Mudanças climáticas ameaçam espécies no RS

Mudanças climáticas ameaçam espécies no RS

Pesquisa da Ufrgs redução da flora do bioma Pampa, predominante no Estado, sendo que algumas espécies podem até migrar de habitat até o fim deste século

Flora do Pampa

Por
Cristiano Abreu

São inúmeras as consequências nocivas ao meio ambiente, geradas a partir da ação humana sobre o planeta. Emissão de gases do efeito estufa, poluição, desmatamento e exploração inadequada de recursos não renováveis têm ameaçado a sobrevivência de espécies animais e vegetais, além de acelerar o esgotamento de reservas minerais. E após um período tão sensível como o vivido pelo Rio Grande do Sul em 2024, qualquer sinal de esgotamento da natureza deve ser observado com ainda mais cuidado, indicam especialistas.

Para avaliar os impactos das mudanças climáticas sobre o Estado, uma pesquisa coordenada pelo Programa de Pós-graduação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), em parceria com o Programa de Pós-graduação em Botânica (PPGBOT), projetou a área climática adequada para a ocorrência e sobrevivência de oito espécies comuns na flora do Pampa, considerando as previsões de mudanças climáticas globais. Com a elevação da temperatura média, elas podem desaparecer ou até mesmo migrar para novas áreas.

A pesquisadora Isadora Quintana é autora do estudo. O trabalho, que teve duração de dois anos e integrou dissertação de mestrado orientada pela doutora em Genética e Biologia Molecular Caroline Turchetto, projetou a área de ocupação das espécies em dois cenários futuros, ambos impactados pela concentração de gases estufa. No primeiro, a temperatura do planeta aumenta entre 2ºC e 3ºC até 2100. A outra simula aquecimento de 4,3ºC no mesmo período.

Isadora Quintana: espécies da flora do Rio Grande do Sul com as mudanças climáticas | Foto: Fabiano do Amaral / CP

Isadora ressalta que as médias de temperatura analisadas são baseadas em estimativas apresentadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). O aquecimento global ocasiona a perda do habitat da maioria das plantas estudadas em ambas as projeções a partir de 2070. Para seis das oito espécies estudadas, há retração de área acentuada no cenário mais pessimista.

A Herbertia pulchella, encontrada na Serra do Sudeste e leste do Uruguai, não deixaria de ocupar os espaços em que já habita, porém, perderia significativamente a adequabilidade de habitat. As espécies Petunia integrifolia subespécie depauperata e Calibrachoa heterophylla, comuns na planície costeira do RS, provavelmente sofreriam fragmentação de habitat. “Acabariam dividindo-se em locais com condições climáticas inadequadas à sua existência”, afirma a especialista.

Petunia inflata e Petunia-perene (Petunia integrifolia subespécie integrifolia) encontrariam novas regiões, ainda que menos favoráveis, mas poderiam migrar para outras partes do Pampa. A primeira quase desapareceria do Brasil, habitando então o sudoeste do Estado e o Uruguai, enquanto a segunda espécie migraria do centro do Rio Grande do Sul em direção ao norte do Estado e nordeste do Uruguai.

Por sua vez, a petunia branca (Petunia axillaris), encontrada em solo gaúcho e nos dois países que fazem fronteira com ele, buscaria refúgio no litoral dos países vizinhos, pois as áreas climaticamente adequadas para a espécie no Brasil seriam quase nulas.

Duas espécies, no entanto, sofrem o efeito contrário: a expansão da área climaticamente favorável para sua ocorrência de ocupação. A orquídea-da-praia (Epidendrum fulgens), presente em todo o litoral do Estado, e Turnera sidoides subespécie carnea, que compõe as pastagens do Pampa para além do território brasileiro, conseguiriam se adaptar às condições do ambiente, podendo aumentar a sua área de distribuição, conectando populações antes isoladas entre si. “Populações isoladas são grupos dentro da espécie que com o decorrer dos anos (centenas e/ou milhares) passam a se diferenciar genética e geograficamente entre si. Quando essas populações isoladas voltam a ter contanto, podem ocorrer cruzamentos reprodutivos, impactando na ecologia e composição genética da espécie”, complementa Isadora.

A especialista reforça que a migração depende da capacidade de dispersão da planta. Portanto, mesmo existindo outros ambientes favoráveis, pode ser que a espécie não consiga chegar a eles por não conseguir espalhar suas sementes ou pela degradação ambiental. “Tem espécies que realmente se adaptam melhor, mas ainda que possam se deslocar para um lugar mais favorável, não significa que esse ambiente projetado estará disponível para elas. Pode haver uma cidade, um deserto, um solo contaminado ou qualquer coisa lá em 2070”, explica Isadora.

“É muito importante a gente trazer para discussão o fato de que não é porque as espécies podem vir a se expandir que elas vão se sair bem com o passar do tempo. Quando falamos de aquecimento global, não falamos só da distribuição das espécies, não falamos só de clima, estamos falando da degradação ambiental que pode levar à extinção de outras espécies. Os ecossistemas são interligados”, alerta.

Importância da análise genética

A pesquisa empregou análise de modelagem de nicho. A partir da ocorrência das espécies, são traçadas as coordenadas geográficas de onde cada uma é atualmente encontrada. Esses dados são cruzados com bancos de dados internacionais sobre o clima, e a partir daí é calculada a adequabilidade de hábitat. “Com essa análise, a gente consegue projetar o presente, o passado e o futuro”, reforçou.

Entender quais características genéticas possibilitam a adaptação foi uma das questões principais do estudo. E para compreender o potencial adaptativo, o DNA de cada espécie foi analisado. “A variabilidade genética é o nível mais fundamental da biodiversidade. A partir dela, compreendemos as estratégias adaptativas desenvolvidas pela planta.”

A pesquisa identificou as coordenadas geográficas onde cada uma das espécies é encontrada | Foto: Fabiano do Amaral

A professora Caroline Turchetto, orientadora do trabalho, reforça que o estudo genético das espécies permite mais eficácia nas ações de preservação. “A resiliência pode estar diretamente ligada à capacidade de adaptação, ou seja, a variações genéticas existentes nas espécies capazes de lidar com adversidades. Por isso é muito importante termos este conhecimento para apontarmos com mais precisão os locais de conservação e também para a restauração de ambientes degradados, por exemplo, os destruídos pelas enchentes que impactaram nosso Estado recentemente”, defende.

Um ecossistema diverso

No Brasil, o bioma Pampa está restrito ao Rio Grande do Sul, onde ocupa 178.243 km² – o que corresponde a 63% do território estadual e a 2,07% do território nacional. Além da rápida transformação do clima, a urbanização, o desmatamento, a introdução de espécies exóticas pelo homem e o avanço natural de espécies consideradas invasoras colocam este ecossistema em perigo. “Um trabalho recente, de 2023, liderado pela pesquisadora Bianca Andrade, também da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cita que existem 12.503 espécies de plantas, animais, fungos e bactérias no Pampa. E 97% das espécies são nativas”, detalha Isadora.

“Um bioma exibe um imenso patrimônio cultural associado à biodiversidade. Precisamos pensar nele em uma escala maior. O desaparecimento ou a migração de espécies podem resultar na mudança da paisagem e do ecossistema que conhecemos”.

De olho no passado para compreender o presente da biodiversidade

Para entender a influência das condições climáticas na biodiversidade, a bióloga também investigou a distribuição das oito espécies objetos do estudo em períodos passados. Utilizando as bases de dados científicos “Species Link” e “Global Biodiversity Information Facility” (GBIF), Isadora simulou ocorrências em três períodos: Último Interglacial (há cerca de 125 mil anos); Último Máximo Glacial (há cerca de 22 mil anos); e início do Holoceno (há cerca de 6 mil anos).

No Último Interglacial, as condições climáticas eram inadequadas para quase todas as espécies analisadas. A exceção é a petúnia branca, que conseguiu se adaptar ao noroeste do Rio Grande do Sul e ao pampa paraguaio.

No Último Máximo Glacial, as plantas que hoje são encontradas no interior do Pampa e na região costeira (petunia-perene, P.inflata, H. pulchella) tiveram uma retração de área. Ao mesmo tempo, as espécies das pastagens do Rio da Prata (petúnia branca e T. sidoides subespécie carnea) mostraram uma expansão da área climática adequada e, possivelmente, maior adaptabilidade ao habitat na época.

Os ambientes que as espécies analisadas ocupam atualmente são preenchidos apenas no início do Holoceno e, hoje em dia, essas espécies alcançaram maior área climática de ocupação. Além disso, a pesquisa aponta que os locais de maior estabilidade climática, ou seja, que menos mudaram desde o Último Interglacial, não são os espaços com maior diversidade genética. Somente duas espécies demonstraram ter essa relação proporcional: orquídea-da-praia e Petunia integrifolia subespécie depauperata, ambas da Planície Costeira. “Mais uma vez, cada espécie teve uma resposta diferente às mudanças no ambiente”, concluiu.

Para a bióloga, entender como a flora do Pampa reagiu a diferentes períodos climáticos é essencial para antecipar vulnerabilidades e enxergar possibilidades para resistir aos novos desafios gerados pelas mudanças climáticas. “Como as projeções do passado e do futuro indicam reações diferentes nas oito espécies, as soluções elaboradas precisam levar em conta as particularidades de cada ser vivo. Temos que pensar da menor plantinha até o bioma inteiro quando a gente fala em conservação.”

Riscos para outras espécies

A pesquisadora da Ufrgs reforça a interligação da vida para, mais uma vez, apontar os perigos do aquecimento global. “Se a gente pensar que uma espécie vai ser extinta do Pampa com o aumento da temperatura, todas as que dependem dela vão sofrer as consequências. É uma cadeia, então, se a gente tem uma desqualificação do solo, se a água começa a faltar, se uma abelha começa a sumir, teremos uma série de consequências”, enumera Isadora.

“E a gente tem que pensar sobre qual ambiente essas espécies vão encontrar ao migrar. Será um ambiente suficiente para elas, protegido? Então, não basta se adaptar ao clima, é muito importante a criação de unidades de conservação”, defende.

O bioma Pampa está restrito ao Rio Grande do Sul, onde ocupa 178.243 km² | Foto: Leandro Maciel

O aquecimento global ocasiona a perda do habitat da maioria das plantas estudadas nas projeções | Foto: Leandro Maciel

A Herbertia pulchella é encontrada na Serra do Sudeste e leste do Uruguai | Foto: Leandro Maciel A orquídea-da-praia (Epidendrum fulgens) é presente em todo o litoral do Estado | Foto: Leandro Maciel
Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895