O que mudou na área da cultura com a Constituição de 1988

O que mudou na área da cultura com a Constituição de 1988

Texto tornou dever do Estado não apenas apoiar o setor cultural, mas também garantir o acesso à população às artes

Por
Mauren Xavier, Flávia Simões* e Carlos Corrêa

 A diferença é sutil, mas se há uma área em que a sutileza pode fazer toda a diferença é na cultura. Não que o tema não estivesse presente em Constituições anteriores, até porque estava desde 1824. O texto de 1967, aliás, parece ter destinado tão pouca importância que não alterou sequer uma vírgula em relação ao de 1946, mudou só o artigo. Era o 174, virou o 172. O texto, contudo, foi mantido: “O amparo à cultura é dever do Estado”. Simples e curto assim. Por isso, quando a carta de 1988, em seu artigo 215, assegura não apenas o pleno exercício dos direitos culturais, mas também o acesso da população “às fontes da cultura nacional”, uma vitória foi alcançada e um degrau enorme foi deixado para trás.

'É a primeira vez em que a relação de direito e dever é colocada de maneira bem premente'

“É a primeira vez em que a relação de direito e dever é colocada de maneira bem premente”, avalia Luiz Armando Capra Filho, mestre em Memória Social e Bens Culturais e diretor do Theatro São Pedro, entre outros espaços da Capital. Para ele, o principal ponto foi o ineditismo da Constituição em tratar a cultura como patamar de dever do Estado e, talvez ainda mais importante, um direito do cidadão. Ex-secretário-executivo do Ministério da Cultura e ex-secretário de Cultura de Porto Alegre, Vítor Ortiz corrobora a importância da inclusão do direito ao acesso à cultura e também enumera mais duas frentes essenciais naquele texto. A primeira é a garantia da liberdade de expressão artística que, dadas as décadas anteriores, não era pouca coisa. A segunda é a preservação do patrimônio cultural brasileiro em sua dimensão mais ampla que não apenas do arquitetônico. “São todas questões que eram bandeiras e se fortaleceram no ambiente de superação de combate à ditadura e abertura democrática”, avalia.

Constituição assegurou a liberdade de expressão artística a partir da sua promulgação / Crédito: Fabiano do Amaral

À consolidação de um novo patamar no conjunto de leis mais importantes do país, seguiu-se uma onda de medidas no mesmo sentido e, não por acaso, o Brasil testemunhou nos anos seguintes uma profusão de secretarias estaduais e municipais de cultura. Estavam estabelecidas as raízes para avanços maiores. Que não vieram tão rápido como poderia se imaginar. “Demorou para que outras questões fossem trazidas para dentro da Constituição. Demorou porque demora para amadurecer experiência de governo, o Estado demora para organizar sua política”, avalia  Ortiz.

'A ideia era criar um SUS da Cultura'

Foi apenas em 2012, com a instituição, por meio de uma proposta de emenda à Constituição (PEC), do Sistema Nacional de Cultura (SNC), que a área cultural se viu mudando de patamar mais uma vez em termos de lei. Vítor Ortiz busca uma comparação das mais acessíveis para tentar explicar a intenção do novo Sistema: “Ali surgiu a ideia de criar um SUS da Cultura”. “O SNC é uma das maneiras criadas para tentar dar conta desse exercício pleno dos direitos culturais. Os governos vão interpretando esse texto e, dentro das condições, tentam articular formas para que seja atendido”, explica Capra Filho. Mesmo assim, apesar de todos os estados terem aderido ao Sistema, 37,6% dos municípios ainda seguem de fora, de acordo com dados mais recentes do próprio SNC. “Não sei se é resistência, me parece que ainda é uma questão de reconhecer, conhecer. Os municípios precisam entender isso como uma sistemática benéfica e conhecer o processo burocrático”, avalia Capra Filho.

Daquelas linhas redigidas em 1988, ainda surgem planos de apoio às artes. Aprovada em 2022 pelo Congresso Nacional, a Política Nacional Aldir Blanc deve injetar R$ 3 bilhões no setor cultural, com recursos assegurados até 2027, quando se espera terem sido investidos R$ 15 bilhões. Há ainda a expectativa de que mais R$ 3,8 bilhões devam ser repassados aos entes federativos pela Lei Paulo Gustavo, para a aplicação em ações que busquem combater e mitigar os efeitos da pandemia de Covid-19 no setor cultural.

 

* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895