Prejuízo em sequência

Prejuízo em sequência

Estiagem atingiu lavouras de milho e deve acarretar perdas na produção do Rio Grande do Sul

Por
Nereida Vergara

Pelo segundo ano consecutivo, os produtores gaúchos que investiram no plantio do milho irão contabilizar prejuízos. As lavouras da safra 2020/2021 implantadas no início da janela de semeadura, em agosto, são as mais atingidas e há registros de locais onde sequer vai ser necessário passar a colheitadeira, pois não haverá produtividade. Levantamento recente feito pela Rede Técnica Cooperativa (RTC), considerando 16 cooperativas e uma área plantada entre 260 mil e 300 mil hectares, apontou na segunda quinzena de novembro (última estimativa até o momento) que nas plantações de sequeiro a perda de produtividade pode chegar a até 60%.

O coordenador da RTC, Geomar Corassa, indica que a quebra é quase o dobro da registrada na última safra, segundo ele, porque as condições de estiagem se estabeleceram antes e atingiram o milho em suas fases iniciais. “Em boa parte das lavouras o milho sequer emergiu e, se emergiu, não, chegou a atingir seu estágio reprodutivo”, aponta o agrônomo. Corassa ressalta que o foco do levantamento feito pela RTC foram as plantações de sequeiro, mas diz que não se descarta algum nível de prejuízo nas lavouras irrigadas, em razão dos baixos níveis das reservas hídricas. “Soubemos de locais onde, mesmo com pivô, não foi possível irrigar a pleno pela falta d'água, mas estas eventuais perdas são difíceis de mensurar”, pontua.

A Emater/RS, a Associação dos Produtores de Milho do Rio Grande do Sul (Apromilho) e a Câmara Setorial do Milho da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr) corroboram esta projeção e suas consequências nas cadeias produtivas de proteína animal, como as de suínos e aves. Mesmo com o grão cotado em patamares altos - a saca de 60 quilos termina 2020 com preços acima de R$ 70,00, cerca de 50% a mais que no mesmo período do ano passado, segundo acompanhamento do Cepea/Esalq -, o crescimento estimado pela Emater para a área plantada no Estado, de 4,7%, chegando a 786,9 mil hectares, não se confirmou. Dos 5,9 milhões de toneladas de produção projetados pela Emater em outubro para a safra 2021, o Estado deverá colher entre 2,5 milhões e 3 milhões de toneladas, aumentando o déficit de oferta interna, historicamente de 1,5 milhão de toneladas, para quase o dobro.

O diretor técnico da Emater, Alencar Rugeri, reconhece que há regiões do Estado onde o prejuízo do produtor será de 100%, mas identifica que parte destes agricultores já está buscando refinanciamento da lavoura para fazer outro plantio, que pode ser milho ou soja (no caso de não terem usado herbicidas que necessitam de carência na semeadura inicial), de forma ainda a aproveitar o zoneamento agroclimático e conseguir colher alguma coisa em grãos de verão. “A eliminação das lavouras com perdas e o replantio podem alterar a área final destinada ao milho, dependendo da atitude que o produto tomar”, acredita Rugeri.

Ricardo Meneghetti, presidente da Associação de Produtores de Milho (Apromilho/RS) e da Câmara Setorial do Milho da Seapdr, afirma que deve ser mantida a mesma área plantada com o grão no Estado na safra passada, principalmente porque o milho exerce um papel fundamental na rotação de culturas e na produtividade da soja. “Infelizmente o produtor, de novo não vai poder aproveitar os bons preços, mesmo aquele que travou preços e fará uma colheita razoável, fez contratos por preços menores que os que estão sendo praticados agora”, comenta. Meneghetti destaca que os dois anos consecutivos de estiagem e a pandemia atrasaram o andamento do Pró-Milho RS, programa concebido pelo governo estadual em conjunto com o setor para levar o Rio Grande do Sul à melhora na produção. Ele ressalta, porém, que as medidas de socorro que estão sendo exigidas pela cadeia produtiva do milho para evitar o colapso das agroindústrias no ano que vem precisam ser atendidas pelos governos o mais rápido possível. “É preciso ampliar com urgência nossos recursos de irrigação, não só com investimentos mas também com a revisão dos licenciamentos para uso da água”, acrescenta o dirigente.

Análise do Cepea/Esalq dá conta que, entre 30 de outubro e 30 de novembro, as vendas locais de milho na região Sul diminuíram e o grão disponível superou a média de preço registrada no restante do país, acima dos R$ 70,00. De acordo com o Cepea, a maior parte do milho que ingressou na região no período veio do Mato Grosso do Sul, com preços em torno dos R$ 78,00 a saca de 60 quilos.

 

À espera de soluções

Foto: André Ávila / CP Memória

Desde o final de novembro, entidades envolvidas na cadeia do milho - Acergs, Asgav, Conab/RS, Emater/RS, Fiergs, Fetag, Mapa/RS, Famurs, Apromilho/RS, Farsul, Sips, FecoAgro, Acsurs e Seapdr - vêm debatendo a necessidade de adoção de políticas que minimizem no curto prazo e resolvam no prazo longo problemas considerados históricos na cultura, da produção aos consumidores. Dois pontos ganham maior destaque nesta discussão: a tributação e a irrigação. No que diz respeito aos impostos, a cadeia tem insistido na desoneração temporária do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), em nível federal; e no diferimento do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas operações de importação de milho, bem como a retirada do tributo cobrado sobre os equipamentos de irrigação, em nível estadual.

Segundo o diretor executivo do Sindicato das Indústrias de Produtos Suínos (Sips), Rogério Kerber, a tomada de decisão em relação ao imposto é muito importante, uma vez que o Rio Grande do Sul se aproxima, em 2020, da situação “seríssima” que se viveu na seca de 2012. Kerber pondera que, com a estimativa de perdas na safra de milho acima dos 50% no próximo ciclo, a necessidade do Estado de importar milho pode chegar a quase 4 milhões de toneladas para atender a demanda interna de 6,5 milhões de toneladas.

O presidente executivo da Associação Gaúcha de Avicultura (Asgav), José Eduardo dos Santos, diz que a situação atual e as perspectivas da próxima safra têm sido fonte de preocupação para a entidade. Santos salienta a importância da atuação conjunta da cadeia, no sentido de buscar alternativas para garantir o abastecimento das granjas. A crise do milho neste ano, diz ele, já fez com que parte das agroindústrias tenha diminuído em 10% a produção. “Se este percentual se expandir para todo o segmento no Estado, 82 milhões de aves poderão deixar de ser abatidas, considerando a produção do ano passado, de 820 mil abates”, calcula o dirigente.

A Asgav, assim como a Associação dos Criadores de Suínos do Rio Grande do Sul (Acsurs), defende a colocação de estoques de milho da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) no Estado para aliviar a situação de preços enfrentada pelas agroindústrias. De acordo com o superintendente regional da Conab, Carlos Bestetti, um pedido neste sentido, contemplando 12 mil toneladas do grão, já foi feito e está em andamento. O problema, afirma Bestetti, é que o produto pode levar até 60 dias para chegar ao Estado, não atendendo à urgência dos produtores neste momento.

Quanto à irrigação, a maior parte das entidades reclama de entraves nos projetos de licenciamento para o uso da água. Segundo elas, não é possível reservar água nas Áreas de Preservação Permanente (APP's), o que dificulta muito a implementação de áreas irrigadas. Em agosto passado, a Comissão de Agricultura, Pecuária e Cooperativismo da Assembleia Legislativa aprovou relatório da Subcomissão de Irrigação que prevê ações de enfrentamento de situações de estiagem. Entre as ações previstas no relatório estão a geração de energia elétrica de boa qualidade, a construção de reservatórios de água, a simplificação das regras de licenciamento ambiental, a declaração das atividades de armazenamento de água como de interesse social em APP's e a criação de linhas de crédito para investimento em equipamentos. Entretanto, conforme o autor do relatório na subcomissão, deputado estadual Elton Weber, já se passaram quatro meses e nada saiu do papel. Weber frisa que as propostas são práticas, mas que o Estado “está parado”. O presidente da Comissão de Agricultura, deputado estadual Adolfo Brito, garante que já foi pedida audiência com o governador Eduardo Leite para tratar do assunto, mas a solicitação ainda não foi atendida.

 

Impacto antecipado

Foto: Liseu Pinto / Divulgação

Com o plantio no Rio Grande do Sul praticamente encerrado, situações diversas se apresentam para os produtores de milho. Nas plantações de sequeiro, que correspondem a mais de 80% da área total de 770 mil hectares (4,7% a menos do que o projetado pela Emater/RS inicialmente), a perda de metade da safra já está consolidada, mesmo com a volta da chuva. No ano passado, o agricultor Liseu Soares Pinto, da localidade de Lajeado Bonito, em Santa Rosa, colheu uma média de 168 sacos de milho em suas lavouras de sequeiro. Apesar da estiagem, sua produtividade foi preservada, já que a ausência de chuva atingiu as plantas num estágio mais avançado e menos danoso. Neste ano, nos 22 hectares plantados com o grão - 25% da área total da propriedade é reservada para o milho anualmente, em rotação de cultura com a soja -, vai colher, em média, cinco sacos por hectare. “Podemos dizer que a safra está perdida”, reconhece Pinto, segundo o qual a falta de água se deu nos quinze dias anteriores e posteriores ao pendoamento das plantas, atrofiando o desenvolvimento.

O produtor é um dos quase 1,7 mil agricultores que já encaminharam à Emater/RS pedidos de utilização do Proagro, o seguro destinado à agricultura familiar. “Nós conseguimos fazer os tratos iniciais corretos, usamos boa adubação e boas sementes, mas no momento em que a planta necessitava de água para ter os nutrientes, não choveu”, lamenta. Liseu Pinto afirma, porém, que o produtor de milho da Região de Santa Rosa viveu uma sequência de anos bons, interrompida pela estiagem do ano passado, e não esperava que o fenômeno La Ninã atingisse o Estado tão fortemente.

A maior preocupação, agora, de acordo com Pinto, é solucionar os contratos efetuados no mercado futuro. Ele vendeu 33% da safra antecipadamente e aguarda o posicionamento das empresas onde travou preços para saber qual será a conduta, uma vez que não haverá grão para entregar. O produtor garante que não tem condições de arcar com o pagamento da diferença entre a data do contrato e o preço da cotação no dia marcado para o milho ser entregue. Ele aposta no bom relacionamento com as empresas de compra e relata que algumas já estão fazendo perícia nas áreas plantadas atingidas pela estiagem. “As compradoras sabem que não houve má fé dos produtores e farão relatórios para que se encontre a melhor saída”, completa.

A Emater estima que na região de Santa Rosa, composta por 45 municípios, pelo menos 22 mil agricultores plantem milho, a maior parte deles em áreas entre 3 e 5 hectares.

 

Risco menor com irrigação 

Foto: Liseu Pinto / Divulgação

O investimento em irrigação tem sido defendido pela cadeia do milho já há alguns anos. O governo do Estado, desde 2019, vem tentando implementar o programa Pró-Milho RS, que, entre suas prioridades, tem a facilitação dos processos para que o produtor possa implantar pivôs nas suas lavouras, diminuir os riscos da cultura e aumentar a produtividade, de forma a tornar o Rio Grande do Sul autossuficiente na produção. A pandemia, no entanto, atrasou as ações do programa, que em 2020 só conseguiu se comunicar com os produtores de forma virtual.

O presidente da Federação das Cooperativas Agropecuárias do Rio Grande do Sul (FecoAgro/RS), Paulo Pires, chama a atenção para a experiência de São Luiz Gonzaga, nas Missões. Segundo ele, em 2012, uma iniciativa da Cooperativa Tritícola São-luizense (Copatrigo) reuniu 25 produtores de milho para explicar os fundamentos da irrigação e mostrar que era possível a adoção da tecnologia. “Reunimos produtores, pesquisadores, empresas do ramo de irrigação e instituições financeiras e provamos para o agricultor o ganho que a mudança de conceito traria”, lembra Pires. O dirigente garante que o município saiu de uma posição insignificante na produção de milho e está hoje entre os cinco maiores produtores do grão no Estado, além de ser um dos mais significativos polos de irrigação. “Temos, hoje, em São Luiz, cerca de 22 mil hectares de irrigação, 80% mais que em 2012”, comemora.

Valdinei Donato foi o primeiro produtor na região de São Luiz Gonzaga - sua propriedade fica em São Nicolau, ao lado do município - a implantar a tecnologia de pivôs, ainda no ano 2000. Em 2020, a propriedade atingiu a marca de 20 pivôs, com 1,1 mil hectares de lavouras irrigadas, dos quais 700 hectares com o milho. No total, a propriedade de Donato, que também é produtor de sementes de soja e trigo, tem 3,2 mil hectares, complementados com o plantio de soja em sequeiro. “Hoje nós não plantamos mais milho no sequeiro”, diz o produtor, para quem o conhecimento da tecnologia afastou os riscos da cultura e tem garantido produtividades em torno dos 300 sacos de grão por hectare.

Para Donato, a adoção dos plantios irrigados a partir de 2012 não mudou apenas a performance das lavouras de milho, mas ajudou a região como um todo, atraindo empresas dos ramos de máquinas agrícolas e logística, entre outras. Ele acredita que a área irrigada hoje em São Luiz e arredores, de 22 mil hectares, 18 mil dos quais voltados para o milho, pode ser muito maior. “Se a gente pensar que a abrangência da Coopatrigo chega a 300 mil hectares de plantações, 22 mil hectares irrigados é muito pouco, podemos tranquilamente chegar a 20% da área da cooperativa sem dificuldades”, comenta. Na opinião do agricultor, agrônomo dedicado ao plantio de grãos de 1993, as condições climáticas e geográficas da região missioneira são propícias ao plantio de uma segunda safra de milho, o que hoje ainda não ocorre.

De Palmeira das Missões, maior produtor de milho do Rio Grande do Sul, o produtor José Pagliarini, considera que o investimento feito em irrigação nas suas áreas de plantio, em Palmeira das Missões e Condor, fez diferença na rentabilidade nos últimos dois anos. Entre 2013 e 2018, os cinco anos que antecederam as estiagens de 2019 e 2020, Pagliarini observa que o desempenho das lavouras irrigadas e de sequeiro foi muito parecido. Neste ano, o produtor semeou 450 hectares de milho irrigado e 150 hectares em sequeiro. “No milho irrigado a produtividade vai ser de 100%, acima de 240 sacos por hectare”, projeta. Nas lavouras sem pivô, ele já calcula a perda de pelo menos 50% da produtividade esperada, de 180 sacos por hectare.

 

Rapidez na busca de direitos

O produtor rural atingido pelas perdas no milho, seja no plantio ou na pecuária leiteira (dependente do milho silagem para a alimentação do rebanho), pode buscar medidas de proteção ao seu patrimônio enquanto aguarda as medidas de socorro do governo. A recomendação é do advogado Francisco Buss, do escritório HBS Advogados.

O especialista afirma que o agricultor ou pecuarista deve providenciar a comprovação e quantificação dos seus prejuízos na lavoura ou na pecuária através de laudo técnico elaborado por engenheiro agrônomo ou médico veterinário responsável. Com isso, pode requerer a renegociação dos vencimentos dos contratos de crédito com base no Manual de Crédito Rural.

Buss explica que, se o contrato tem a cobertura de seguro agrícola ou Proagro, o produtor deve fazer a comunicação por escrito das perdas à seguradora ou ao banco, nos termos contratados. Nestes casos é importante que o produtor, além do laudo agronômico de constatação das suas perdas, mantenha arquivados os demais documentos que comprovam os recursos aplicados na lavoura. “Tais documentos serão necessários caso o produtor seja obrigado a iniciar a colheita antes da vistoria”, adverte.

O advogado esclarece que, verificada e comprovada a incapacidade de pagamento, seja parcial ou integral em decorrência das perdas provocadas pela estiagem, é recomendável que o produtor, antes do vencimento, encaminhe notificação ao credor requerendo a necessidade de renegociação do contrato.

“Recomenda-se que os produtores adotem com a devida antecedência as providências no intuito de tentar renegociar extrajudicialmente os contratos”, ressalta. Ele aconselha, ainda, que o produtor deve se antecipar e buscar na via negocial ou judicial o seu direito, jamais permanecendo inerte diante da inadimplência. 

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895