Mais de 3 mil crianças indígenas morreram no país em quatro anos

Mais de 3 mil crianças indígenas morreram no país em quatro anos

Segundo o governo, apesar de alto, número de óbitos está em queda. Pneumonia e diarreia são as principais causas de mortes

R7

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Em 2021, 486 crianças indígenas de 0 a 5 anos morreram no Brasil, segundo dados da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena). O número é menor do que o registrado nos três anos anteriores, quando morreram 809, 952 e 879 pessoas nessa faixa etária. Ainda assim, se somarmos, foram 3.126 óbitos infantis desde 2018.  

De acordo com os dados da Sesai, as mortes até 5 anos representam 24,2% dos óbitos na população indígena em geral. Isto significa que a cada quatro mortes, uma ocorre na primeira infância.

Além disso, mais de 70% das mortes registradas são de bebês com menos de 1 ano de idade. Os números só levam em consideração os indígenas que vivem em aldeias localizadas em territórios demarcados e não contabilizam os que vivem nas cidades. Os registros no sistema podem demorar até dois anos, segundo a Sesai.

"A mortalidade de crianças indígenas de até 10 anos supera em até sete vezes a do mesmo grupo etário na população em geral. São 8,3 óbitos de crianças indígenas a cada 100 mil habitantes contra 1,2 óbito em não indígenas. Isso vem de antes da pandemia. A desigualdade é crônica na saúde indígena", revela o médico e pesquisador do Grupo de Saúde Indígena da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Andrey Moreira Cardoso.

Já o secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Robson Santos da Silva, destacou ao R7 que os números estão em queda.

"De 2010 a 2013, foram 3.729 óbitos de crianças de até 5 anos; de 2014 a 2017, foram 3.360; de 2018 a 2021, houve uma baixa para 3.126. Infelizmente não é uma coisa nova, é histórico. As coisas melhoraram, mas a média de mortes está acima do normal. Não estou relativizando, mas está morrendo menos do que no passado. Tem muito trabalho a ser feito", disse.

Em 2021, o estado do Amazonas liderou o ranking de mortes de crianças indígenas de até 5 anos, com 127 óbitos, seguido por Roraima (75), Mato Grosso (66) e Pará (51). Apenas São Paulo, Ceará e Espírito Santo tiveram uma morte cada. É preciso levar em consideração como a população está espalhada no território brasileiro e o número de nascimentos por estado.

"A categoria indígena é heterogênea. Segundo o Censo 2010, ela representa cerca de 0,4% da população brasileira. São 900 mil índios, mas com uma enorme diversidade étnica: 305 etnias e 274 línguas. Estão sempre em desvantagem, mas apresentam diferenças regionais, assim como acontece com a população não indígena no Brasil", explica Cardoso, que também é membro do Grupo de Trabalho da Saúde Indígena da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).

Causas de morte

Entre as principais causas de morte estão diarreia e infecções respiratórias. Por pneumonia, foram 248 óbitos de 2018 a 2021. No mesmo período, morreram 200 crianças por diarreia e doenças intestinais. Já a Covid-19 matou 15 crianças indígenas em 2021.

No levantamento aparecem também as mortes sem assistência, desnutrição, sepse (infecção grave), imaturidade extrema e causas não especificadas. Também foram contabilizadas 157 mortes por agressão entre 2018 e 2021.

"Causas respiratórias representam 70% das hospitalizações e respondem pela maior mortalidade. Tem a ver com a condição de vida e o acesso à saúde. A taxa de mortalidade é maior no norte do país do que no sudeste. Em alguns locais para conseguir um leito de UTI para Covid é muito difícil pelo tempo de deslocamento, horas no transporte em barco correndo o risco de infectar os demais, também o número de leitos por habitante", lembra o médico.

Segundo o secretário da Sesai, muitos dos agravos são consequência da má qualidade da água. "Hoje são 6 mil aldeias e a cada mês surgem 20 novas. Um poço artesiano sai R$ 300 mil. Muitos bebem água direto do rio com esgoto e fezes de animais por causa da pecuária. Não é só sobre perfurar um poço. Tem aldeias com mais de 3 mil pessoas em casas individuais e querem um banheiro em cada. A Sesai tem dificuldade para atender e trabalha com parcerias", explica.

Muitas vezes os problemas respiratórios se agravam e levam pacientes à morte. A fumaça usada no cotidiano para espantar mosquitos, fazer fogueira e até em rituais pode prejudicar a saúde indígena.

De acordo com Robson Santos, a desnutrição que passa de geração em geração também é um agravante. A alimentação é pobre em nutrientes, muito focada na mandioca e em carboidratos.

"Não trabalhamos com segurança alimentar, mas emitimos um alerta. Sem comida, eles abandonam o tratamento médico. Há mortes ainda por tuberculose. Perdemos recentemente uma menina de 12 anos assim. Aderimos ao programa de suplementação alimentar e eles estão recebendo ferro, magnésio, para melhorar a condição de saúde", complementa.

Menores de 1 ano

O número de mortes de bebês com até 1 ano é duas a três vezes maior na população indígena. São dois indicadores: morte após 28 dias de vida ou neonatal (até 27 dias após o nascimento). Algumas crianças já nascem com peso abaixo do indicado.

"Na população em geral as mortes acontecem mais após o parto por complicações na gestação, má formação congênita e a menor parte é pós neonatal. Diferente dos indígenas e está relacionado a condições inadequadas de vida, saúde, à diarreia e pneumonias. Não que não morram no neonatal, mas morrem mais ainda no primeiro ano de vida", ressalta Andrey Cardoso.

O secretário da Sesai explica que, por regra, a gestante deve fazer ao menos seis exames pré-Natal. No entanto, nem sempre há equipamentos para um diagnóstico preciso.

"Há deficiências até na informação da idade gestacional. O ideal é fazer a avaliação com auxílio da imagem, mas, na prática, é muito na conversa. Temos ultrassom portátil e estamos capacitando as equipes para dar ao enfermeiro a condição mínima para fazer o exame. É preciso colocar mais tecnologia dentro da área", justifica.

Hoje o deslocamento é um grande entrave. O custo da hora de um helicóptero, por exemplo, é R$ 8 mil. De barco, às vezes se gasta cinco dias para chegar em aldeias. Sem falar na falta de internet para comunicação.

Outro problema grave no grupo étnico é a desnutrição. As crianças têm retardo no crescimento, além de apresentarem peso e altura menores do que o ideal para a faixa etária. Entre as razões estão a vulnerabilidade social, condições sanitárias precárias, de moradia, esgoto, falta de acesso à água potável e maior número de moradores por domicílio, em especial nos povos amazônicos.

A questão cultural também impacta na saúde. Entre o povo ianomâmi, as crianças são as últimas a serem alimentadas na hierarquia, sendo priorizados os guerreiros e adultos.

Causas evitáveis

Um estudo mostra que as causas de boa parte das internações de indígenas são evitáveis, por exemplo em casos de pneumonia e diarreia. 

"Se a criança não fosse desnutrida, se tivesse acesso a tratamentos com antibióticos, evitaria-se a morte em menores de 5 anos. No Centro-Oeste do país, as internações por causas evitáveis são 18 vezes maior; no norte, seis vezes mais", alerta o médico.

O secretário confirma que há ainda muita ignorância em relação às consequências de doenças e diz que faltam também redes especializadas.

"Em regiões isoladas como Amazonas, Mato Grosso e Rondônia, falta muita retaguarda. Não há uma rede de qualidade nos estados para amparar o paciente. Por exemplo, no Amazonas tudo é só em Manaus, e a pessoa demora meses para conseguir uma consulta com especialista, por isso nesses locais têm mais mortes", enfatiza.   

Covid-19

Assim como na sociedade, também há resistência em vacinar crianças indígenas contra a Covid-19 e desinformação. Ainda assim, segundo a Sesai, a cobertura vacinal está em 91% na primeira dose e 85%, na segunda. Cerca de 60% dos adolescentes já foram vacinados, mas a logística não é simples.

"Foram 866 mortes por Covid-19 na população indígena, que é de 761 mil pessoas. A taxa de letalidade é de 1,2, menor do que a da população em geral. Não tivemos mortes nas últimas semanas. Para vacinar, as equipes demoram até cinco dias para chegar no território e é preciso ficar atento às condições de armazenamento da vacina", diz Robson Santos da Silva. 

Com o aumento da transmissibilidade da variante Ômicron, as infecções passaram a atingir mais crianças, sendo que as indígenas já eram mais acometidas por doenças respiratórias agudas até mesmo antes da pandemia.

A Covid-19 também afetou funcionários. De acordo com a Sesai, de 10 a 30% da força de trabalho ficou fora de atuação por causa da doença.

Alta rotatividade de equipes

Segundo a Sesai, hoje são 21 mil funcionários em atuação no país e, entre os novos contratados, os indígenas têm prioridade. São 800 equipes permanentes em área, com enfermeiros e técnicos em enfermagem, além de 1.200 UBS (Unidades Básicas de Saúde) Indígenas. A secretaria possui 3 mil veículos, incluindo as ambulanchas.

O secretário, no entanto, reconhece que a tarefa é árdua: "As equipes ficam de 20 a 30 dias em área e depois são substituídas. É sacrificante porque o profissional fica longe de casa, sem internet. Estamos com processo seletivo aberto porque a rotatividade é grande por ser um trabalho difícil. Indígenas têm uma pontuação maior por morarem lá, conhecerem as especificidades e se adaptarem melhor".

Devido à dificuldade de acesso a determinadas aldeias, a regularidade nos atendimentos médicos fica ainda mais difícil. Segundo Andrey Cardoso, a atenção primária de saúde acontece em todas as localidades do país, mas isso nem sempre significa um bom atendimento.

"Um dos problemas é a alta rotatividade de equipes, a substituição de equipamentos, por exemplo quando quebra um barco. Existe o acompanhamento, o que não significa que seja de qualidade. A população indígena tem acesso a programas de imunização antes até que a população em geral devido à vulnerabilidade social, faz acompanhamento do desenvolvimento da criança", detalha.

Para qualificar o atendimento, a Sesai tem investido em telessaúde, cursos e oficinas de capacitação de agentes indígenas de saúde e tem feito parcerias com ONGs (Organizações Não Governamentais).

De acordo com Robson Santos da Silva, o problema não é falta de orçamento: "Em 2019, a gente executou R$ 1,4 billhão; em 2020, R$ 1,6 bilhões, e agora temos quase R$ 1,7 bilhões só de recursos da Sesai. Se somar com outras verbas do Ministério da Saúde, ultrapassa R$ 2 bilhões. Não tenho dificuldade orçamentária, mas sim de execução na ponta. Fazer obra em área remota depende do nível do rio, da estrada, às vezes, só tem uma empresa na região". 

Como superar o problema

Um dos desafios é levar saneamento adequado a áreas remotas, com água de qualidade e esgoto sanitário, além de segurança alimentar.

"É um conjunto complexo de coisas. É preciso investimento em políticas públicas sociais e de saúde para superação das desigualdades, pobreza, saneamento e políticas habitacionais, até de acesso a créditos e programas de renda", cobra o médico Andrey Cardoso.

Já o secretário afirma que herdou uma situação bastante complicada, mas espera conseguir diminuir ainda mais os óbitos indígenas.

"Melhorando está, mas o problema é a velocidade que temos para mudar o quadro. Os indígenas são parceiros nossos. Temos apostado no uso de tecnologia, em filtros biodigestores, em equipamentos para realizar exames locais. Já estamos colocando em prática, mas os desafios são grandes. Temos que investir nas crianças, mas também nos pais", ressalta o secretário.


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