Negócio criado a partir do Bolsa-Família

Negócio criado a partir do Bolsa-Família

Vera Lúcia Santos da Silva, que neste ano participou pela segunda vez da Expointer, construiu empreendimento de doces e salgados com poucos recursos, apoio da Emater/RS-Ascar e ancorado no esforço e na qualidade

Por
Patricia Feiten

Todo ano, milhares de pessoas lotam o Pavilhão da Agricultura Familiar, um dos espaços mais populares da Expointer, em busca de pães, queijos, salames, vinhos, sucos, doces, geleias e inúmeros outros produtos artesanais oriundos de todas as partes do Rio Grande do Sul. Por trás dos rótulos de apelo bucólico, estão não apenas sabores inconfundíveis, mas histórias comoventes e inspiradoras. Dos relatos de expositores participantes da última edição do evento, encerrado no final de semana passado em Esteio, emergem as imagens de agroindústrias criadas por pessoas unidas pelo mesmo sonho, motivadas pela necessidade de sobrevivência das famílias. Com gestão centralizada, elas enfrentam muitas situações de emergência no caminho rumo à prosperidade.

Produtora rural de Rincão do Segredo, no município de Almirante Tamandaré do Sul, Vera Lucia Santos da Silva (foto acima) é um desses exemplos de superação de dificuldades e sucesso. Mãe de dois filhos biológicos e dois adotivos, há quase 15 anos ela iniciou um negócio com parte do benefício do Bolsa-Família que recebia na época, de menos de R$ 200 mensais. “Era todo mês um calçado para um, outro mês um calçado para outro. Eu dizia para eles: ‘A mãe não pode comprar nada, vamos comprar farinha”, conta Vera. Hábil na elaboração de massas caseiras, ela passou a fazer pães e cucas e a vender para os vizinhos. Uma das filhas, que trabalhava em uma fábrica em Sarandi, levava parte dos itens e oferecia aos colegas de trabalho. “Eu vi que estava dando vantagem para mim. Começava minha produção às 4h da manhã e ainda tinha de cuidar de filhos pequenos e da neta. Todo dia entrava um pouquinho de dinheiro”, diz Vera.

Com o tempo, as encomendas foram aumentando e ela foi procurada por técnicos da Emater/RS-Ascar, que a incentivaram a formalizar o negócio, batizado de Doces e Salgados da Vera. A princípio, Vera não acreditou muito na ideia de transformar a cozinha doméstica em uma agroindústria. “Eles diziam: ‘Devagarzinho, vai ajeitando. A senhora é caprichosa, é bem detalhista, consegue produzir”, lembra. Dois anos depois, o empreendimento iniciado com poucos equipamentos começou a crescer. Hoje, a pequena panificadora tem fornos elétricos e a gás, cilindros de massas e freezers para armazenar os produtos. Além de fazer vendas diretas, fornece itens para programas de merenda escolar governamentais. 

No trabalho diário, Vera conta com a ajuda do filho Willian de Almeida Schmitz e da neta Rayssa da Silva Alves. Segundo a empreendedora, o espaço no Pavilhão da Agricultura Familiar da Expointer, do qual participou neste ano pela segunda vez, era o seu maior sonho. “Eu dizia: ´Um dia nós vamos estar lá. (A feira) é como se fosse uma safra para nós”, afirma Vera, que calcula ter preparado para o evento em torno de 3,5 mil salgados, como pizzas, doguinhos, pães de queijo e pastéis folhados. 

Segundo Douglas Cenci, coordenador da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf-RS), uma das entidades organizadoras do pavilhão, a presença no espaço carrega uma simbologia muito forte para esses empreendedores de pequena escala, que ali têm uma oportunidade de apresentar seus produtos a consumidores de outras regiões. “É o coroamento de um processo de construção, de superação de um conjunto de dificuldades, de entraves burocráticos, de questões econômicas. Em muitos casos, o fato de não ter inspeção que permita vender no âmbito estadual também limita (a expansão do negócio)”, observa.

Entre os agricultores familiares, afirma Cenci, são comuns os casos de agroindústrias que nasceram como uma forma de sobrevivência no meio rural e acabaram se tornando “grandes experiências”. “(Há) pessoas que encontraram na produção a superação de um processo depressivo, de doenças, que superaram mortes, que se motivaram a viver com o propósito de levar à frente a cultura produzida na família”, exemplifica. A pujança desse segmento do agronegócio o fez ser reconhecido pelo potencial de elaborar produtos de boa qualidade. “Acima de tudo, (as agroindústrias) mostraram que a agricultura familiar tem condição de produzir, que aquela imagem de que nós éramos o atraso, vistos como pessoas até sujas, (foi superada)”, diz o coordenador.

No Rio Grande do Sul, mais de 100 novas agroindústrias familiares são formalizadas a cada ano, segundo dados da Emater/RS-Ascar. A empresa de assistência técnica tem um papel decisivo no desenvolvimento desses negócios, a começar pela orientação aos produtores sobre questões sanitárias, ambientais e tributárias que precisam ser atendidas. “Hoje, para uma família fazer todas essas etapas, com a diminuição do número de filhos, do número de pessoas na propriedade, é um desafio”, diz a engenheira de alimentos e extensionista Bruna Bresolin, do Núcleo de Agroindústrias da Emater. “A Emater executa essa política pública, que é levar esses produtores para a formalidade, para que possam vender sem medo, tenham alimentos seguros.”

Bruna lembra que a origem de grande parte das agroindústrias gaúchas está ligada aos imigrantes e descendentes de alemães e italianos, que tinham o hábito de fazer alimentos aproveitando a matéria-prima existente nas propriedades rurais. “(Os produtores familiares) são vocacionados porque esses alimentos que produzem hoje para venda era o que fabricavam para consumo da família. São diferenciados porque são feitos com receitas passadas de geração em geração”, destaca.

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895