O valor monetário da natureza preservada

O valor monetário da natureza preservada

O IGP-RS divulga, todos os anos, dados de áreas de desmatamento e a valoração referente aos laudos periciais do Rio Grande do Sul. Nos últimos 12 meses, o custo da degradação no Estado equivale a R$ 45,5 milhões

Por
Christian Büeller

A retirada da cobertura vegetal pode desencadear, dependendo de sua extensão, problemas como alterações climáticas, perda da biodiversidade e degradação de hábitats. No Brasil, a prática se tornou atividade criminosa com a Lei de Crimes Ambientais (9.605/1998). A partir de então, destruir, danificar, cortar árvores, desmatar, degradar ou explorar economicamente florestas sem a devida permissão ou sem observar as regras de proteção passou a ser passível de multa ou reclusão.

A lei determina que as perícias de cada Estado devem indicar o prejuízo causado pelo desmatamento, o que serve como base para o cálculo de multa e pagamento de fiança, além de fornecer subsídios para processos criminais e cíveis. Desta forma, a Seção de Perícias Ambientais do Departamento de Criminalística do Instituto-Geral de Perícias do Rio Grande do Sul (IGP-RS) divulga, todos os anos, os dados de áreas de desmatamento e valoração referente aos laudos periciais elaborados nos últimos 12 meses. É atribuído um valor de mercado às áreas desmatadas, chamado de valoração ambiental, que precifica o capital natural, ou seja, aquilo que temos de recursos naturais no mundo, como água, ar, solo e plantas.

Segundo 175 laudos expedidos entre setembro de 2020 e setembro de 2021 pelo IGP Ambiental, as áreas desmatadas analisadas no Estado, em um total de 359 hectares no período, equivalem a R$ 45,5 milhões de prejuízo à população. Esse seria o custo dos serviços ambientais prestados por esta vegetação, como manutenção do clima, controle da erosão e polinização da área. Para chegar a este valor, foram levados em conta o estágio de sucessão da vegetação (se a floresta estava em desenvolvimento inicial, médio ou avançado), o tipo de uso do solo na região (se a área era circundada por floresta nativa, se estava em meio a uma lavoura ou perto de um centro urbano) e a existência de restrições legais para a ocupação (área de preservação permanente, reserva legal ou unidade de conservação, por exemplo).

Somando os dez municípios que aparecem na lista dos mais desmatados (tabela na página seguinte), são mais de R$ 30 milhões de prejuízo. Um ano antes, foram analisados 105 laudos, entre setembro de 2019 e setembro de 2020, relativos a uma área de 158 hectares. O valor calculado pelo IGP foi de R$ 16,3 milhões. A perita criminal do IGP/RS Renata Cardoso Vieira ressalta que é inadequado comparar um ano com o outro, devido a uma série de fatores. “Um deles é a quantidade de laudos, em função do número de peritos que temos na seção, umas análises são mais simples que outras e levam menos tempo para serem elaboradas. O segundo motivo é que, dentro dos laudos deste ano não estão somente os de 2021, alguns documentos abrangem períodos maiores”, explica. Por isso, segundo a especialista, não é correto afirmar o número exato do prejuízo de um ano para outro. “Pode-se dizer o valor total estimado pelo IGP nestes dois anos”, completa.

Das 5.522 perícias realizadas pela Seção de 2004 a 2021, a maioria (41%, ou 2.178) referia-se a locais desmatados, principalmente no bioma Mata Atlântica. A poluição hídrica vem em segundo lugar, com 22% dos casos. Renata identifica como casos predominantes os desmatamentos de cortes rasos, feitos por agricultores no intuito de ampliarem lavouras. “Muitos dizem ainda desconhecer o assunto, sobre necessidade de licença, mas, quando conversamos com eles, nem sempre percebemos esse desconhecimento porque, mesmo informados pelas prefeituras, decidem cortar”, relata. A perita reconhece que as punições em leis ambientais são mais leves que em outros âmbitos. “Alguns produtores acabam pensando ‘se me pegarem, pago a multa e, em dois ou três anos, recupero esse dinheiro’”.

A visita do perito ambiental ao local denunciado é para comprovar se houve delito. “Verificamos quais os vestígios presentes naquele espaço, como era a área antes do crime. Utilizamos uma série de dados georreferenciados, com auxílio de outras ferramentas, como drones, por exemplo”, conta. O IGP também mantém contato com as secretarias municipais e a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) do Estado para conferir o licenciamento das atividades. “A partir dessas constatações, elaboramos os laudos periciais que vão retornar para quem os solicitou para dar encaminhamento nos inquéritos”, complementa Renata. “Após o laudo, com o prosseguimento do processo, serão definidos valores, tipificação e enquadramento do crime, e o acusado será chamado, aí não temos mais contato”, esclarece.

Renata frisa que o valor apontado como prejuízo não é referente à multa. “É uma estimativa do valor que estamos perdendo em relação aos serviços ambientais, o papel daquela floresta para nosso Estado. Com questões ambientais, fica mais fácil para a população entender se explicarmos de maneira econômica. O quanto eu tirar uma árvore de terminado local vai me representar um custo monetário. É um número subestimado porque qualquer metodologia de valoração ambiental, por melhor que seja, não consegue pensar em todos os aspectos complexos que a natureza tem.”

Região sul

Segundo o Relatório Anual do Desmatamento no Brasil 2020, produzido pelo MapBiomas, houve aumento de 150% nos desmatamentos na região Sul no último ano. Foram desmatados 9.622 hectares nos estados do Paraná, de Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Em 2019, esse número havia sido de 3.846 hectares. A atividade na região Sul concentra-se, predominantemente, nas áreas de Mata Atlântica: 86% da perda de vegetação nativa ocorreu nesse bioma, enquanto que os restantes 14% ocorreram no bioma Pampa. O Rio Grande do Sul teve perda de vegetação nativa de 2.165 hectares, o que corresponde a 23% do desmatamento detectado na região.

Metodologia catarinense para determinar valor

A metodologia escolhida pelo IGP gaúcho tem por base o trabalho desenvolvido pelo perito criminal João Pedro Pinheiro Vieira, de Florianópolis, Santa Catarina, sobre o custo de reposição da vegetação suprimida, que é levantado por meio de valores tabelados por órgãos oficiais e pesquisas de mercado. Para determinar essas medidas, são considerados alguns fatores de correção que levam em conta as perdas e/ou alterações nos serviços ambientais prestados pelo ecossistema florestal, como sequestro de carbono, proteção do solo, conservação da biodiversidade, controle do microclima, ciclagem de nutrientes e recarga de corpos hídricos. Também são considerados o estágio de sucessão da vegetação desmatada, o tipo de uso do solo predominante na região e a incidência de restrições legais, como áreas de preservação permanente e unidades de conservação.

A perita Renata Vieira lembra que a população costuma buscar respostas imediatas sobre questões ambientais, mas o prejuízo é calculado a longo prazo. Ela exemplifica lembrando que há áreas no RS, como nos municípios de Alegrete e Manoel Viana, na Fronteira-Oeste, em processo de desertificação. “Locais que já foram ocupados por vegetação e cultivo agrícolas, mas que, anos depois dessas interferências, estão ficando pobres em termos de nutrientes. Ainda não se entende o que, lá atrás, gerou o que está acontecendo agora. Não se tem essa dimensão instantaneamente quando se trata de meio ambiente, mas, com certeza, são alterações realizadas pelo ser humano.”

Segundo Renata, além de regiões abrangidas pela Mata Atlântica, perícias são feitas no bioma Pampa, mas os casos de desmatamento são bem inferiores, por causa das características dos dois biomas. “O Pampa tem mais campos nativos, onde ocorrem mais aterramento de banhados de áreas úmidas, emprego de fogo e outros tipos de crimes ambientais”, informa.

A profissional do IGP lamenta o déficit de pessoal no setor para dar conta de toda a demanda. Devido ao número de peritos (sete profissionais para o Estado todo), a fila aumenta, quase impossibilitando a análise de todos os locais denunciados. Em 2021, a média é de 60 a 70 solicitações de perícia por mês. Em março deste ano, 46 candidatos aprovados nos concursos 1 e 2 do órgão em 2017 foram nomeados. O próximo chamamento está previsto para março de 2022, quando deverão ser convocados mais 37 aprovados, segundo o IGP.

Drones funcionam como aliados para as perícias

A tecnologia serve como auxílio neste contexto de pouco efetivo profissional e muita demanda. Os peritos do IGP utilizam drones e imagens de satélite, além de dados da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Cadastro Ambiental Rural (Car). “Os drones ajudam muito. Antigamente, precisaríamos percorrer toda a área para detectar o tamanho de cada desmatamento. Hoje, conseguimos passar por uma boa parte, constatar os vestígios, sobrevoar a área com drone e fazer o que chamamos de ortomosaicos, que são mapas formados por inúmeras fotografias sobrepostas das áreas, com alta qualidade”, explica Renata.

Segundo ela, os equipamentos aceleram os processos de avaliação e com profundidade e definição antes inimagináveis. “Há lugares não acessíveis para levantarmos vestígios e que levaríamos muito tempo para fazer, como ribanceiras, barrancos, que não conseguiríamos transpor a pé”, diz a perita. Além disso, o IGP ambiental conta com a parceria do Programa Brasil M.A.I.S. (Meio Ambiente Integrado e Seguro) do Ministério da Justiça e Segurança Pública. “Com o convênio, utilizamos imagens de satélite da Planet, que chegam diariamente e nos ajudam muito e fortalecem nossos laudos”, conta. A plataforma Planet fornece imagens diárias de alta resolução de mais de 130 satélites. Com a pandemia, a tecnologia contribuiu ainda mais com o trabalho do IGP, que também tornou-se remoto.

Outra parceria, entre governo do Estado e Ministério Público, foi anunciada para qualificar as perícias ambientais. Foi assinado Termo de Cooperação para repasse de R$ 530 mil para aquisição de computadores, câmeras fotográficas, GPS e equipamentos para amostragem de solo e água. Uma compra importante do pacote foi do software Agisoft Metashape, que faz processamento das imagens coletadas pelo drone. “Esses equipamentos modernizam o trabalho, trazendo mais possibilidades de estudo e investigação”, afirma o chefe da Seção de Perícias Ambientais do Departamento de Criminalística do IGP, Pedro Bittencourt.

Produção e conservação no bioma Pampa

Apesar de sofrer menos com desmatamento por conta da predominância de campos, o Pampa é o bioma brasileiro que proporcionalmente mais perdeu vegetação nativa nas últimas três décadas. De acordo com dados do MapBiomas, o Pampa perdeu 2,5 milhões de hectares de área verde nativa entre 1985 e 2020, um decréscimo de 21,4%. Segundo a plataforma, um dos fatores por trás dessa perda está no avanço da agricultura, que ganhou mais de 1,9 milhão de hectares de lavoura nesse período.

“A substituição da formação campestre pela agricultura favorece a perda de biodiversidade e liberação de carbono na atmosfera, contribuindo para o efeito estufa. Mas é também um desvio de uma vocação econômica natural do Pampa”, alertou o professor da Ufrgs, Heinrich Hasenack. “No Pampa, a vegetação nativa é um pasto natural, o que permite que a pecuária se desenvolva preservando a paisagem”.

No Brasil, o Pampa está restrito ao Rio Grande do Sul, ocupando 63% do território gaúcho. Há também grandes extensões na Argentina e no Uruguai. Visando viabilizar a parceria entre preservação e produção, surgiu o projeto Alianza del Pastizal, iniciativa sul-americana liderada pela BirdLife International para a conservação dos campos naturais do Cone Sul. O Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) e o Sebrae/RS são parceiros do projeto, que compreende cooperação técnica e financeira para envolver, ao longo dos próximos dois anos, cerca de cem propriedades rurais em práticas sustentáveis no Pampa.

A cooperação técnica pretende atender diretamente um mínimo de cem produtores rurais organizados em grupos e, indiretamente, todos os membros da Alianza del Pastizal, que hoje são mais de 240 propriedades rurais, bem como novas propriedades que venham a ser certificadas. Além dos produtores, o projeto inclui ações como eventos, seminários e dias de campo, que permitirão expandir a abrangência de seus impactos.

Segundo Michael Carroll, especialista em manejo de recursos naturais e diretor-técnico da Alianza del Pastizal, a parceria é uma das mais interessantes formadas pela organização. “Fazemos um atendimento direto aos produtores e conseguimos trabalhar na sensibilização e conscientização do público em geral. A ideia é aumentar a capilaridade deste projeto no futuro”, ressaltou. Carroll destaca que, nas propriedades abrangidas pela Alianza no bioma, a biodiversidade é preservada, tanto na flora quanto na fauna. Mas, de forma geral, o Pampa sofre perda de área em virtude da conversão do espaço em lavouras.

Para a diretora-presidente do BRDE, Leany Lemos, a cooperação permitirá troca de experiência e assistência técnica, impactando cerca de 4 mil pessoas. “Vivemos uma mudança de paradigma no desenvolvimento global, onde produzir com sustentabilidade está na ordem central, com ações locais, mas com impactos no planeta. E o BRDE tem em sua missão o compromisso de apoiar a região, sempre alinhado com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e a Agenda 2030”, destacou a presidente.

Na visão do diretor-superintendente do Sebrae/RS, André Vanoni de Godoy, a parceria neste projeto “ajudará a desmistificar a ideia equivocada de que desenvolvimento e preservação são coisas antagônicas”. “O Sebrae tem a virtude de trabalhar com boas parcerias e essa contribuição ao bioma Pampa trará condições de melhorar a produtividade com a necessária proteção ambiental”, acrescentou. A ação compreende investimentos na ordem de R$ 350 mil nos dois anos de execução do projeto.

Ação em 17 estados

O Ministério Público gaúcho integra iniciativa que envolve 17 estados com a finalidade de identificar as áreas do bioma desmatadas ilegalmente nos últimos anos, além de interromper os atos ilícitos e responsabilizar os infratores nas três esferas. É a Operação Mata Atlântica em Pé, coordenada nacionalmente pelo Ministério Público do Paraná. Na edição deste ano, a ação identificou desmatamentos irregulares em 335,94 hectares de floresta em 24 municípios do Rio Grande do Sul. Foram aplicados mais de R$ 2 milhões em multas aos infratores.

O promotor de Justiça Daniel Martini, Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente (Caoma) do MP-RS, destacou também o uso da tecnologia. “Contamos com ferramentas tecnológicas que nos proporcionam alertas de desmatamento quase em tempo real e de forma bastante precisa. O uso da tecnologia nos aproxima das áreas, ainda que distantes, reduzindo custos de fiscalização”, disse. Nesta edição da operação, foram realizadas vistorias em 64 pontos. Equipes da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) e da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) participaram da operação.

O secretário da Sema, Luiz Henrique Viana, reforçou a parceria das instituições pela preservação do meio ambiente e lembrou que o Estado tem ampliado as políticas de educação e proteção ambiental, com foco na conscientização. “Não existe razão de ser dessa atuação de fiscalização se não for proteger a vida. E enquanto o homem, que é o grande beneficiário e ao mesmo tempo aquele que causa os maiores impactos na natureza, não se der conta, não teremos melhores resultados”, afirmou Viana.

A presidente da Fepam, Marjorie Kauffmann, ressaltou o incremento nas equipes da fundação envolvidas na operação, que pela primeira vez contou com o apoio das regionais e de outros departamentos, além do impacto positivo na ampliação das áreas fiscalizadas. “Ao longo dos anos nós ampliamos o número de funcionários envolvidos na operação e, consequentemente, vistoriamos mais hectares de área. Com relação a 2020, aumentamos em 20% o número de municípios vistoriados e em 73% a quantidade de hectares fiscalizados. Um grande esforço coletivo”, frisou.

Considerações sobre a legislação

Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente (Caoma) do Ministério Público gaúcho, o promotor de Justiça Daniel Martini faz um relato que corrobora com o depoimento da perita do IGP sobre a demanda de casos. “Já encaminhamos às promotorias de Justiça cerca de 941 análises de desmatamentos no Rio Grande do Sul, é muita coisa. Ainda restam, hoje em dia, 58 alertas para serem analisados”, informa.

Martini avalia a situação da legislação relativa ao assunto no país. “A legislação ambiental é bem confusa, repleta de situações não totalmente certas e vemos uma série de ataques que as próprias leis desta área têm sofrido no Congresso Nacional. O Código Florestal Brasileiro é um exemplo disso, afrouxou muito as punições, causando permissões no que diz respeito a desmatamentos. Essa legislação, que é de 2012, é a que mais retrocede quanto à proteção ambiental”, opina o promotor. O outro fator, segundo ele, é institucional. “É uma mensagem de permissividade que o governo federal passa ao não combater o desmatamento, ao esvaziar os órgãos de fiscalização, não dando condições de trabalho e estimulando a supressão de vegetação”, complementa Martini.

Há três anos e meio trabalhando na área, Renata Vieira se diz mais realista do que otimista quanto a uma mudança de cenário no meio ambiente brasileiro a médio prazo. “Às vezes, parece que estamos enxugando gelo. Tem crescido a preocupação ambiental, temos ouvido mais sobre sustentabilidade. Ao mesmo tempo, os órgãos ambientais estão mais fragilizados, falta gente para fazer uma fiscalização mais efetiva e periódica, às vezes se tem um técnico responsável pelo licenciamento de uma área muito extenso. É um contrassenso”, pontua a perita.

Renata destaca a importância da educação ambiental neste processo. “Temos biomas importantes que são diariamente afetados pela ação do homem. Quando se converte em valores monetários, as pessoas conseguem ver este impacto de uma forma mais real. Temos que dizer para a população o que está acontecendo na região onde moram. Este tipo de informação pode auxiliar as políticas ambientais que podem ser realizadas. Não podemos deixar que a realidade que encontramos nos abata para seguirmos fazendo a nossa parte”, salienta a perita.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895