O que mudou na área dos direitos com a Constituição de 1988

O que mudou na área dos direitos com a Constituição de 1988

Garantia da volta da democracia e da livre manifestação de pensamento foram marcas do texto

Por
Mauren Xavier, Flávia Simões* e Carlos Corrêa

Há uma distância de 164 anos entre a primeira Constituição brasileira, de 1824, e a mais recente, de 1988. Há também uma semelhança, uma palavra que as une. Somente nas duas cartas existe a palavra “tortura” na publicação original. Em ambos os casos, ela é condenada, ainda que apenas o texto do século XX considere a prática crime. A punição prevista aos seus autores pela Assembleia Nacional Constituinte formada em 1987 pode parecer óbvia aos olhos de quem a interpreta 35 anos depois. No final da década de 1980, no entanto, a conquista, muito além do campo objetivo, tinha uma simbologia que transcendia o Congresso Nacional: era um sinal inequívoco de que os anos de autoritarismo haviam ficado para trás. Dali em diante, os brasileiros teriam os seus direitos individuais assegurados. E não foram poucos os incisos no Artigo 5º para garantir isso.

Como em algumas outras áreas, muito do texto elaborado em 1988 tinha como parâmetro as duas décadas anteriores. No caso, era preciso tomar todos os cuidados para não repetir os erros do passado. “Havia muita expectativa. Era o momento em que se poderia banir muitas coisas que a ditadura havia implementado, inclusive a Constituição de 1967”, afirma Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). Presença frequente nos corredores e nos gabinetes do Congresso Nacional durante 1987 e 1988, ele lembra que apesar do vento de mudanças, as negociações nunca eram fáceis, visto que um lado mais conservador também se fazia presente nas disputas. “Atuamos muito durante a Constituição. Sempre tinha alguém em Brasília, era preciso sempre ter gente de todas as regiões para garantir a luta pelos direitos”, completa.

'O sigilo nas comunicações está estabelecido na Constituição de 1988. Só pode ser quebrado com uma autorização judicial. Até então, a gente era grampeado de tudo quanto era jeito'

O saldo neste sentido foi positivo. Se em outros temas como economia e trabalho há um intenso debate sobre o legado do texto de 1988, em relação aos direitos individuais e coletivos, a conclusão quase sempre é de que houve muitos avanços. Afinal de contas, foram assegurados por lei, entre outros, a livre manifestação de pensamento, a liberdade de consciência e de crença, o livre exercício de cultos religiosos, a inviolabilidade da intimidade, o acesso à informação, a criação de associações e o direito de reunir-se, pacificamente, em locais abertos ou públicos, independentemente de autorização, entre vários dos 77 incisos do artigo. “O sigilo nas comunicações está estabelecido na Constituição de 1988. Só pode ser quebrado com uma autorização judicial. Até então, a gente era grampeado de tudo quanto era jeito”, afirma Krischke, que ainda hoje se emociona ao falar daqueles dias e do livro. “Isso aqui é a nossa garantia contra o Estado. O nosso escudo como cidadão contra o Estado”, brada, levantando a voz.

Efetividade dos direitos conquistados ainda está longe do ideal

A inclusão de determinados temas na carta foi um avanço importante. Nem de longe, contudo, resolveu todos os problemas, mesmo os previstos ali. O racismo, por exemplo. Ele está no mesmo Artigo 5º, tornando a sua prática crime inafiançável e imprescritível. No entanto, basta acompanhar o noticiário para perceber o quanto a questão ainda está presente. “Existem cinco tipos de direitos fundamentais: civis, sociais, políticos, culturais e econômicos. Formalmente, não tenho nada a reclamar ou acrescentar à Constituição de 1988. A questão é a efetividade destes direitos”, afirma Jorge Terra, procurador do Estado/RS. Como exemplo, ele observa que sequer leis com viés cultural neste sentido são respeitadas. A Lei 9.394, de 1996, por exemplo. Em seu artigo 26, torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio no país. “Isso ainda não é cumprido. E nem fiscalizado”, aponta.

Texto de 1988 pavimentou o caminho para o combate ao racismo, mas nem todas leis se mostraram efetivas / Crédito: Rafael Neddermeyer

Em termos criminais, a Constituição de 1988 pavimentou o caminho, mas o racismo só passou a ser explicitamente crime no ano seguinte, a partir da lei 7.716/89, a Lei Caó. Até então, era considerado apenas uma contravenção penal, com gravidade bem menor. Foi preciso mais um punhado de anos até outra vitória neste sentido. “Foi só em janeiro de 2023 que os crimes de injúria e racismo foram equiparados”, lembra Jorge Terra. Outro avanço significativo ao longo destes 35 anos foi a política de cotas, promulgada em 29 de agosto de 2012, reservando 50% das vagas em universidades e instituições federais a alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas, com reservas de vagas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas a partir da proporção dos grupos na população total da unidade referida. Ainda assim, toda luta neste sentido é sempre cercada de muita resistência. “A questão é que tudo passa pela política. E como incidir na política com 2% de representação na Assembleia Legislativa, 5% no Congresso?”, questiona o procurador do Estado.

'Hoje, a gente não tem nenhuma legislação específica, o que tem são decisões da suprema corte garantindo direitos da população LGBT'

Se a luta contra o racismo é difícil, a contra a homofobia surge como uma tarefa tão complicada quanto. Até porque sequer está explícita no texto de 1988, quando o tema tinha uma dimensão menor que a atual. Na prática, é só a partir de 1990, quando a homossexualidade deixa de ser considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que a discussão passou a buscar um lugar na carta. “Hoje, a gente não tem nenhuma legislação específica, o que tem são decisões da suprema corte garantindo direitos da população LGBT, como a questão do casamento, direito à adoção, a criminalização da homofobia, a questão da retificação do registro civil de pessoas transexuais que veio a ser reconhecido em 2018 pelo Supremo. Então, tudo é muito recente quando a gente está falando de direitos LGBT”, explica Izadora Barbieri, advogada especialista na área. De qualquer forma, em termos práticos, foi a carta de 1988 que pavimentou o caminho para as (pequenas) conquistas desde então. “A Constituição é a maior garantia. Se alguma lei é criada e vai contra o que está lá, é inconstitucional. Os princípios que ali estão garantem a igualdade. Mesmo que ela não tenha nada expresso”, aponta Izadora.

* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895