Frieza dos réus e olhar triste de Bernardo marcaram promotora do caso

Frieza dos réus e olhar triste de Bernardo marcaram promotora do caso

Responsável por denúncia, Dinamárcia Maciel concedeu entrevista para o Correio do Povo

Fernanda Pugliero

Caso Bernardo completou um ano

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Logo após a denúncia do caso Bernardo Ministério Público, em maio do ano passado, a transferência que a promotora Dinamárcia Maciel havia solicitado foi aprovada. Ela se mudaria para mais perto da família, que já estava vivendo em São Luiz Gonzaga.

Um ano após o assassinato de Bernardo Boldrini, ela afirma que jamais se esquecerá do menino de olhos tristes e expressão cansada que relatou sentado em seu colo a vontade de ir morar com a “tia Ju” (referindo-se à Juçara Petry, que era uma espécie de madrinha para Bernardo em Três Passos). Dinamárcia foi a responsável pela denúncia dos quatro réus do processo e foi quem recebeu Bernardo após ele ter reclamado no Fórum do município a vontade de mudar de família. Nessa entrevista concedida ao Correio do Povo por e-mail durante essa semana, a promotora relembra o caso e opina sobre a repercussão do crime, que completa um ano hoje.
 
Correio do Povo - Um ano após a descoberta do assassinato do Bernardo e cerca de 10 meses após a apresentação da denúncia do Ministério Público, a senhora ainda mantém a convicção de que o crime foi cometido a oito mãos (além do pai, da madrasta e de Edelvânia, com a ajuda do irmão dela, Evandro)?

Dinamárcia - A convicção que tive quando formulei e assinei a denúncia permanece íntegra e representa, verdadeiramente, uma convicção do Ministério Público: as quatro pessoas denunciadas concorreram para a morte de Bernardo Uglione Boldrini e ocultação de seu cadáver, com condutas bem definidas de participação. Os elementos de informação e as provas presentes no Inquérito Policial que apurou o homicídio foram bastante elucidativos para descortinar a autoria desse crime hediondo.

Correio do Povo - No ano passado, a senhora afirmou que a tendência era o julgamento demorar até um ano para ocorrer. Um ano depois, os apontados como responsáveis pelo crime ainda não foram sequer ouvidos pela justiça. A senhora arriscaria dizer quanto tempo mais demorará o julgamento? Por que é tão demorado?

Dinamárcia - Como não atuo mais no processo, abstenho-me da emissão de comentário a respeito do andamento.

Correio do Povo - A senhora acompanhou todo o desenrolar da história. Desde a visita do menino ao Ministério Público para tentar trocar de casa, o suposto desaparecimento, até o encontro do corpo em um buraco no meio do mato. Qual parte da história a marcou mais?

Dinamárcia - O que mais me marcou, durante a atuação que tive no caso, foi a frieza do pai e da madrasta de Bernardo, procurando apoio das autoridades e mobilizando terceiros, nas buscas pela criança – até então desaparecida – a qual já sabiam estar morta. Depois, também foi marcante ter de trabalhar com informações sobre a vida intrafamiliar da vítima somente reveladas, por testemunhas, depois da notícia da morte Bernardo.

Correio do Povo -
Você ainda pensa no Bernardo? Do que lembra? Arrepende-se de ter feito (ou não) alguma coisa durante todo o desenrolar da história (desde as supostas agressões cometidas pelo pai até a consumação do assassinato)? Teria feito algo diferente?

Dinamárcia - Primeiramente, faz-se importante corrigir a pergunta, porque parte de uma premissa que não é verdadeira: Nunca recebemos, no Ministério Público, ao tempo do Bernardo entre nós, qualquer notícia de agressão praticada pelo pai, além da relatada violência negligencial, ou seja, a desconsideração, o abandono, material e afetivo. Adiante, em resposta, digo que, em dezesseis anos de serviços prestados como Promotora de Justiça, com atuação direta, entre tantas outras atribuições, para a proteção de crianças e adolescentes, Bernardo foi a primeira criança que, atendida e proposta medida judicial em seu favor, foi vítima de homicídio. Recordo de tantos atendimentos a situações críticas de violência física intrafamiliar em que conseguimos salvar a criança (ou o adolescente) de seus algozes. E situações essas, muitas vezes, em que as crianças nada conseguiam verbalizar, por serem ainda bebês, e tinham sido queimadas, fraturadas, ou “vendidas a casais com recursos”, e que foram encaminhados à adoção, após batalha judicial com os pais (e com os compradores), por exemplo, e hoje são adolescentes saudáveis, vivendo em famílias que lhes dão o carinho e apoio necessários. Jamais esquecerei Bernardo, menino de olhos tristes, expressão cansada, que esteve sentado em meu colo, relatando-me a vontade de ir morar com a “tia Ju”. Apesar da agilidade das providências adotadas pelo Ministério Público, todas registradas documentalmente (como a ouvida da avó, em Santa Maria, a nosso pedido, e a recusa da tia Ju em recebê-lo sob guarda provisória, após contatada por servidor da Promotoria de Justiça, por minha determinação), Bernardo foi morto, de uma forma covarde, abjeta. Guardo a lembrança dele comigo, assim como a certeza que o sistema não é imune a atos insanos. Aliás, não há, no mundo, sistema imune a isso.

Correio do Povo - A senhora chegou a retornar a Três Passos desde que trocou de comarca? Mesmo se sim ou se não, por quê?

Dinamárcia - Profissionalmente, não fui mais a Três Passos, porque não houve esse imperativo. No demais, prefiro não comentar sobre minha vida pessoal.

Correio do Povo - Continua acompanhando o caso? Conversa com a promotora Silvia ou limita-se a acompanhar pela imprensa?

Dinamárcia - Como estou com atribuições em outra Comarca, sem mais responder pelo caso, prefiro não responder a essa pergunta.

Correio do Povo - De que maneira a senhora acredita que a opinião pública tenha influenciado no desenrolar do caso? Na sua opinião, por que o caso repercutiu tanto?

Dinamárcia - O caso repercutiu tanto, em minha opinião, pela conjugação de três circunstâncias: primeiramente, ao fato da comunidade local e regional estar mobilizada nas buscas por Bernardo e, após, ter sido “patrolada” com a brutal notícia de que o menino tinha sido morto pelos mesmos que, dissimuladamente, o procuravam. Então, essa mobilização para buscas transmutou-se num movimento para punição dos culpados, de enorme engajamento social; depois, pelo fato de Bernardo ter pedido outra família, meses antes do crime, indo diretamente buscar ajuda no Fórum local. Nesse ponto, o desconhecimento do trabalho legal feito em favor de Bernardo e dos trâmites judiciais, especialmente do que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente em casos tais (até então, de violência neglicencial), contribuiu para uma pesada crítica ao sistema e seus operadores – acredito firmemente que as críticas devem contribuir para o aperfeiçoamento do sistema, especialmente para a relativização da prioridade à manutenção da criança com a família biológica[i]; finalmente, o fato de tudo se ter passado numa família de classe alta, com pai médico, madrasta enfermeira e uma partícipe que era, veja-se, uma assistente social. Realmente, nos dias da morte de Bernardo, outra criança, em cidade do interior do Estado, um bebê, com poucos meses de vida, foi morto com mais de vinte facadas, dentro de casa, por um parente. Não houve disso mais que uma ou outra nota nos informativos e nada nas redes sociais...eram todos, morto e assassino, pessoas pobres e de mínima instrução, onde tantos dizem ser (sic) “comum acontecer esse tipo de coisa”. Lamentável, mas é assim que se ouve tantos dizerem.

Ora, se a família, hoje, tem sua formação multifacetada reconhecida constitucionalmente, priorizando-se o vínculo afetivo para tal concepção, acredito que a prioridade ao vínculo biológico deve ser mitigada, relativizada, para que se atenda ao melhor interesse da criança. Fui coerente com esse meu entendimento, para proteção de Bernardo, ao ajuizar a Ação Protetiva perante o Juizado da Infância e Juventude, para afastá-lo, provisoriamente, do pai e da madrasta, entregando-o à avó materna. 

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