Trigo transgênico é alternativa à falta d’água

Trigo transgênico é alternativa à falta d’água

Ainda em testes e sem produção em escala comercial no Brasil, tecnologia promete melhorar produtividade em regiões mais secas do país e diminuir a dependência da indústria moageira de importação do cereal argentino

Por
Patrícia Feiten

Anunciado no início deste mês pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNbio), o sinal verde para o cultivo e para a venda de trigo geneticamente modificado tolerante à seca no país trouxe a promessa de um grande salto para a triticultura frente um cenário de preocupações com efeitos das mudanças climáticas, como estiagens, e a oferta de global alimentos, impactada pela guerra entre Rússia e Ucrânia. Com a medida, o Brasil se tornou o segundo depois da Argentina a liberar o uso da variedade transgênica HB4, desenvolvida pela empresa argentina Bioceres e apresentada pela parceira Tropical Melhoramento e Genética (TMG). Embora a aprovação não signifique que o cereal estará disponível para produção em escala comercial em curto prazo, a expectativa é que a nova tecnologia possa reduzir a dependência brasileira do grão importado – hoje, a indústria moageira compra do país vizinho metade do trigo que consome. 

Se adaptado às condições locais, o cereal modificado beneficiará os agricultores da região do Cerrado, onde o inverno seco representa um  entrave para a expansão das lavouras de trigo. Em parceria com a Bioceres, a Embrapa vem testando cultivares transgênicas desde março do ano passado, em um campo experimental de 70 metros quadrados no Distrito Federal (foto acima). Com a autorização do cultivo do HB4 no país, os experimentos poderão ser estendidos a outras regiões, acredita o chefe-geral da Embrapa Trigo, de Passo Fundo, Jorge Lemainski. “Estamos dando os primeiros passos, avaliando como essas plantas se comportam no ambiente do Brasil sob déficit hídrico. Ainda não temos resultados, mas a expectativa é de que em quatro, cinco anos a gente possa ter algo mais significativo e, se positivo, chegar à produção de sementes com esse propósito”, explica o pesquisador.

Por sua resistência ao estresse hídrico, o trigo transgênico ofereceria mais segurança para o plantio de culturas complementares, semeadas após a colheita da soja e do milho no Centro-Oeste brasileiro, a chamada safrinha. “E isso converge para os propósitos de o Brasil ampliar sua área de cultivo na área de sequeiro”, destaca Lemainski.
Um das principais empresas privadas de melhoramento genético de trigo, a Biotrigo, de Passo Fundo, acompanha com interesse o trabalho da Bioceres. O melhorista André Cunha Rosa, sócio-diretor da empresa, observa que experimentos com o cereal geneticamente modificado não são novidade no mundo. No início dos anos 2000, a multinacional norte-americana Monsanto – depois adquirida pelo grupo alemão Bayer – chegou a desenvolver uma versão de trigo tolerante ao herbicida Roundup, mas acabou engavetando o lançamento comercial por pressão de agricultores, que temiam boicote por parte de compradores externos. “Tecnicamente, não era difícil aprovar nenhum transgênico. O desafio é mercado. Existem mercados para os quais o Rio Grande do Sul exporta que não aceitam transgênicos”, pondera Rosa.

Variedade resiste ao glufosinato

De acordo com a Bioceres, o trigo transgênico HB4 é resistente à seca e ao herbicida glufosinato. O material foi desenvolvido a partir da introdução de um gene nativo do girassol e demonstrou uma produtividade média mais de 40% superior à das principais variedades comerciais convencionais na safra 2022/2023 em áreas testadas na Argentina. Grande exportador de grãos, o país vizinho enfrenta uma das secas mais severas de sua história. A Bolsa de Cereais de Buenos Aires projeta que a produção de trigo deve cair para 12,4 milhões de toneladas, ante 22,4 milhões da safra anterior. Além do Brasil, o HB4 foi aprovado na Colômbia, na Austrália e na Nova Zelândia. Nos Estados Unidos, o produto recebeu o aval da FDA, a agência reguladora de alimentos e medicamentos, e aguarda a liberação do Departamento de Agricultura do país (USDA). 

Na avaliação do melhorista, a permissão para o cultivo do HB4 no país abrirá caminho ao desenvolvimento de outros materiais transgênicos, se comprovada a eficiência da tecnologia argentina. “Ainda não há variedade para ser plantada no Brasil. Se isso vai ter futuro no país, vai depender de quão bom é o gene, de quão bons forem os acordos que a Bioceres vai fazer (com obtentores vegetais)”, exemplifica Rosa. 

A discussão sobre o trigo geneticamente modificado se intensificou em novembro de 2021, quando a CTNbio autorizou a importação da farinha produzida com o material transgênico argentino. A medida gerou forte reação de entidades da indústria, que posteriormente mudaram sua posição. “Passado mais de um ano da aprovação da importação de farinha de TGM (HB4), não ocorreram manifestações contrárias, e pesquisas realizadas no período deram sinais de que os consumidores brasileiros não se opunham ao uso de transgênicos”, disse o presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), Rubens Barbosa, em nota. Segundo o dirigente, a liberação traz tranquilidade ao mercado e resolve o “risco de conflitos regulatórios”, já que a importação da farinha havia ocorrido antes mesmo do aval para o uso do trigo HB4 no país. 

A Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (Abimapi) também aprovou a recente decisão da CTNbio. “Após encomendarmos uma pesquisa especializada, constatamos que mais de 70% dos consumidores já consomem alimentos transgênicos ou irão consumir sem nenhuma restrição”, disse, em nota, o presidente-executivo da entidade, Claudio Zanão. Para o empresário, a variedade mais resistente à seca ampliará a produção e a oferta do grão no Brasil.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895