Racismos que fazem a estrutura

Racismos que fazem a estrutura

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas trouxe para o debate público questões sobre o racismo que nem sempre são levantadas

Por
Sidney de Jesus

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, pelos seguranças de um loja do hipermercado Carrefour em Porto Alegre, trouxe várias reflexões acerca da relação entre racismo e direito. Nelas, entram aspectos como os vários tipos de racismos e como correlacioná-los às diferentes formas de agressão que a população negra sofre no Brasil.

Na avaliação do mestre e doutor em Direito pela Ufrgs, advogado Lúcio Antônio Machado Almeida, a morte de João Alberto Silveira Freitas faz parte de uma estrutura maior, que combinada com os aspectos econômicos, históricos e políticos definem o que é ser negro no Brasil. Segundo ele, Beto foi vítima de racismo institucional. “O caso seria de racismo estrutural, contudo, para o enquadramento penal adequado, penso que a linha de racismo institucional é a mais pertinente, devido às práticas não isonômicas das nossas instituições para com a população negra”, destaca o advogado. 

O doutor em Direito pela Ufrgs Lúcio Almeida avalia que, em um primeiro momento, os responsáveis diretos pelo assassinato de Beto foram os seguranças agressores, mas pode haver irregularidades na contratação da empresa de segurança e também a responsabilidade do Estado na fiscalização das contratações irregulares. “Quem aparelha a iniciativa privada de privilégios de espaços e tributos e não cobra uma política de ações antirracistas? O Estado. João foi vítima de racismo institucional, pois a relação é entre o sujeito negro e o papel do Estado”, enfatiza Almeida. Ele destaca que várias empresas de diversos campos de atuação seguem o mesmo modelo. O número de negros e de brancos agredidos por uma determinada rede de supermercados, por exemplo, pode ajudar a definir se é racismo institucional ou não, “ou seja, existe uma prática diferenciada em razão da raça”. Almeida defende que para não se configurar crime de racismo, a empresa de segurança teria que demonstrar que, nas mesmas circunstâncias, uma pessoa branca também foi morta. 

O racismo que modela a sociedade 

Por mais que as leis garantam a igualdade entre os povos, o racismo é um processo histórico que modela a sociedade até hoje. O racismo estrutural reforça o fato de que há sociedades estruturadas com base na discriminação que privilegia algumas raças. No Brasil essa distinção favorece os brancos e desfavorece os negros e indígenas. Almeida lembra que uma lei determinou o fim da escravização de negros, mas seus efeitos ainda são sentidos na vida da população negra. “O descaso e a falta de visibilidade dos casos de homicídio de negros evidenciam o racismo no Brasil. No fim, somos todos Beto. A diferença é que não nos tiraram a vida ainda. O racismo nos mata todos os dias”, afirma o doutor em Direito pela Ufrgs Lúcio Almeida.

“O racismo pode ser, dentre outras formas de classificar, racismo individualista, institucional e estrutural”, afirma o Procurador do Estado, doutor em Direitos Humanos e membro da Diretoria de Direitos Humanos da Associação dos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul (Apergs), Carlos D’Elia. Sobre o racismo institucional, ele destaca que é possível perceber que o racismo não é algo que ocorre apenas por comportamentos de algumas pessoas ou grupos, mas está presente em todas as instituições, em como elas são criadas e como se organizam e funcionam.

Ele ressalta que as instituições permitem, assim, que as várias formas de discriminação e de exclusão das pessoas não brancas em todos os setores, político, econômico e social, prossigam existindo e se reproduzindo. 

O procurador afirma ainda que todas as instituições do Estado, a economia e o funcionamento da sociedade atual têm organizações e funcionamentos discriminatórios e excludentes que são normalizados. “Se formos ver mais profundamente, é ‘normal’ que as pessoas negras sejam sempre suspeitas, que não possam frequentar lugares, não tenham o mesmo acesso à educação, moradia, empregos e, por mais qualificadas sejam, que não ocupem lugares de poder, que sejam objeto de piadas, que sejam desqualificadas e, até mesmo, que sofram violência física.”

D’Elia destaca também a invisibilidade como uma das formas mais perversas do racismo estrutural. Ele lembra que milhares de pessoas negras são mortas todos os anos, especialmente jovens negros, mas mulheres negras também. De fato, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2020, 79,1% das vítimas de intervenções policiais que resultam em morte são negras. O estudo registra, ainda, que os negros representam 74,5% das vítimas de homicídio doloso, 68,3% de lesão corporal seguida de morte, 55,8% das vítimas de latrocínio, 74, 4% da violência letal e formam 66,7% da população carcerária do país. A pesquisa foi divulgada na sexta-feira, 20, data que marca o Dia da Consciência Negra. Os números dizem respeito às mortes ocorridas em 2019 em todo o Brasil. Quando o recorte de gênero é feito, a desigualdade também é evidente. Das mulheres vítimas de feminicídio em 2019, 66,6% são negras. As estatísticas também mostram que mulheres negras são mais assassinadas. Nos últimos dez anos, a taxa de homicídio entre negras aumentou 12,4%, enquanto que a de mulheres não negras caiu 11,7%. Para Carlos D’Elia, o caminho para que diminuam as estatísticas de violência contra os negros passa por uma profunda revisão nas instituições públicas e privadas nas políticas inclusivas, além da revisão da educação com a inclusão de estudos em todos os campos que resgatem a história e a cultura dos negros e negras. “As pessoas brancas têm que enxergar definitivamente a negritude e abdicar dos privilégios. Na verdade, terminar com privilégios porque, de regra, os privilégios são brancos.”, destaca. 

O procurador lembra que no Comitê Estadual Contra a Tortura e no Conselho Estadual de Direitos Humanos, chegam com frequência notícias e informações das mais cruéis práticas, mas raramente são levadas adiante. “Por quê?”, questiona Carlos D’Elia. Para ele, é porque o denunciante tem medo e entende que as instituições não funcionam como deveriam para coibir tais práticas. “Não funcionam porque foram construídas para serem assim. A invisibilidade será ainda maior, mas a invisibilidade dessa violência toda é uma das formas de ser do racismo estrutural”, acrescentou.

“Ainda não há previsão de sanção penal para empresas por motivos de racismo”, afirma D’Elia. De acordo com ele, o caso de João Alberto está sendo acompanhado por uma Comissão na Câmara dos Deputados no Congresso Nacional. “Há a intenção de ser apresentada proposta de aplicação de sanções econômicas às empresas que permitirem práticas racistas, e da criação de uma lista de empresas envolvidas com situações de racismo a ser divulgada até internacionalmente”, informa. Ele lembra como é difícil lutar contra o racismo estrutural e como o racismo institucional funciona. Ele citou exemplos de iniciativas como a da loja Magazine Luiza e as políticas de cotas raciais. “A Magazine Luiza criou mecanismo de seleção específico para postos de gerência, de caráter inclusivo para diminuir as desigualdades para pessoas negras, e foi questionada e apontada até como ‘racismo reverso’. Já as políticas de cotas raciais também foram questionadas até judicialmente, e quando introduzidas, deu ensejo a inúmeras manifestações racistas”, lembra, ressaltando que “qualquer sanção penal que seja criada não poderá ser aplicada ao Carrefour porque a lei penal não pode retroagir”.

“Embora o Brasil seja um país miscigenado, a desigualdade racial é latente, no qual as pessoas brancas são privilegiadas social e economicamente e não sofrem discriminação pela cor da sua pele”, afirma a advogada e mestranda em Direito pela Unisinos, coordenadora do GT Pesquisa Antirracismo OAB/RS e do Grupo Afro Juristas-RS, Patrícia da Silveira Oliveira. 
O jornalista e escritor Oscar Henrique Marques Cardoso, representante de movimentos negros e da ONG Grupo Multietnico de Empreendedores Sociais do RS, entende que a luta contra o racismo e a violência contra os negros está longe de acabar. Segundo ele, o Estado como instituição está longe de promover políticas públicas para garantir a promoção da igualdade racial. “Não há verbas, não existem projetos e não há fortalecimento institucional dos conselhos. Os Direitos Humanos estão adormecidos nas pastas públicas. Os movimentos sociais gritam, mas pouca coisa é acolhida pelos entes governamentais”, reclama.

Empresas de vigilância 

Após a repercussão da morte de João Alberto, o subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Marcelo Lemos Dornelles, afirmou que foi instaurado inquéritos civis nas áreas da Cidadania e Direitos Humanos para tratar de políticas públicas afirmativas. “Essas políticas devem ser construídas. Também teremos que dar uma olhada em relação à fiscalização das empresas privadas de segurança, tanto no nível estadual quanto o federal”, destaca. <TB>A advogada Camila Mendes, pós-graduada em Direito Público pela Ufrgs, salienta, ainda, que deve haver uma melhor preparação dos empregados da área de segurança para evitar abordagens como a que aconteceu com João Alberto. 

Políticas públicas em prol da população negra

De acordo com a advogada e mestranda em Direito pela Unisinos, coordenadora do GT Pesquisa Antirracismo OAB/RS e do Grupo Afro Juristas-RS, Patrícia da Silveira Oliveira, para que os números da desigualdade racial diminuam é necessário o predomínio do “pensamento decolonial” e o rompimento com o sistema do racismo estrutural, institucional, discriminatório e preconceituoso. “Enquanto sociedade devemos adotar a cultura de um comportamento consciente, antirracista e empático com a causa”, afirma. Ela enfatiza ainda que o Estado deve ter o comprometimento efetivo por parte de seus governantes para avançar com políticas públicas eficazes na economia, educação, segurança pública e saúde em prol da população negra. “Embora a população negra tenha obtido alguns avanços nos últimos anos, ainda está longe de podermos dizer que há igualdade de direitos.” 

Formas de Racismo

Racismo Direto

Pode ser especificado e distinguido dos demais tipos de preconceito por se tratar, especificamente, da questão de raça. Além de ser uma forma de preconceito, pode manifestar-se por meio de ação discriminatória. Também pode ocorrer quando há aversão, subjugação, inferiorização ou um domínio de poder da parte da classe a que pertence aquele que pratica a ação preconceituosa.

Racismo Institucional

Mais difícil de identificar, pois a ação racista nem sempre é explícita e, muitas vezes, é assumida como parte de um protocolo de ações gerais da instituição, quando, na verdade, a ação só é aplicada contra pessoas negras ou indígenas. Pode-se utilizar como exemplo as abordagens truculentas de policiais contra negros e até assassinatos de negros desarmados e rendidos em algumas situações específicas.

Racismo Estrutural 

Algo que está, de algum modo, preso às estruturas da sociedade. Forma de racismo de difícil percepção. Podemos identificar como característica dessa forma de racismo o fato de que pessoas negras ganham menos que pessoas brancas. Também encontramos entre a população negra uma menor escolaridade.

Legislação

Em 1989, as questões raciais passaram a fazer parte do Código Penal Brasileiro devido à pressão de movimentos identitários que reivindicaram o preceito de igualdade exposto na Constituição Federal de 1988. A lei nº 7.716 tornou crime qualquer atitude de discriminação, preconceito ou incitação ao preconceito por motivação racista. Essa lei foi um importante passo para a luta contra o racismo no Brasil, pois prevê penas de até cinco anos para quem se utilizar de critérios de separação de raça e etnia para fornecer ou negar serviços públicos e privados, selecionar candidatos para vagas de emprego ou, no caso da possível pena máxima, utilizar-se de veículos de comunicação para disseminar mensagens racistas.

Fonte: https://www.preparaenem.com/sociologia/racismo.htm

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895