O que continua é justamente a substituição de integrantes, porque você vai ter uma cadeia de comandos. Outra pessoa assume o posto acima e se arregimenta cada vez mais gente”, explica.
Ela cita ainda que exemplos recentes mostram que há alternativas eficientes para o combate ao crime. “A Operação Carbono Oculto, que aconteceu em São Paulo, foi extremamente bem sucedida. Alguém morreu? Não, ninguém morreu. Não foi disparado um tiro. Em termos de sucesso operacional, ela foi infinitamente maior do que esse saldo absurdo de mortos. Não dá para continuar desse jeito, não funciona. Atacar o território…o CV não é só o tráfico de varejo que está ali no morro. Temos que pensar em todo o alcance que tem. Onde é que está atuando? Dentro da prisão? Nos outros estados? Como são essas relações? Onde está o dinheiro? Quais são os acordos que existem para captar armas”, questiona Melissa.
Oportunidade para PEC da Segurança e outras medidas
Enquanto narrativas são disputadas na política institucional sobre o significado da operação, os impactos começaram imediatamente a ocorrer. Um dos reflexos foi a aceleração da discussão e possível votação da proposta de emenda à constituição (PEC) da Segurança Pública, que tramita no Congresso Nacional.
“Nós não temos sabido aproveitar esses momentos de crise para implementar medidas mais racionais. Mas me parece que nesse momento há essa possibilidade. Se abriu aquilo que chamamos, em políticas públicas, de uma janela de oportunidade para que os diferentes setores do espectro político se sentem à mesa e possam estabelecer um plano de ação coordenado”, projeta Azevedo.
“Uma coordenação de esforços do município do Rio de Janeiro, do estado do RJ e da União, assim como do Poder Judiciário, do Poder Executivo de cada um desses três níveis e também do Poder Legislativo em nível federal, aprovando medidas necessárias para que essa articulação entre União, Estados e Municípios se torne mais factível. Assim como as reformas penais necessárias para que esses grupos possam ser, de fato, controlados, coibidos, coisa que não tenha acontecido até aqui”, completa o professor que é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Melissa concorda. “É preciso uma interação institucional que ainda é muito frágil no Brasil. Uma integração entre as forças policiais, sistema prisional, Ministério Público, sistema de justiça como um todo. Além dos órgãos especializados em inteligência que estão interestaduais. Os estados do Rio de Janeiro e São Paulo não conseguem sozinhos.”
“Tem que se fortalecer os órgãos e a integração com o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), com os setores da Polícia Federal, os Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos). Tem que construir uma relação dialógica. O governador do Estado não pode se colocar nessa posição de que ‘aqui é meu território, aqui é a minha polícia e eu que mando aqui’. Isso não existe em lugar nenhum do mundo. É ingênuo, é hipócrita e é cretino”, criticou a coordenadora do mestrado profissional em Segurança Cidadã da UFRGS.
“Narcoterrorismo”
Narcoterrorismo é um termo comumente empregado nos Estados Unidos. Recentemente, tem sido utilizado pelo governo Donald Trump para justificar incursões militares no mar do Caribe, na América Central, e próximo à Colômbia e à Venezuela, na América do Sul.
Figuras políticas ligadas ao trumpismo importaram o termo, como Eduardo Bolsonaro (PL-SP), terceiro filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ). Tem sido empregado também pelo governador fluminense Cláudio Castro e por seus chefes de forças policiais após a megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão.
“No âmbito político, há uma disputa de narrativas que se colocam em torno também de uma disputa de alternativas de enfrentamento ao problema. Temos, em termos geopolíticos, uma pressão muito grande do governo americano, do governo Trump, para que organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas sejam caracterizadas como organizações terroristas, o que permitiria uma intervenção americana no continente sul-americano e centro-americano, como já tem ocorrido no Caribe, com o bombardeio de barcos sem esclarecimento, sem investigação, sem nenhum tipo de possibilidade de controle na medida que há essa rotulação como terrorismo”, explica Azevedo.
O tema também consterna Melissa. “Uma coisa que tem me preocupado bastante, que a gente está vendo, é o aceno ao governo dos Estados Unidos, por meio do envio de relatórios de inteligência para a embaixada americana e para comunicação direta com representantes do governo americano no sentido de sinalizar que está se enfrentando supostos narcoterroristas, no sentido de dar aval para uma política que o governo Trump está utilizando em relação a Venezuela e a Colômbia de forma totalmente ilegal em violação de qualquer regra, norma, mínima do direito internacional”, aponta.
“Essa conceitualização como narcoterrorismo acaba permitindo, digamos, uma flexibilização quase que total das regras do Estado Democrático de Direito para a criminalização de condutas”, complementa Azevedo.