O que mudou na relação entre os poderes com a Constituição de 1988

O que mudou na relação entre os poderes com a Constituição de 1988

Mesmo 35 anos depois, limitações e responsabilidades geram discussões entre os especialistas

Por
Mauren Xavier, Flávia Simões* e Carlos Corrêa

“São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Um dos artigos mais curtos da Constituição Federal de 1988 é a origem de uma das mais complexas e polêmicas discussões atuais: as limitações de cada poder. Afinal, o Judiciário pode tudo e está ultrapassando as suas funções? O Congresso Nacional é realmente o grande representante do povo e, logo, pode criar as leis que bem entender? Ou o presidente da República, cargo máximo do Executivo, deve ter autonomia para fazer o que quiser? 

As respostas, apesar da argumentação dos especialistas, não são simples e o ponto de partida é a concepção do texto de 1988, como o conceito do Estado Democrático de Direito, que, segundo o professor de Direito Constitucional Darci Guimarães Ribeiro, é a consolidação dos estados anteriores, neste caso o liberal e o social. “É uma consagração, um reconhecimento, porque nós temos liberdade individuais e garantias sociais. O democrático é um upgrade a esses dois estados anteriores”, pontua. Associado a isso, todas as interpretações da carta magna estão condicionadas ao artigo 3º, que define como objetivo do país a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. "Isto não é mero enunciado. Isto significa que tenho que olhar todos os dispositivos constitucionais a partir desta lente de contato. Porque quando eu tiver alguma dúvida para interpretar, por exemplo o direito à liberdade, tenho que voltar no artigo 3º e ver se esta interpretação é condizente com a concepção de sociedade livre, justa e solidária", explica.

Carta de 1988 procurou estabelecer de forma objetiva os papéis do Legislativo (foto), Executivo e Judiciário / Crédito: Jefferson Rudy / Agência Senado

E é para atingir esses os objetivos fundamentais que o Estado foi organizado com divisão de poderes. "(A Constituição) Procurou estabelecer qual é o papel do Legislativo, a grosso modo, criar a lei; do Executivo, aplicar a lei; e do Judiciário, fazer com que a lei seja cumprida. Criou-se vários artigos para delimitar isto. O que acontece, tecnicamente, é que às vezes os poderes não cumprem o papel reservado a eles pela Constituição", pondera Darci, citando uma série de questões que ainda não foram regulamentadas no país. Nesta mesma linha, a diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do RS (Ufrgs), Claudia Lima Marques, aponta a necessidade do fortalecimento do Parlamento para resolver determinadas questões sociais e assim reduzir decisões judiciais, como as jurisprudências: "O Parlamento brasileiro pode se manifestar para resolver (questões) e diminuir a conflitualidade no Brasil.” 

Enquanto isso, o descompasso atual faz com que recaia, na opinião dos especialistas, no Judiciário o palco de embates: "É onde bate tudo", resume Ribeiro, explicando que cada vez mais o Judiciário tem sido provocado e que precisa dar uma resposta quando isso ocorre. Ao concordar que a divisão dos poderes está bem clara na Constituição, a diretora da Ufrgs acrescenta que a carta magna  fortaleceu o Judiciário. Isso se deu basicamente em função de uma separação melhor das atribuições, com o reforço em outras frentes de atuação, como a Defensoria Pública e o Ministério Público, e de abrir espaço para a criação de outros órgãos, como a AGU (Advocacia Geral da União).

'O STF nunca entrava em discussões do poder Legislativo ou Executivo, toda vez que iam lá. E foram muitas vezes'

Porém, na opinião de alguns especialistas, o Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, como órgão máximo do Judiciário, neste contexto tem ultrapassado a linha tênue de divisão. Com a experiência de ter participado de muitas discussões da Assembleia Nacional Constituinte na década de 80, o jurista Ives Gandra Martins cita o fato de o STF ter historicamente se manifestado contrário a decidir sobre ações que envolviam outros Poderes, mesmo quando provocado, citando a posição do ex-presidente da Corte, José Carlos Moreira Alves. “Ele nunca entrava em discussões do poder Legislativo ou Executivo, toda vez que iam lá. E foram muitas vezes, dizer que não podia tal lei. Ele respondia que era matéria do Legislativo. Depois que aprovada a lei, a gente vê se ela pode ou não. Matéria do Executivo, é do Executivo”, recorda. E, com o tempo, isso mudou.

Segundo ele, um fator foi a substituição de ministros no início dos anos 2000. “Ali começou a mudança”. Na opinião dele, a partir dali os ministros passaram a adotar um papel mais político, deixando de ser um poder “técnico”. “(O STF) Ele passou a ser um terceiro poder político, com uma diferença, que o Legislativo e Executivo foram eleitos. E no Supremo é eleito por um homem só”, afirma, citando  o fato de os ministros do STF serem escolhidos pelo presidente da República. Essa concepção é compartilhada com o constituinte gaúcho Luís Roberto Ponte, um crítico da atuação atual do Supremo Tribunal Federal. “O que foi catastrófico foi ver esse super poder do Judiciário. Se você analisar no mundo todo. (...) Porque é um poder que não tem povo. E o poder é o povo”, afirma ele, que, se pudesse retornar aos anos 80 na Assembleia Nacional Constituinte, teria atuado nesta área. 

Responsabilidades do Supremo Tribunal Federal têm sido motivo de uma série de discussões entre juristas / Crédito: Waldemir Barreto / Agência Senado

As ameaças

Nos últimos anos, movimentos utilizaram a própria Constituição para colocar em dúvida a legitimidade da democracia brasileira. Alguns estudiosos, mais otimistas, consideram que o atual Estado Democrático de Direito e a divisão de poderes nunca esteve em risco. Mas a concepção não é unânime. “Nós da Faculdade de Direito nos manifestamos quando consideramos que havia risco e foi no 7 de Setembro do ano passado (2022). Então, em 11 de agosto, dia do Ensino Jurídico, fizemos uma Carta nos manifestando fortemente pela manutenção da democracia, do estado de direito e da nossa carta constitucional. Realmente consideramos que ela estava em risco. Que havia uma possibilidade de um golpe no país”, destaca Claudia Lima Marques. O movimento em questão, segundo ela, passaria pela intensificação do questionamento do processo eleitoral. Se a diretora considera que havia risco, o constituinte e ex-governador do Estado Olívio Dutra é mais enfático: “A democracia brasileira esteve ameaçadíssima”.

'A democracia brasileira esteve ameaçadíssima'

Independentemente do grau de risco, Claudia atribui essa discussão às recentes campanhas de desinformação sobre o papel das instituições. “Particularmente, acho que neste ponto os poderes de Estado é que têm que manter essa harmonia, esse respeito e essa atuação conjunta, como se viu depois do 8 de janeiro”, ressalta, lembrando da união dos chefes dos Três Poderes, após a invasão e depredação das sedes por grupos contrários ao resultado eleitoral do ano passado.

'As Forças Armadas não são um poder de Estado. Não existe essa figura do Poder Moderador na Constituição'

Uma dessas campanhas de desinformação concentrou-se na atuação das Forças Armadas. Estudioso da área da segurança pública, o professor da PUC-RS Rodrigo Azevedo detalha que o papel das Forças é o de defesa do país, do território e contra agressões externas. Porém, determinadas interpretações as colocam como um quarto poder. “As Forças Armadas não são um poder de Estado. Não existe essa figura do Poder Moderador na Constituição”, refuta Claudia Lima Marques. O general da reserva Sérgio Etchegoyen, que já atuou à frente do Gabinete de Segurança Institucional, ressalta nunca ter presenciado a discussão de um poder moderador a ser atribuído às Forças Armadas. “Iniciou-se uma discussão no final do governo (Jair) Bolsonaro que foi uma 'não-discussão'. Nunca participei ou ouvi essa discussão em ambiente nenhum, e olha que frequentei muitos ambientes como militar, no Alto Comando do Exército, nas escolas e nos comandos que comandei. Nunca vi essa discussão”, assegura. 

'Lula jamais falou que as Forças Armadas são golpistas, como o Bolsonaro jamais falou que tinha apoio dos militares'

Apesar disso, ressalta haver teorias neste sentido, como as apresentadas pelo jurista Ives Gandra Martins. Ele recorda que, como professor da Escola do Exército durante mais de três décadas,  sempre disse que, se houvesse um conflito entre Poderes e um deles recorresse às Forças Armadas, elas agiriam naquele ponto concreto que gerou o conflito. Não haveria destituição de Poder, explica ele. Complementa ainda que a interpretação tinha outro objetivo: garantir a manutenção da autonomia dos Poderes. "E ainda brincava, tenha absoluta certeza que nenhum poder, o Legislativo e Judiciário, já que as FAs pertencem ao Executivo, nenhum deles um dia irão às Forças Armadas para isso". 

Etchegoyen considera ainda que a discussão sobre as Forças está relacionada, em parte, à falta de conhecimento. E cita que existem três conceitos que são distintos e que foram misturados politicamente: o Ministério da Defesa, que é um ente administrativo, não constitucional; as Forças Armadas, que são instituições nacionais e permanentes; e os militares, que são cidadãos, que vivem sob regras específicas. “Na última campanha eleitoral presidencial, ficou muito claro isso. Nós todos vimos o (Jair) Bolsonaro instrumentalizando isso como apoio das Forças Armadas, quando ele se referia a isso. Tu vias do outro lado a campanha do Lula instrumentalizando o mesmo tema, dizendo que os militares são golpistas. Lula jamais falou que as Forças Armadas são golpistas, como o Bolsonaro jamais falou que tinha apoio dos militares", resume, detalhando as confusões e distorções sobre o tema.

 

* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895