O que mudou na área da segurança com a Constituição de 1988

O que mudou na área da segurança com a Constituição de 1988

Carta inverteu papéis e repartiu responsabilidades, tornando o cidadão como elemento central a ser protegido

Por
Mauren Xavier, Flávia Simões* e Carlos Corrêa

Se a economia é o teto de vidro do governo federal, a segurança pública é o dos governos estaduais. Organizada conforme o artigo 144 da Constituição Federal, o tema vem sendo uma pedra no sapato dos governadores desde que o texto de 1988 foi promulgado. A causa é antiga e tem nome e sobrenome: período militar. Antes centralizada e “braço de apoio” do governo – autoritário, em mais de um momento da nossa história – a segurança pública não era, até 1988, estruturada com o objetivo de preservar o cidadão, mas sim reprimir aqueles que saíam da norma. A Carta Magna inverteu papéis e repartiu responsabilidades, deixando sob o guarda-chuva dos estados o dever de manter a paz e cuidar da população. E foi além, colocando o cidadão como elemento central a ser protegido após 20 de anos de repressão e possíveis abusos por parte do Estado. 

'A nossa derrota mais rotunda foi a questão da segurança pública, que trata das polícias e das suas atribuições. Foi um copia e cola de algo criado pela ditadura por decreto lei'

A medida foi colocada em prática antes mesmo da promulgação do texto de 1988, até porque, em âmbito estrutural, nada foi alterado. Ainda está mantida a mesma estrutura de polícia dos anos de autoritarismo, mas as responsabilidades migraram. Com as eleições diretas para governador, em 1986, o PMDB, à época partido de oposição dos militares que eram representados pela Arena, elegeu nomes nos principais colégios eleitorais do país. A esses gestores foi passada a missão de democratizar a segurança pública. E é justamente neste ponto que o período militar respinga. As polícias ainda carregavam pesados resquícios das duas décadas anteriores e, com esse quadro, o resultado foi inverso e a criminalidade ganhou força. O que deveria ser um tiro certeiro, saiu pela culatra. “A nossa derrota mais rotunda foi a questão da segurança pública (artigo 144), que trata das polícias e das suas atribuições. Foi um ‘copia e cola’ de algo criado pela ditadura por decreto lei. Até hoje isso é um problema, vide a atuação da polícia militar no 8 de janeiro”, lamenta  Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), ao recordar os ataques aos prédios dos Três Poderes em Brasília por grupos contrários ao resultado da eleição presidencial de 2022.

A partir dos anos 1990, foram criadas políticas para tentar reduzir os índices de criminalidade no país / Crédito: Mauro Schaefer

De 1988 para cá, eventos de impacto ocorreram, como o sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, para que o poder público compreendesse que a situação da segurança pública era urgente – e que a União não poderia se eximir de responsabilidade. No final dos anos 1990, foi criada a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). A pasta tinha como objetivo definir as responsabilidades que cada instituição e órgão tem dentro da segurança, além de promover políticas para redução dos índices de criminalidade. No final da segunda gestão do presidente Lula, foi criado o que seria o principal fruto da secretaria: o Pronasci (Programa Nacional de Segurança com Cidadania), que previa repasses da União para estados e municípios mediante a apresentação de projetos voltados para repressão e prevenção de crimes. A partir deste ponto, municípios e União entraram em cena na segurança pública – ainda que a Constituição limitasse essa atuação. As prefeituras começaram a criar secretarias para a área e, em 2014, essa atuação foi consolidada legalmente pelo Estatuto das Guardas Municipais e, em 2018, pela criação do Sistema Único de Segurança Pública. 

'É importante entender que o direito à segurança passa necessariamente por outros direitos. Questões como educação, saúde e recursos continuam sendo índices que aumentam a criminalidade. Quando não ausentes, esses serviços são essenciais para prevenção da violência e da criminalidade'

Por óbvio, os problemas não foram sanados por completo. O Brasil ainda padece de números alarmantes e, dia após dia, casos de abuso de poder por parte de integrantes da segurança pública são divulgados. Logo, fica evidente uma necessidade de aprimoração do sistema e, principalmente, o fim dos vestígios remanescentes de um período autoritário. “É importante entender que o direito à segurança passa necessariamente por outros direitos [...]. Questões como educação, saúde e recursos continuam sendo índices que aumentam a criminalidade. Quando não ausentes, esses serviços são essenciais para prevenção da violência e da criminalidade, especialmente a criminalidade organizada”, defende Ivan Pareta Júnior, presidente da Comissão Especial de Políticas Criminais e Segurança Pública (CEPCS) da OAB/RS. Apesar de cada estado e cidade ter a sua especificidade e fórmulas prontas não resolverem todos os problemas, alguns caminhos podem – e devem ser iguais. Aprimorar a cooperação e comunicação entre as instituições (guarda municipal, polícias militar e federal) é um desses caminhos; diminuir a cultura de violência dentro desses locais também.

Definição dos poderes e atribuições das guardas municipais ainda divide opiniões no Brasil / Crédito: Ricardo Giusti

Afinal, guarda municipal é polícia?

Motivo de embates judiciais e que divide opiniões, as guardas municipais ganharam, em agosto deste ano, o referendo do STF (Supremo Tribunal Federal) para atuarem com poder de polícia. Na prática, isso ampliou as suas competências, que agora podem ir além de zelar pelos bens públicos do município, mas também realizar operações, revistar os cidadãos em casos de possíveis suspeitas, cumprir mandados de prisão e realizar buscas domiciliares com amparo legal. 

Dentro desse cenário, os desafios não são pequenos e abrem, inclusive, brechas para possíveis distorções como se comparado a atuação das outras políticas. “Aí temos que pensar: bem elas (guardas municipais) vão ser uma polícia que vai reproduzir essa cultura autoritária ou vão ser polícia de um novo tipo, voltada à mediação de conflitos, à garantia de direitos e com os mecanismos de controle que efetivamente cumpram o seu papel de controlar o que acontece e responsabilizar os guardas quando acontecem abusos?”, questiona Rodrigo Azevedo, coordenador do Observatório de Segurança Pública da Escola de Direito da PUCRS.

'O guarda municipal precisa ter o treinamento, assim como os policiais, no sentido de saber quando utilizar a arma de fogo'

A medida, além disso, esbarra em desafios quando colocada em prática. Não que ações do tipo já não ocorressem por parte das guardas municipais. A diferença é que agora terão maior segurança para fazê-las. Entretanto, existe a necessidade de ampliar a comunicação com os outros agentes de segurança, e em especial a polícia militar, regida pelo Estado. Azevedo defende que é preciso reforçar o papel de cada instituição dentro do sistema tripartite, mas, principalmente, organizar ações de forma conjunta, a ponto que não ocorram conflitos entre Guarda Municipal e Polícia Militar. Portanto, se o norte é reduzir os números da criminalidade e aumentar a sensação de segurança da população, a integração e cooperação entre os órgãos é o caminho.

Além disso, o preparo é outro ponto crucial que precisa estar em constante aperfeiçoamento. “O guarda municipal precisa ter o treinamento, assim como os policiais, no sentido de saber quando utilizar a arma de fogo. Tem que ter condições de discernir, no momento de uma determinada situação, se ele vai utilizar ou uma arma branca, que é uma arma menos letal, ou a arma de fogo, ou a própria verbalização. Enfim, quando é necessário o uso da força”, explica Pareta.

 

* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895